Numa comissão especial da Câmara dos Deputados, está em discussão a reforma política do Estado brasileiro. Diferentemente das emendas constitucionais sobre a ordem econômica e a previdência encaminhadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, as reformas políticas têm sido propostas pelo Congresso, através de uma articulação das forças conservadoras, e contam como fator impulsionador dessas mudanças a Presidência da República.

Esta reforma envolve um leque muito amplo de questões. Os seus articuladores pretendem alterar quinze dispositivos do texto constitucional. Entre as propostas destacam-se o voto e o alistamento facultativos; reeleição de presidente, governador e prefeito; fidelidade partidária; requisitos para a criação de partidos políticos; cláusula de barreira, ou seja, número mínimo de eleitores; duração dos mandatos; número de representação dos órgãos legislativos; um sistema eleitoral que envolva a adoção do voto distrital misto; e a proibição da divulgação de pesquisas eleitorais. Além dessas emendas, a comissão discute a elaboração de um novo código eleitoral e a lei para as eleições de 1996, na qual se pretende proibir as coligações proporcionais. É objeto de discussão, também, a formulação de uma nova Lei de Partidos Políticos e da legislação complementar.

Inicialmente, dizia-se que a reforma política somente entraria na pauta após a aprovação das reformas econômicas. Agora a imprensa informa que os presidentes do Senado, José Sarney, e da Câmara, Luis Eduardo Magalhães, estiveram com o presidente Fernando Henrique Cardoso e que ficou entusiasmado com o esboço das reformas e deu sinal verde para sua tramitação. Em decorrência disso, os presidentes das duas casas do Congresso decidiram que a reforma política deve tramitar em conjunto com as demais reformas da Constituição (1).

A imprensa afirma que o presidente Fernando Henrique Cardoso pediu medidas de endurecimento das regras do jogo partidário. FHC quer reduzir para cinco o número de partidos políticos, acabar com as coligações nas eleições proporcionais e impor a volta da fidelidade partidária. Quando era senador, o presidente apresentou um projeto propondo a implantação do voto distrital misto. Fica claro o intuito do governo e dos seus aliados: fazer aprovar uma reforma política que reduza drasticamente o número de partidos e golpeie a democracia.

Com esse conjunto de reformas constitucionais, as forças conservadoras pretendem adequar a Constituição brasileira ao projeto neoliberal. Atílio A. Boron, escritor argentino, ao comentar as teses de Walter Friedman, teórico do neoliberalismo, afirma que essa corrente “provém do fato de que os seus preceitos fundamentais – império do mercado, desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social e contenção dos avanços democráticos – foram os princípios racionalizadores de conhecidas tentativas conservadoras que, com maior ou menor grau de violência, foram ensaiadas nas mais diversas latitudes” (2). Boron destaca os três aspectos fundamentais do neoliberalismo: afastamento do Estado da atividade econômica, com prevalência das leis de mercado; golpe nas conquistas sociais dos trabalhadores; e contenção dos avanços democráticos. Afirma, ainda:

“(…) a refundação de uma ordem econômica liberal – isto é, que deixe as mãos livres às frações mais dinâmicas e concentradas do capital – exige a constituição de uma ordem política crescentemente autoritária.(…) O suposto “antiestatismo” dos modernos cruzados do liberalismo é, na realidade, um ataque frontal à democracia que as classes e camadas populares souberam construir, apesar da oposição e da sabotagem dos interesses dos capitalistas. O que na verdade lhes preocupa no moderno Estado capitalista não é o seu excessivo tamanho nem o déficit público, mas a intolerável presença das massas saturando todos os seus interstícios”.

A política neoliberal golpeia a soberania nacional com seu processo de privatização indiscriminada e é contrária aos interesses dos trabalhadores, pois impõe um programa que leva ao arrocho salarial e à quebra de importantes conquistas sociais, além de exigir a adoção de alterações no sistema político que viabilizem a concretização desse modelo.

Norberto Bobbio, intelectual italiano, comenta: a “sobrecarga das demandas da qual deriva uma das razões da ingovernabilidade das sociedades mais avançadas é uma das características do regime democrático, no qual as pessoas podem se reunir, se associar e se organizar para fazer ouvir a própria voz” (3). A Constituição brasileira expressa as demandas sociais do nosso povo contidas pela ditadura militar. Para golpeá-las, será também necessário atingir a democracia.

O professor Wanderley Guilherme dos Santos afirma que “revisões, reformas e legislação são sugeridas a título de dotar o nosso sistema político daqueles tributos de que seria manco: transparência, eticidade, representatividade e eficácia. Na realidade, porém, a derradeira estação deste atentado nacional seria, ou será, o retorno ao clube oligárquico da competição partidário-eleitoral minimalista”. Afirma o mesmo autor que tais reformas representam “o mais violento atentado institucional já ousado por civis no último meio século da vida brasileira” (4).

