Nos últimos dois anos muito se tem dito sobre a Guerrilha do Araguaia, e novos personagesn surgiram por causa das iniciativas políticas de familiares de desaparecidos durante o regime militar. Tais iniciativas culminaram na elaboração de um projeto de lei do Executivo Federal reconhecendo a morte de 136 militantes políticos sob a responsabilidade do Estado, e propondo aos seus familiares o pagamento de indenizações (lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995). Dos nomes constantes na lista anexa à referida lei, 46 eram de ex-guerrilheiros do Araguaia.

O retorno ao Araguaia

Quando visitei a região no primeiro contato com a população, era visível a angústia de cada um com quem conversávamos (em algumas viagens estava não somente eu, mas também o historiador Gilvane Felipe). Havia algumas exceções, como a professora, lavadeira e parteria D. Joaquina, de Xambioá, que foi quem primeiro manteve contato com familiares de João Carlos Haas, a respeito da existência de corpos no cemitério de Xambioá. Isso possibilitou recolher as ossadas que, mais tarde, comprovou-se serem da guerrilheira Maria Lúcia Petit e de outros guerrilheiros. Mas havia um misto de angústia, causada pelo temor de se referir à guerrilha, devido ao trauma causado pela ação violenta das Forças Armadas, e a ansiedade de quem gostaria de contar um ahistória que envolve personagens como Osvaldão (Osvaldo Orlando da Costa) e Dina (Dinalva Oliveira Teixeira). Percebíamos um brilho no olho da pessoas que entrevistávamos, principalmente ao citarmos nomes de guerrilheiros que, até o momento em que se iniciou a guerrilha, viviam normalmente como moradores da região, sem despertar suspeita – quando muito, despertando simpatia e amizade, porque esse era o objetivo deles até aquele momento: ganhar a confiança da população até se iniciar o trabalho político.

Mas as revelações sobre a Guerrilha do Araguaia, divulgadas pela imprensa em diversos momentos, aliadas à repercussão que se criou em torno da divulgação de dossiês e depoimentos de militares sobre a repressão ao movimento, gradativamente foram quebrando a resitência da população para se referir à guerrilha (1). Em muitos depoimentos posteriores, o que se viu, na verdade, foram inúmeras pessoas não somente de dispondo a contar o que sabiam, e em detalhes, como fazendo questão de expressar orgulho ao dizerem que conheceram e foram amigas de tal ou qual guerrilheiro.

Quando percorremos a região em uma segunda ou terceira vezes, flíam com muito mais naturalidade as informações sobre os acontecimentos que marcaram aquele movimento. De início, todos os que por ali apareciam eram “suspeitos”, permanecia a sídrome dos “secretas”, o temor de que todos os desconhecidosm fossem elementos disfarçados do Exército, pois foi dessa forma que foram presos e torturados centenas de moradores da região no período da guerrilha. Mas a constante presença de jornalistas e de familiares dos guerrilheiros desaparecidos, que ali foram em busca de informações, quebrou, aos poucos, o gelo que existia inicialmente. Quando lá estivemos em janeiro de 1994 alguns ainda se escondiam para não falar sobre o assunto, mas esses já eram as exceções. Colhemos preciosas informações, muitas inéditas, e percebemos que, apesar de tudo que se falara sobre a Guerrilha do Araguaia, começávamos, a partir daquele momento, a conhecer de fato o que fora o mais importante movimento armado de resistência à ditadura militar.

Percebíamos que a Guerrilha do Araguaia tivera uma dimensão muito maior do que aquilo que já se conseguira registrar, muito embora tivéssemos colhido depoimentos importantíssimos, como o do ex-guia do Exército José Veloso de Andrade, que nos fez revelações inéditas e confirmou fatos que para nós eram tidos apenas como evidências sem muitas comprovações. Passamos a compreender, pela vivência dessas idas à região e pelo contato com a população, que as barbaridades e atrocidades cometidas contra a população e guerrilheiros feitos prisioneiros foram muito maiores do que podíamos imaginar.