A questão é muito clara. Sintonizado com o projeto neoliberal, o governo Fernando Henrique Cardoso procura implantá-lo no Brasil. Para isso adota as diretrizes do Consenso Washington, que implicam o combate à inflação através da âncora cambial e o ajuste econômico através de cortes nas áreas da saúde e da educação e nas verbas destinadas à construção de estradas, sem tocar na dívida pública interna e externa. O ajuste também implica privatizações indiscriminadas, que entregam empresas estratégicas a preço vil; a adoção de uma política de arrocho salarial e de concentração de renda; e golpes nas conquistas sociais, como o que pretende com a reforma da previdência. Evidentemente, não é possível adotar todas essas medidas sem fortes resistências. Projeto semelhante foi realizado no passado através de golpes militares. Agora procura-se fazer um “ajuste político” para assegurar a implantação da nova ordem econômico e social. Como não pode revelar a verdadeira natureza das emendas propostas, seus autores falam em modernidade da economia e do sistema político do país.

Os inspiradores das reformas políticas antidemocráticas argumentam que o país tem excessivo número de partidos políticos, com legendas de aluguel, que propiciam uma grande fragmentação partidária. Dizem que essa fragmentação conduz à ingovernabilidade do país, e argumentam que o atual sistema eleitoral proporcional estimula as disputas internas nos partidos, não consolida a estrutura partidária e eleva os custos de campanha, uma vez que a eleição é feita em uma área muito ampla.

Para solucionar tais problemas propõem uma série de medidas de caráter frontalmente antidemocráticas. Pretendem reduzir a competição política e elitizar ainda mais o poder. Para isso propõem, entre outras medidas: 1) redução do número de partidos; 2) adoção do voto distrital misto; 3) adoção da cláusula de barreira; 4) proibição das coligações partidárias nas eleições proporcionais; 5) fidelidade partidária; 6) voto facultativo.

Quadro 1 (p. 19)

Redução do número de partidos

Um dos alvos preferidos dos que defendem a redução da atividade política é a diminuição drástica do número de partidos políticos. Alegam que o país vive uma “anarquia partidária” que dificulta a governabilidade. Afirmam que a redução dos partidos visa, também, a acabar com as “legendas de aluguel”. O que pretendem, no entanto, sob falsos pretextos, é amoldar o quadro partidário a uma política autoritária e elitista, monopolizada por três ou quatro grandes agremiações e algumas poucas agremiações que contracenam como “oposição de esquerda”.

Os defensores do golpe contra a democracia partem do falso pressuposto de que no Brasil há um grande número de partidos políticos, o que cria problemas para sua governabilidade. No entanto, países como Alemanha, França, Itália, Portugal, Espanha, assim como Argentina, Uruguai, México e Índia não só têm um grande número de partidos como uma razoável representação deles no parlamento. O que ocorre é que há uma grande concentração de parlamentares em alguns poucos partidos. A Itália adotou uma variante do sistema distrital misto com a justificativa de que tal medida resolveria o problema da fragmentação partidária. Todavia, a prática desse modelo, nas condições concretas daquele país, agravou a fragmentação partidária e levou à eleição de grande representação fascista no país.

No Brasil o quadro não é diferente. Há 17 partidos representados no Congresso Nacional, sendo que 4 deles detêm 62% das cadeiras no Legislativo. O presidente Fernando Henrique possui seis partidos em sua base parlamentar: PSDB, PFL, PMDB, PL, PP e PTB. Tem apoio parcial em outras legendas menores; conta, portanto, com 68% dos votos do Congresso Nacional.

Quadro 2 (p. 20)

A ingovernabilidade deve-se mais à incapacidade das elites em ter um projeto político próprio do que à presença de variadas correntes políticas e partidárias no Congresso, uma vez que adotam modelos já fracassados em outros países. A experiência política também tem demonstrado que não há uma relação estanque entre ingovernabilidade e número de partidos. Quando ocorre diferença muito pequena na representação parlamentar de um quadro bipartidário, em vez de equilíbrio ocorre a quebra da estabilidade aparentemente estabelecida.

Não há consistência nem dados reais que possam identificar onde se situa a ingovernabilidade. Na verdade, o que se pretende é criar condições para o exercício de um poder autoritário que prescinde da negociação. Isto não é próprio da democracia.

O ponto de vista expresso pelo presidente da República, que gostaria de ver o número de partidos políticos reduzido a cinco, expressa uma concepção oligárquica de estrutura partidária. A existência de um número maior de partidos é uma regra nos países democráticos. Nos 12 países analisados no quadro “Representação parlamentar”, o que tem um número menor de partidos é o México, com 11. A França tem 36; a Índia 34; a Alemanha, 32; além de outros países com grande número de partidos. Mesmo se tomando por base a representação parlamentar dos 12 países analisados, somente 3 têm menos de 5 partidos com representação no Congresso, enquanto 9 têm representação que vai de 6 até 27 partidos.

Querer afirmar que o número de partidos atualmente existentes no Brasil é um fator de ingovernabilidade é o mesmo que dizer que temos excesso de democracia. Nada mais falso. Sabemos que o país carece de mais democracia, não só no terreno político, mas também nos terrenos econômico e social. As dificuldades políticas que as elites enfrentam decorrem de sua insistência em adotar políticas contrárias aos interesses da maioria.

A tentativa de reduzir drasticamente o número de partidos é, na verdade, uma medida autoritária que procura enquadrar as grandes contradições existentes na sociedade em um quadro partidário que não corresponde à situação complexa do país. Por outro lado, esta idéia expressa as medidas adotadas pelas elites governantes para manter o controle rigoroso do poder.

Historicamente, tem havido uma queda na votação dos partidos conservadores. Segundo estudo da revista Retratos do Brasil, a votação dos partidos conservadores em 1945 era de 77% do total dos votos válidos. Em 1982 este número caiu para 38%. Nas eleições de 1962, o PSD e a UDN elegeram 54% dos deputados federais; em 1945 esses dois partidos haviam conquistado mais de 80% dos votos. Este declínio dos partidos conservadores foi, sem dúvida, uma das causas do golpe militar em 1964.
No período mais recente, o crescimento da representação progressista no Congresso Nacional e a possibilidade da vitória de Lula para a Presidência da República colocaram as elites brasileiras em pânico. Elas concluíram que se tornava urgente uma alteração no quadro partidário que lhes permitisse maior controle da situação e do poder político.

Na verdade, o problema político brasileiro não diz respeito ao excesso de partidos. O próprio processo democrático se encarrega de separar os partidos compromissados, com a sociedade, dos “partidos de aluguel”, excluindo estes últimos do quadro político. O PRN, criado às vésperas da eleição de 1989, que chegou a possuir 46 parlamentares em 1991, elegeu apenas 1 em 1994, e agora não possui mais representação no Congresso. O problema, portanto, não está no número de partidos e sim na debilidade dos partidos existentes.

Esta debilidade se relaciona com a própria fragilidade do sistema democrático brasileiro. O país viveu grandes períodos de regime autoritário permeados por algumas fases de liberdades políticas. Nos períodos autoritários, os partidos foram extintos e a liberdade de expressão e manifestação foi duramente cerceada. Durante o regime militar, criaram-se dois partidos na vã tentativa de controlar o processo político brasileiro. O avanço da luta democrática foi progressivamente rompendo este quadro limitado. O regime militar, por sua vez, procurou adotar novas medidas para restringir o quadro partidário, propôs o voto distrital misto e a cláusula de barreira.

“Redução do número de partidos fere o princípio do pluralismo político e partidário”.

Mesmo durante os períodos de liberdades políticas, o Executivo, com poderes altamente concentrados em suas mãos, interferiu seriamente na vida partidária através da política do “é dando que se recebe”. A consolidação dos partidos passa pela consolidação da própria democracia no Brasil: maior equilíbrio entre os poderes da União, ampliação do grau de organização da sociedade civil e criação de condições para que a vontade da maioria da sociedade possa se expressar livremente.

 As tentativas de redução do número de partidos ferem o princípio constitucional do pluralismo político e partidário. Esta é uma das pedras angulares do sistema democrático.

Pretende-se impor uma camisa-de-força ao sistema político partidário brasileiro. É necessário romper  com a mentalidade colonialista de transplante de modelos. Antes se tomou como paradigma o modelo norte-americano. Agora o que está na ordem-do-dia é o modelo alemão, sem levar em conta as profundas diferenças econômicas, sociais e políticas entre os dois países.

O Brasil é um país continental, repleto de contradições, e o seu sistema partidário tem que espelhar essa realidade. Fora disso, cria-se um sistema político completamente distante da nossa realidade e que entrará em contradição com as aspirações da maioria do povo brasileiro.

Para atingir o objetivo de reduzir o número de partidos, os neoliberais propõem alterações no sistema  eleitoral, já que este tem consequências importantes sobre o sistema partidário.

Entre os países que adotam o sistema distrital puro (ver quadro “Sistemas eleitorais”), apenas 2 partidos obtêm mais de 5% das cadeiras do Parlamento. Tal sistema reforça enormemente o bipartidarismo. Como se observa, nos países onde o sistema é proporcional, há um número maior de partidos que conseguem mais de 5% de representação parlamentar. Na Alemanha, onde se adota o voto distrital misto, somente 3 partidos conseguem mais de 5% de representantes no parlamento.