Da lista apresentada oficialmente, em anexo à lei que estabelece as indenizações necessárias aos familiares dos desaparecidos políticos, constam os nomes de três moradores da região, sendo dois camponeses e um barqueiro. Os dois primeiros se integraram à guerrilha, e o terceiro, Lourival de Moura Paulino, fora preso pelo simples fato de ser amigo dos guerrilheiros. Foi preso, torturado e morto. Quanto aos outros dois, Antônio Alfredo Campos e Luís Vieira, as informações obtidas confirmam que suas mortes ocorreram em emboscadas, em dias e locais diferentes.

A inclusão de seus nomes nessa lista possibilitava, além do reconhecimento de suas mortes através da emissão do atestado de óbito, que seus familiares recebessem uma indenização, cujo valor varia de acordo com a idade que cada um tinha na época. Sem dúvida, um alento para aquelas fam;ilias, que, durante anos tentaram obter informações que comprovassem as mortes dos guerrilheiros, a fim de que o Estado se responsabilizasse por elas e pela localização dos corpos. A lei, em si, não possibilitava isso – dar à família o direito de oferecer um funeral aos seus entes queridos, de acordo com suas crenças religiosas. Mas abriu caminho para especulações em torno dos desaparecidos políticos, e, especificamente, sobre a Guerrilha do Araguaia, de tal forma que, em pouco tempo, páginas de inúmeros jornais e revistas estamparam informações cruciais, inclusive de fontes militares. Isso deu um novo ânimo a quem buscava incansavelmente a localização dos corpos de guerrilheiros, fazendo jus à história de tão importante movimento.

A Guerrilha do Araguaia deixa de ser assunto proibido. Pelo fato de assim ter sido por tanto tempo, a possibilidade de falar, de dizer que conhecera os “paulistas”, era um alívio, e hoje isso já acontece com naturalidade. Nem mesmo a presença dos repórteres da TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará, que estava presente para documentar o encontro com a viúva de um dos guerrilheiros, intimidava mais.

Em fevereiro de 1996, em São Domingos,mantive contato com dona Joana Almeida, viúva de Luís Vieira, morto numa emboscada possivelmente em 1973, e mãe de José Vieira, filho que aderiu ao movimento junto com o pai, tendo nesse mesmo ano sido preso pelo Exército. Mais animada do que na última vez em que ali estivemos, dona Joana já sabia da lei e da indenização. També, presa por três meses, dona Joana se emociona e se revolta ao dizer que perdeu o trabalho de anos de vida. A possibilidade de ter acesso à indenização reanimou-a, e, embora analfabeta, em poucos dias aprendeu a escrever seu nome para tirar carteira de identidad e assinar os documentos necessários. Ali mesmo, em seu casebre desprovido de quase tudo, ela deu sua primeira entrevista para a televisão. Era a primeira viúva de um ex-guerrilheiro, camponês da região, a fazer isso. Definitivamente, frustrava-se a intenção de impor uma amnésia coletiva à população. A história da Guerrilha do Araguaia não se limitava mais ao interesse acadêmico, ou às análises políticas: passava a ser notícia, e o que for a represado por tanto tempo, por força das intimidações e distorções dos fatos, rompia os diques e em breve traria à tona acontecimentos trágicos causados por quem venceu a batalha, mas perdeu a guerra.

Pude ali mesmo ouvir um depoimento precioso de José Vieira, que também optara por entrar na mata com os guerrilheiros. Ela a primeira entrevista que ele dava, e confirmou que Piauí ( Antonio Pádua Costa ) fora preso com vida junto com ele: “Olha, pra mim ele foi legal… Ele me garantiu que quando eu quisesse ver a minha mãe, que eu falasse para ele que ele vinha comigo. E isso ele veio mesmo, ele falou que vinha e quando eu falei que queri ver a mamãe el veio.(…) Foi ai que nós foi preso”. Como se sabe Piauí é um dos que constam an lista dos “desaparecidos”.

Ainda em seu depoimento, José Vieira reafirmou o que sua mãe já dissera”O que eu acho é que o Exército tava fazendo mais terror do que os terroristas, porque eles entravam tomando as coisas do pessoal, dos moradores, pra o pessoal do mato não se alimentar, e aí matavam os bichos, era quem estava estraagando tudinho era o Exército.(…) Queimavam as casas com os bagulhos. Se ficasse alguma coisa na casa, porque os moradores as vezes saiam e não podiam voltar, aí eles entravam lá e queimavam. Nossaa casa mesmo foi uma qwue foi queimada, nossos bagulhos quimou, que tava em casa…”2.