Quadro 3 (p. 21)

Voto distrital misto

As elites brasileiras estão unidas na defesa da adoção do voto distrital misto, duro golpe desfechado contra a democracia. Nesta “canoa furada” embarcam ingenuamente, também, alguns setores de partidos progressistas. Perplexos diante das contradições e da crise do capitalismo, e dos insucessos momentâneos das idéias socialistas, sucumbem à pressão neoliberal e passam a defender, com atenuantes, estas medidas, que visam a restringir o espaço das forças progressistas para dar maior estabilidade ao regime.

  Para compreendermos melhor a natureza da questão em debate, é importante analisarmos, sucintamente, a diferença entre os diversos sistemas eleitorais.

No sistema eleitoral majoritário, o país é dividido em distritos, sendo eleito o candidato mais votado de cada distrito. Este sistema distorce a vontade dos eleitores e reduz drasticamente a representação das minorias, mesmo sendo elas expressivas. Isto porque, por hipótese, um partido que obtenha 51% dos votos em 10 distritos obtém as 10 cadeiras no Parlamento, ao passo que o outro partido que obtiver 49% dos votos não terá nenhuma cadeira. Tal distorção se expressou, por exemplo, em 1974 na Inglaterra, onde o Partido Liberal obteve 19,3% dos votos e ficou somente com 2,2% das cadeiras da Câmara dos Comuns. Adotam o sistema majoritário (distrital), com variações, os seguintes países: Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra e França.

O sistema majoritário tem raízes na concepção medieval de representação territorial. Desde o século XIII os delegados dos condados eram convocados pelo rei da Inglaterra para dar seu consentimento aos novos impostos a serem cobrados. A representação majoritária, portanto, é fortemente vinculada à noção de representação territorial. Os deputados representam mais os interesses das comunidades do que idéias ou partidos.

“Voto distrital: na Inglaterra um partido teve 22% dos votos e ficou com 3% dos lugares”.

No sistema proporcional, o número de parlamentares eleitos é proporcional à quantidade de votos obtidos. Assim, um partido que obteve 30% dos votos terá aproximadamente a representação de 30% dos parlamentares. Este é o sistema que vigora no Brasil e é adotado também na Áustria, Suécia, Dinamarca, Islândia, Irlanda, Holanda, Suíça, Finlândia, Israel, Portugal, Bélgica, Noruega, Luxemburgo, Grécia e Espanha.

No sistema eleitoral distrital misto, adotado pela Alemanha, metade dos parlamentares é eleita pelos distritos eleitorais e, a outra metade, pelo sistema proporcional. O eleitor vota duas vezes. Uma no candidato do distrito, outra na lista partidária, elaborada pelos caciques de cada partido. No sistema alemão somente os partidos que obtiverem pelo menos 5% dos votos dados na lista ou vencerem no mínimo em 3 distritos terão representação no Parlamento.

Os países que adotaram o sistema proporcional optaram por esta alternativa após uma longa experiência do sistema majoritário (distrital). São exemplos de substituição do sistema majoritário pelo proporcional: Áustria (1919), Bélgica (1899), Dinamarca (1918), Finlândia (1906), Suécia (1907) e Suíça (1890).

Na Inglaterra existe um forte movimento pela substituição do sistema majoritário. Lá os conservadores conquistaram 57% das cadeiras, tendo obtido 42% dos votos, sendo que os liberal-democratas, que receberam 22% dos votos, obtiveram somente 3% dos lugares no Parlamento.

O Partido Trabalhista da Inglaterra, ao perceber a distorção do processo político provocado pelo sistema eleitoral majoritário, incorporou em seus estatutos a luta pela implantação do sistema eleitoral proporcional na Inglaterra.

No Brasil o voto distrital foi adotado por cerca de 70 anos durante o Império e a República Velha. A Revolução de 1930, que representou um avanço democrático, acabou com o sistema distrital e implantou o sistema proporcional. O sistema proporcional é incorporado ao texto constitucional de 1946.

Durante o regime militar foram feitas várias tentativas para introduzir o voto distrital misto. A Emenda Constitucional n. 22, de junho de 1982, de iniciativa do general Figueiredo, estabeleceu o voto distrital misto. No entanto, ele não foi colocado em prática. Com o fim do regime ditatorial, a Câmara dos Deputados revogou este entulho autoritário em maio de 1985. Isto demonstra que o voto distrital puro ou misto, no Brasil, anda de braços dados e expressa a concepção política do autoritarismo, e que o sistema proporcional representa o avanço democrático.

“Tancredo Neves: o voto proporcional favorece reivindicações populares e combate o imobilismo”.