Guias foram torturados para guiar o exército mata

De São Domingos me dirigi até Brejo Grande, onde o Sr José Veloso de Andrade, camponês, ex-guia do Exército, já era quase um velho conhecido. Passamos com ele várias horas, ma última vez em que alí estivemos, eu e o historiador Gilvane Felipe, e pudemos ouvir um longo e esclarecedor depoimento . Ele contou que muitos dos guias foram intimidados e chegaram a sofrer espencamento e torturas, para só assim concordar em guiar as tropas ao interior das matas – uma história diferente dos “bate paus”, que visavam obter dividendos e que se constitui num séquito, armado a serviço das tropas militares, transformando-se em carrascos, auxiliando também numa prática hedionda: a degola.

O Sr. José Veloso mostrou-se menos desconfiado, reafirmpu quer vários guerrilheiros foram presos com vida e muitos enterrados na base militar em funcionamento na Transamazônica, no lugarejo denominado Bacaba (hoje Fazenda Bacaba). Chica ( Sueli Yomiko Kanaiama), Maridiana ( Dinaelza S. Coqueiro), Beto ( Lúcio Petit da Silva), Valdir ( ( Uirassu de Assis Batista). Pedro Carretel, Rosinha ( Maria Celia Corrêa), Sônia ( Lucia Maria de Souza), Fogoió ( José Humberto Bronca). Landim ( Orlando Momenté), Dina ( Dinalva O. Teixeira) foram alguns dos guerrilheiros vistos por seu Veloso nas mãos do Exército. Além da Bacaba, ele apontou outros locais onde teriam sido enterrados corpos de guerilheiros: no Caçador, próximo a São Domingos, e num grotão denominado Imbaubal, a 30 kilômetros de Brejo Grande, do lado direito da Transamazônica, na direção Marabá-Imperatriz.

É preciso destacar que na primeira entrevista feita com o Sr José Veloso ele fez duas afirmações, bastante enfatizadas, quenos ajudam a chegar a algumas comprovações. A primeira delas foi o testemunho de que Dina foi morta em combate: “Quem falou, quem informou, mentiu. Ela não foi morta, ela foi presa”.3 Depois o Sr Veloso nos disse ter tomado conhecimento de que Dina for a levada para Brasilia. Essa informação também nos foi passada por um ex-morador da região, atualmente residindo em Araguaína (TO), na época fazendeiro, que pediu para não ser identificado pela relação que mantém ainda com oficiais do Exército. De acordo com ele, Dina foi levada para o Pelotão de Investigação Criminal, PIC, de triste lembrança por ser um conhecido local de torturas, e para onde alguns moradores da região e guerrilheiros presos na primeira e sugunda campanha eram levados.

Vários moradores da região sumiram após o cerco do exército

Outra informação seria depois comprovada na série de reportagens publicadas pelo jornal O Globo: a de Vanu, Manoel Leal, sabiam onde estavam enterrados vários corpos de guerrilheiros. Tanto ele quanto Geraldo Martins, ex-delegado de São Domingos, foram responsáveis pela prisão da gurrrilheira Rosinha. O último recusou-se a nos passar qualquer informação, mas posteriormente confirmou aquilo que o Sr Veloso dissera, num depoimento gravado para o SBT-Repórter, que foi ao ar no dia 4 de julho. Na reportagem ele mostra um local, na Fazenda Bacaba, onde alguns guerrilheiros foram enterrados – o que confirma também as indicações feitas por José Veloso. Outra referência feita pelo SR Veloso que se comprovou nas reportagens de O Globo com o depoimento de Vanu diz respeito a emboscada feita no local conhecido como “Caçador”, onde foram mortos três guerrilheiros, e um, Nunes, foi feito prisioneiro, embora ferido. Segundo Veloso, quem acompanhava de fato o Exército naquela expedição que culminou na emboscada, no momento em que os guerrilheiros se preparavam para sair da roça com alguns porcos mortos, era Vanu. Ressalte-se e isso é importante para que possamos confirmar a veracidade das informações e entender porque os corpos desses guerrilheiros não foram encontrados – que o depoimento do Sr José Veloso de Andrade nos foi concedido dois anos antes das reportagens de O Globo, confirmando-se com o depoimento de Vanu.