O ex-presidente Tancredo Neves fez a seguinte afirmação: “Tenho para mim, com base em minha longa experiência de vida pública, sobretudo encarando o aspecto da realidade sócio-econômica do Brasil, que o sistema proporcional é o único capaz, como instrumento de ação política, de promover a rápida democratização das estruturas e das instituições brasileiras. O sistema proporcional é realmente uma ação política que determina que as resistências reacionárias, conservadoras e imobilistas têm de ceder à pressão das reivindicações populares, fazendo com que a História siga sua marca implacável” (5). Os defensores da adoção do voto distrital misto afirmam que ele deve ser implantado no país porque permite uma aproximação maior com o eleitorado, retira o conflito existente entre os candidatos de um mesmo partido e reduz os custos de campanha.

Os argumentos são frágeis e não revelam o objetivo fundamental de sua adoção, que é a drástica redução dos partidos políticos com sérias consequências para o processo democrático.
Defender tal sistema porque ele aproximaria o parlamentar de sua base não corresponde aos fatos, já que todo parlamentar, por mais votos dispersos que possua, tem sempre uma base fundamental de sustentação de sua candidatura, com a qual ele mantém estreitos vínculos. É evidente que o parlamentar representante de grupos econômicos não estará preocupado em se vincular com suas bases, até porque sua eleição depende do poder do dinheiro e não do vínculo com seus eleitores.

A questão do conflito entre as candidaturas de um mesmo partido não decorre do sistema eleitoral adotado, mas sim da existência de uma lista aberta de candidaturas, conforme estudo do professor Jairo Marconi Nicolau (6). No entanto, a adoção de listas partidárias fechadas e dos candidatos distritais trará uma séria disputa interna nos partidos em que os caciques procurarão impor seus candidatos.

“Distrital misto fere, distorce e dificulta a democracia. Constrói um sistema autoritário”.

Quanto à questão dos custos de campanha, o voto distrital agrava a influência do poder econômico, porque restringe a área de disputa e possibilita que um candidato com maior volume de dinheiro possa ali concentrar seus recursos. Sobre o assunto Tancredo Neves afirmou que, no distrito, “com a área eleitoral delimitada, o governo e o poder econômico dispõem de mil e um instrumentos para tornar inelegível e impedir a eleição de um representante do povo que venha a tornar-se incômodo não só para os interesses do governo, como para os interesses do poder econômico nacional”.

O voto distrital misto atenua, mas não soluciona, os problemas apresentados pelo voto distrital puro. Ele reduz pela metade o número de cadeiras a ser disputado pelo sistema proporcional. Restringe as possibilidades eleitorais dos partidos que têm seus candidatos eleitos pelo voto de opinião. Por outro lado, há uma vinculação política entre o voto do candidato distrital e o voto na lista partidária. Os candidatos distritais e o partido tratarão de fazer esta vinculação. Além do mais, a própria cédula eleitoral já induz a esta vinculação. A cédula adotada na Alemanha (ver quadro “Modelo de cédula alemã”) mostra que o primeiro é dado para os candidatos distritais e o segundo na lista partidária.

Figura 1 (p. 23)

A adoção do voto distrital misto traz graves consequências para o sistema político brasileiro:

1) Distorce a vontade popular. O resultado do processo eleitoral não expressa a vontade de uma parcela ponderável do eleitorado, pois a metade das cadeiras será eleita pelo voto distrital.

2) Golpeia o voto de opinião. Cada vez mais a sociedade se expressa através de opiniões, que perpassam o conjunto do país. Assim são as idéias que defendem a soberania nacional e os direitos do trabalhador, da mulher, do negro, dos que defendem o meio ambiente. O voto distrital golpeia, portanto, as correntes de pensamento existentes na sociedade e que contribuem para o avanço do processo democrático.

3) Aniquila as minorias. O voto distrital misto é profundamente antidemocrático porque se volta contra as minorias. E a existência das minorias é parte integrante do processo democrático. Golpear as minorias é cercear a própria democracia, particularmente quando estas minorias representam os interesses da maioria do povo brasileiro. Tancredo Neves se manifestou favorável ao sistema proporcional porque este “assegura a representação das minorias. Onde as minorias não se fazem representar, ou se fazem representar de forma injusta, inadequada e não correlata, a representação está mutilada, a representação deixa realmente de expressar o que deve significar”.

4) Dificulta a representação das forças populares. Os setores populares que não dispõem de recursos e que têm o voto disperso no conjunto da sociedade ficarão prejudicados. Com isso haverá uma elitização maior ainda do Parlamento.