Essa minha última estada com o velho Veloso serviu para confirmar o que le já havia nos dito antes, e também para obter algumas informações sobre os demais camponeses que se integraram á guerrilha, e dos quais não havia nenhuma informação, Foi possível descobrir que Frederico de fato desapareceu por muito tempo, após ter sido preso, e quando reapareceu apresentava distúrbios mentasi, situação que vive até hoje. Luisão ( conhecido como luis Viola também sobreviveu, mas morreu a cerca de 7 anos, de enfisema pulmonar. Pedro Carretel, visto por vários moradores de São Domingos quando passou preso por aquela localidade, não for a incluido na lista elaborada pela Comissão de Desaparecidos Políticos, por não ter sequer conhecimeto de seu verdadeiro nome. As informações que obtive na região dão conta de que ele não deixara nenhum filho ou filha, e que a sua esposa falecera em 1994, não se tendo, também, conhecimento de nenhum parente consanguinio que estivesse dentro dos crit’rios estabelecidos na lei para ter acesso à indenização. Sobre os demais, cujos nomes constam na lista dos familiares de desaparecidos no Araguaia e em cartazes publicados pelo PCdoB, foi dificil obter informações, por não se ter o nome completo, mas paenas o apelido. O certo é que vários camponeses e moradores da região desapareeram após o cerco feito na terceira campanha, ou porque de fato integravam a guerrilha, ou porque não resistiram as torturas, acusados que eram de serem cúmplices dos guerrilheiros.

Dali me dirigi para São Geraldo e Xambioá. Em São Geraldo, que à época da guerrilha era um pequeno povoado – muitas pessoas creditam o seu crescimento ao movimento guerrilheiro, à atenção que logo após a guerrilha foi dada à região, embora por pouco tempo -, pude encontrar o SR Amaro Lins. Hoje com 75 anos , o Sr Amaro tem uma militância antiga no PCdoB, sendo remanescente do antigo PCB. Em 1962 ele seguiu a corrente que reorganizou o Partido Comunista do Brasil. Vivendo por muito tempo na clandestinidade, desde o golpe militar de 1964, ele optou por viver no Sul do Pará, as mrgens do Rio Araguaia, e servir de base de apoio no precesso de preparação da guerrilha. No ano de 1968 ele chegou em Conceição do Araguaia, onde se encontrou com Paulo Rodrigues ( Paulo) e Daniel ( Doca). Em seguida foi viver na região de Caianos, em frente a Araguanã ( norte de Goias), onde les montaram roça.

Mas “seu” Amaro quebrou uma das regras estabelecidas para os militantes comunistas: apaixonou-se por uma joven da egiào e a levou para a roça, atitude que nào era permitida para aqueles que fizeram a opção de preparar a guerrilha. Desligado do destacamento, por ter escolhido ficar com Neusa, sua nova companheira, ficou à margem da preparação, embora continuasse a manter contato com os antigos companheiros, principalmente Paulo, Doca e a Dina.

Preso logo na primeira campanha, não negou por quais motivos resolvera ir para a região,e, apesar de estar a margem da preparaçào deste ano de 1970, isso não foi suficiênte para livra-los da tortura, dos choques elétricos, dos espencamentos e do terror psicológico. Quinze dias depois de preso foi liberado, mas teve de partir de então a sua casa constantemente vigiada por tropas militares. Na terceira campanha, mais uma vez o SR Amaro foi feito prisioneiro, passando pelo pau-de-arara e por novas e angustiantes sessões de choques elétricos.

A angústia era grande, já que, embora tivese feito a opção de ficar com sua companheira, ele não abdicara das idéias que por tanto tempo guiaram sua militância e aonda o mantinham ligado ao partido:

“- Bem, naquele período eu só pensava em tudo estava perdido pra mim. Companheiros tinham sumido, eles… a história é que dizia que tinha acabado com tudo. Então eu fiquei sózinho na região,e, como se diz, sem poder falar pra ninguém, contar, trocar idéia com ninguém. Só eu (…) nesse período eu já tinha contado tudo, quanmdo eu saí da prisão em Xambioá, cheguei em casa, eu previni a neuza e aí, como se diz, rezei todo o catecismo para ela, contei toda a (..) qual era nossa finalidade, o que é que eu pretendia, quem era eu, enfim contei toda a história paa ela. E ela combinou comigo até de entrar no grupo de guerrilheiros. Quando o Paulo chegou teve conversando comigo, fez a proposta pra mim – mas o Juca – para entrar dentro da mata, eu só não entrei porque tinha uma criança de dois anos”.