5) Dificulta a eleição de democratas. Todo candidato, de diferentes matizes políticos, que não dispõe de recursos, cuja votação é dispersa no plano estadual, tem sua eleição comprometida. É errôneo imaginar que a adoção deste sistema irá prejudicar somente os candidatos progressistas. Prejudica qualquer político de bem que defende idéias e que não é testa-de-ferro de grupos econômicos.

6) Regionaliza as eleições afastando dos debates os grandes temas políticos e nacionais. As eleições para o Congresso Nacional têm que se voltar para as grandes questões do país e não se restringir apenas às disputas paroquiais e locais.

7) Fortalece o caciquismo político. A adoção do voto distrital misto debilita o papel dos eleitores e das bases partidárias. Fortalece as cúpulas partidárias que indicarão o candidato no distrito e elaborarão a lista eleitoral.

8) Agrava a influência do poder econômico. Ao delimitar a eleição a um distrito, o sistema permite que o candidato endinheirado gaste um volume maior de recursos num território bem menor. Os candidatos endinheirados terão maiores possibilidades de conseguir lugares destacados nas listas dos partidos conservadores em decorrência do seu poderio econômico.

9) Cria sérios problemas na divisão dos distritos. A divisão dos estados em distritos eleitorais será um instrumento a mais nas mãos das elites para favorecer seus candidatos. Em 1958, quando De Gaulle instituiu o voto distrital na França, para beneficiar a direita, formou distritos constituídos por bairros de uma grande cidade de tendência oposicionista e pela região rural próxima, controlada pelo governo. A manipulação foi tão grande que se criou um distrito para garantir a eleição de Marcel Dassault, o fabricante dos aviões Mirage.

Em síntese, a adoção do voto distrital misto representa um sério golpe na democracia brasileira. Se implantado, leva à extinção dos partidos menores e à construção de um sistema autoritário de poucos partidos, deixando uma parcela ponderável da sociedade sem representação política.

Quadro 4 (p. 24)

Cláusula de barreira

Na tentativa de impor este projeto, busca-se no sistema eleitoral alemão o modelo que estabelece a cláusula de barreira. Por esta regra somente os partidos que obtiverem pelo menos 5% dos votos dados à lista, ou vencerem no mínimo em 3 distritos, terão representação parlamentar. Como se percebe, a combinação do voto distrital com a cláusula de barreira conduz a um estrangulamento das minorias no Brasil.

A idéia de introduzir a cláusula de barreira no país vem do período do regime militar. O general Médici fez constar na Constituição de 1967 o índice de 10% dos votos válidos como o mínimo que um partido político deveria atingir para permanecer em funcionamento. Na Constituição de 1969 esta cláusula foi reduzida para 5%, tendo sido mantido neste nível com o pacote de abril de 1977. No entanto, a Emenda Constitucional n. 2, de 22 de junho de 1982, suspendeu sua vigência para a eleição daquele ano.

O professor Wanderley Guilherme dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma: “em filosofia política é dificílimo justificar qualquer legislação extinguindo partidos ou impondo barreiras à representação. A pedra fundamental do sistema representativo estipula que os eleitores não podem transferir a seus representantes senão aqueles poderes que possuem. Entre estes não se incluem o de determinar a eliminação de outros partidos ou de obrigar, à migração partidária, candidatos eleitos por partidos diferentes dos seus. Se se oferecer como pretexto para violência a falha de alcançar algum patamar de votos, então a violência tem nome: tirania da maioria no primeiro caso; estelionato eleitoral no segundo”.

“Poucos partidos não é sinônimo de governabilidade. Programa justo de governo, sim”.

O deputado João Almeida (PMBD-BA), relator da comissão especial destinada a estudar as reformas políticas, apresentou proposta de emenda constitucional que incorpora a “cláusula de desempenho”, também chamada de “cláusula de barreira”, à Constituição. Por sua proposta, o partido que não obtiver o apoio mínimo de 5% dos votos apurados, no plano nacional, na eleição para a Câmara dos Deputados, ou 2% em 1/3 dos estados, não terá direito à representação nesta casa legislativa.

O relator justifica tal proposição como forma de assegurar a governabilidade e o combate às “legendas de aluguel”. Critica as “regras permissivas que privilegiam o pluripartidarismo irresponsável e impede a formação de maiorias”.

Poucos partidos não é sinônimo de governabilidade. A falta de hegemonia de um partido num quadro partidário restrito pode gerar uma situação de ingovernabilidade. A governabilidade não é conquistada através de medidas de força adotadas pela maioria, mas sim pela construção de uma hegemonia política forjada a partir de um programa que apresente saídas efetivas para os problemas do país. Também somos contra as “legendas de aluguel”, mas estas serão superadas na luta política pelo julgamento da própria sociedade. O que não é aceitável é utilizar este pretexto para liquidar com as minorias, tão necessárias ao processo democrático.