Atualmente “seu” Amaro é presidente do Partido Comunista do Brasil em São Geraldo, cidade para onde mudou e na qual fixou residência após ter conhecido Paulo Fonteles, de quem ele fala com admiração. A partir de então assumiu a responsabilidade de construir o partido naquela região. Neuza sua companheira, deve ser candidata a vereadora, e tem destacada atuação no município onde lidera a organização das mulheres.

Em Xambioá localizei a viúva de Louruval de Moura Paulino, dono de um barco que utilizava para transportar moradores da região através do rio Araguaia. A amizade com os comunistas o tornou suspeito, bem como muitos outros barqueiros que durante anos transportaram os “paulistas”, assim como faziam com tantos que precisavam daquele meio de trasporte. A neurose da guerra ampliou sobremaneira a truculência da repressão, que passara a ver em cada morador um inimigo em potencial. E o barqueiro Lourival, amigo de Osvaldão, se tornou a primeira vítima das torturas e do brutal terror que começava a se abater sobre a população. Lourival Paulino apareceu morto na delegacia de Xambioá, enforcado… Segundo o laudo oficial, for a suicídio, mas ninguém acreditou nessa vesão. De sua casa, a poucos metros da delegacia, dona Maria Miranda apontou o último percurso percorrido por seu companheiro, escoltado por dois soldados do Exército. “Foram em direção a base militar, e ningém podia chegar perto dele”. Depois, só foi visto após a sua morte. Doona Maria já sabia da inclusão do nome de Lourival Paulino na lista divulgada pela comissão encarregada por lei de analisar o caso de cada um dos desaparecidos políticos. Seu filho já estava providenciando a documentação que lhe possibilitaria ter acesso a indenização.

As viagens à região confirmam a hipótese de que havia um forte envolvimento da população com os guerrilheiros, e não foram poucos aqueles que se dispuseram a ajudá-los. Isso derruba a tese de que o movimentoi se caracterizou pelo foquismo, sendo essa uma das principais razões para aqueles que equivocadamente partiram por esse camino para combater a Guerrilha do Araguaia no final da década de 70. Por outro lado, houve um forte componente das idéias maoístas na preparação do movimento, o que sempre foi visto de forma reticente, talvez com excessiva cautela, pelo que foi aquele acontecimento num momento de transformações revolucionárias e no auge da Guerra Fria. A experiência da revoulução chinesa e a estratégia tática adotadas para a sua vitória deveriam ser estudadas por qualquer organização revolucionária. É evidente que são realidades completamente distintas, comparando-se Brasil e China, sob diversos aspéctos, e seguramente é aí que devem ser procuradas as debilidades que acometeram o movimento. Mas são questões a serem analisadas tendo-se em vista a experiência que deve ser acumulada a partir das das reflexões que se façam sobre a Guerrilha do Araguaia, levando-se em conta, claro, as condições políticas- sociais em que vivia o país naqule momento. E não se deve temer isso, pois a Guerrilh já faz parte da História, e os nomes dos guerrilheiros, hoje já são conhecidos em todo o Brasil.

A guerrilha redescoberta

A Guerrilha do Araguaia deve ser estudada estabelecendo um corte, separando-a em duas fases distintas, embora as Forças Armadas tenham reprimido o movimento em três campanhas. Nas duas primeiras campanhas é possível dizer que houe uma guera com ação dos dois lados. Os guerrilheiros, inicialmente surpreendidos, demonstraram que a pouca preparação foram sufucientes para infligir várias derrotas às tropas militares. Estas, por sua vez, perceberam que incorrerram no erro brutal de utilizar recrutas para o combate na selva, demonstrando desconhecimento e subestimação em relação ao inimigo que deveriam destruir.