Para o deputado João Almeida, trata-se se “enfrentar a questão crucial da governabilidade, ou seja, da capacidade de um governo ser obedecido sem violentar as regras democráticas”. Esta concepção revela o ranço autoritário das mudanças propostas. Um governo que não se faz respeitar por suas propostas ou programa é que precisa recorrer a casuísmos ou golpe branco contra a liberdade partidária. Em vez de fazer-se respeitar pela força dos argumentos, recorre ao argumento da força para se fazer obedecer por uma maioria circunstancial e instável.

Se as exigências do artigo 14 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, que estabelece a cláusula de barreira em 5%, tivessem sido aplicadas nas eleições de 1990 e 1994, somente teriam tido direito de constituir bancada na Câmara dos Deputados 8 partidos. Ainda assim estes partidos teriam que satisfazer o segundo critério: ter conseguido votação de, no mínimo, 2% do eleitorado em 9 estados.
Se tais exigências tivessem sido aplicadas nas eleições de 1982 para a Câmara dos Deputados, não teria assento naquela casa o PDT, o PTB e o PT, que obtiveram respectivamente 4,94%, 3,77% e 3,01% dos votos.

Quadro 5 (p. 25)

Em vez de contribuir para a democracia, essas mudanças alimentam o autoritarismo e criam minorias superficiais. Em vez de legendas fortes, criam-se grandes partidos sem unidade e sem programa. No lugar da liberdade partidária, nascerão frentes políticas sem feição, sem perfil claro, coesionadas pelo fisiologismo e pela pressão das cúpulas.

Proibição das coligações proporcionais

Este é outro mecanismo que, combinado com o voto distrital misto e a cláusula de barreira, forma o conjunto de medidas que tendem a golpear as minorias e a democracia.
O único objetivo de se proibir a realização de coligações para eleições parlamentares é impedir que se elejam candidatos expressivos, mas de partidos que isoladamente não conseguem atingir o quociente eleitoral.

A decisão de coligar ou não é uma decisão política. Nenhum partido está obrigado a coligar, seja nas eleições majoritárias, seja nas proporcionais. Se por uma ou outra razão esta coligação não é do interesse de determinado partido, basta que ele decida livremente não se coligar.

O que é inadmissível é que se queira incorporar uma proibição legal às coligações proporcionais. O único objetivo desta medida é dificultar, ao máximo, a representação parlamentar dos pequenos partidos. É inacreditável que membros de partidos progressistas estejam adotando este conjunto de teses contrárias à democracia e às forças populares.

Fidelidade partidária e voto facultativo

Sob a alegação de que é necessário assegurar a coesão partidária, defende-se hoje a perda de mandato do parlamentar que não seguir a orientação partidária. Em primeiro lugar, deve-se destacar que a coesão partidária decorre da unidade política em torno de um programa claramente definido. É esta unidade que assegura a coesão de um partido. As medidas tendentes a assegurar a disciplina interna do partido devem ser reguladas pelos estatutos de cada agremiação e não por uma norma que interfira no livre funcionamento partidário.

Cabe ressaltar que a proposta de perda de um mandato em decorrência do parlamentar não ter seguido a orientação partidária é uma pena excessivamente severa, até porque, se o parlamentar deve explicações ao seu partido, ele também as deve ao seu eleitorado. E diante desta contradição, ele poderá ser obrigado a fazer a opção de ficar contra o seu eleitorado, seguindo uma orientação partidária que fere os interesses do povo.

Quanto ao voto facultativo, há de se levar em conta as condições concretas de nosso país. Não estamos num país altamente desenvolvido e com o grau de formação cultural e política bastante elevado. Em sociedades deste tipo, o exercício da cidadania deixa de ser uma obrigação para ser um direito que o cidadão procura exercer em seu interesse.

Nas condições concretas do Brasil, o voto facultativo terá como consequência uma redução drástica do número de eleitores. E o que é mais grave: ampliará a influência do poder econômico no processo eleitoral. Os candidatos endinheirados procurarão atrair o eleitor para votar à custa do poder do dinheiro. Isso agravará em muito as distorções inerentes ao processo político. Reforma democrática do Estado

A crítica à reforma política apresentada pelos setores neoliberais não significa uma concordância com a atual estrutura do Estado brasileiro. O problema não está em reformar ou não reformar o Estado, mas sim em reformar para ampliar ou para restringir a democracia.

Uma questão-chave na democracia é a soberania popular. A democracia se exercita de fato quando o povo tem mecanismos eficientes para expressar sua vontade.

O Estado brasileiro é elitista, representativo das minorias. A maioria dos trabalhadores tem uma representação inexpressiva. Basta analisar o número de representantes dos trabalhadores no Congresso Nacional. A democratização do país, portanto, se expressa pela criação de mecanismos que ampliem a representação do conjunto da sociedade.

Vários fatores contribuem para que haja uma distorção no processo político brasileiro. Um deles é a influência do poder econômico no processo eleitoral. Os grupos econômicos financiam suas candidaturas e com isso garantem o perfil da maioria da representação parlamentar. Torna-se necessário adotar medidas para combater a influência do poder econômico e estabelecer limites para os gastos com campanha, seja obrigando a divulgação das fontes financiadoras, seja proibindo o financiamento de candidaturas por empresas. Estas deveriam contribuir com o Fundo Partidário, podendo inclusive haver estímulos para que isso ocorra através da dedução de tais contribuições no Imposto de Renda.

“Reformas, sim. Mas para ampliar a democracia e combater a influência do poder econômico”.

Outro fator de grave distorção é a manipulação da mídia em favor dos candidatos que representam grupos econômicos. Os meios de comunicação recebem concessão do poder público. Em decorrência disto, devem ser estabelecidas normas disciplinadoras da difusão nos meios de comunicação. É inaceitável que tais meios sejam utilizados apenas com o objetivo de obter fontes de lucro sem contribuir para a formação cultural e política do povo. Torna-se indispensável a democratização neste setor. A influência dos meios de comunicação e, em particular, da Rede Globo de Televisão na formação da consciência das pessoas condiciona seriamente todo o processo político.

É indispensável combater a tentativa de acabar com o horário eleitoral gratuito, importante conquista democrática que os concessionários dos meios de comunicação querem liquidar para aumentar os seus lucros e manipular livremente a consciência dos cidadãos. Além de serem totalmente livres para fazer sua programação, os meios de comunicação no Brasil não pagam praticamente nada pela concessão recebida.

É necessário estabelecer diretrizes para a atividade dos meios de comunicação, particularmente no período das campanhas eleitorais, com a adoção de medidas rigorosas para aqueles que favoreçam alguns candidatos em detrimento de outros.

A adoção do voto em branco para definir o quociente eleitoral é outro casuísmo antigo. Não se conhece exemplo na legislação de outros países no mundo em que o voto branco seja contado para definir o quociente eleitoral. O resultado disto é que a contagem do voto branco eleva muito o quociente eleitoral e impede que os partidos pequenos elejam seus candidatos. Até 1988, as Constituições brasileiras não tratavam da questão dos votos válidos. Ao incluir a eleição em dois turnos, a Constituição de 1988 definiu que os votos nulo e branco não são votos válidos para eleição de candidatos a presidente, governador e prefeitos de cidades de mais de 200 mil habitantes. Com isto criou-se uma situação absurda, em que no mesmo sistema eleitoral o voto branco é válido para a contagem do quociente eleitoral dos parlamentares e não é válido para as eleições majoritárias referidas. O pano-de-fundo desta questão é evidentemente político. Tal mecanismo favorece os partidos maiores, que se beneficiam das sobras eleitorais dos partidos ou coligações que não atingem o quociente eleitoral. A retirada do voto branco na definição do quociente eleitoral é uma importante medida para aperfeiçoar o sistema eleitoral proporcional no país.

Temos que fazer reformas, mas para aprofundar a democracia, combater a influência do poder econômico e limitar a influência dos meios de comunicação no processo político.
Os fatos comprovam que está em curso um grave atentado contra a democracia. As forças democráticas, estejam em que partido estiverem, têm que se unir e defender as conquistas políticas incorporadas na Constituição de 1988 e lutar por uma reforma democrática do Estado brasileiro.

* Advogado e deputado federal pelo PCdoB de Goiás.

Notas

(1) Jornal do Brasil, 17-04-1995, e Diário do Comércio, Minas Gerais, 06-04-1995.
(2) BOURON, Atílio A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina, Paz e Terra.
(3) BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia – Uma defesa das regras do jogo, Paz e Terra.
(4) SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso – Máscaras institucionais do liberalismo oligárquico, Ópera Nostra.
(5) “Modelos alternativos de representação política no Brasil e regime eleitoral, 1821 –1921”, Cadernos da UnB, pronunciamento de Tancredo Neves em seminário realizado em setembro de 1980.
(6) NICOLAU, Jairo Marconi. Sistema eleitoral e reforma política, Foglio Editora.

Fontes consultadas

(1) Legislação Eleitoral e Partidária, Senado Federal.
(2) CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O que é o voto distrital.
(3) LIMA, Haroldo. Avançar ou recuar na democracia.
(4) Textos elaborados pela assessoria da liderança do PCdoB na Câmara Federal.
(5) Lei Eleitoral da República Federal da Alemanha, Centro de Estudos Konrad Adenauer.

EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26