Contudo, a partir da trégua estabelecida de outubro de 1972 a outubro de 1973, periodo que serviu para um trabalho de preparação política por parte dos guerrilheiros e de aplicação de novas táticas, treinamento antiguerrilha e garantia de estruturaçào do aparato repressivo, com a construção de estradas e quartéis por parte das Forças Armadas, ocorreu uma lateração da estratégia montada inicialmente por estas. Com essa nova mudança de postura em rtelação ao combate à guerrilha, estabaleceu-se o cerco em toda a área abrangida por ela, objetivando o aniquilamento de todos os que participaram do movimento. As ordens de Brasilia determinavam que nào deveria haver sobreviventes.

Uma das medidas adotadas para que essa estratégia fosse vitoriosa foi cortar qualquer ligação entre comando militar da guerrilha e da direçào do Partido. Procedeu-se a uma verdadeira perseguição à direção do PCdoB nas cidades, até que o principal elo de ligação foi cortado, com o assassinato de Carlos Danieli. Nesse mesmo período, entre dezembro de 1972 e março de 1973, foram também presos e mortos sob tortura Lincoln Oeste, Luis Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque.

Sem contato com a direção do Partido, e submetidos a um cerco do qual o comando militar da guerrilha não tinha a verdadeira dimensão, a terceira campanha significou, na verdade, uma verdadeira caçada. Apesar da bravura dos guerrilheiros, as novas táticas adotadas pelas Forças Armadas, com destaque para a utilização do Centro de Informações do Exército, sob o comando do major Sebastião de Moura Curió, visavam eliminar um a um dos guerrilheiros, em ações brutais que não pouparam nem mesmo a população local, com a prisão, tortura e morte de vários moradores da região.

O que foi feito com os corpos dos guerrilheiros, muitos dos quais mortos sob torturas, ou executados após serem presos? Que ações podem ser caracterizadas como sendo terroristas: as dos guerrilheiros ou as dos militares: envolvidos na repressão ao movimento? Por que, passados 24 anos do início da guerrilha, as Forças Armadas não admitem abrir os seus arquivos, e se negam a falar sobre o assunto? Qual o aparato militar utilizado no combate ao movimento? Sabe-se apenas que o efetivo ali empregado, em termos de mobilização de tropas, só foi superado, neste século, pela campanha na Segunda Guerra Mundial. São indagações como essas que tiram a guerrilha da história e a jogam nas manchetes dos noticiários, tornando cada vez mais atual a discussão de um fato que as Forças Armadas queriam ver definitivamente sepultado – algo praticamente impossível, pela própria dimensão do acontecimento e pelo absurdo que é ver dewzenas de familiares dedicarem suas vidas à busca de informações que lhes possibilitem localizar os restos mortais daqueles que ali morreram.

A imprensa brasileira tem se dedicado a um importante trabalho investigativo sobre a Guerrilha do Araguaia, e assim tem conseguido dossiês sigilosos que possibilitam, aos poucos, estruturar definitivamente esse importante capítulo de nossa história.

Há cerca de três anos, dois jornalistas do Jornal do Brasil publicaram uma série de reportagens, após terem acesso a documentos secretos do Exército (4). Etevaldo Dias e Ronaldo Brasiliense relataram o que viram, e chegaram à conclusão de que existiu aqui no Brasil “uma espécie de mini-Vietnã e, por conveniência, essa história nunca foi contada direito”.

Mas foram as reportagens recentes publicadas pelo jornal O Globo (6) que reacenderam o interesse na Guerrilha do Araguaia e levaram o assunto aos principais telejornais brasileiros, com repercussão no exterior, através da rede de televisão CNN. Partindo de um dossiê que estava em mãos de um militar não identificado, responsável por fotografar e arquivar informações sobre os guerrilheiros, os jornalistas apresentaram dados e fotos importantes, e a partir daí desenvolveram uma série de entrevsitas com familiares dos desaparecidos, militares, ex-guerrilheiros, dirigentes do PCdoB e moradores da região, trazendo novidades através de depoimentos de ex-guias, alguns inéditos, como o de Manuel Leal (Vanu), que apontou o DNER de Marabá como sendo o local em que alguns guerrilheiros teriam sido enterrados, fazendo referência direta a Nunes (Divino Ferreira de Souza) e João Araguaia (Demerval da S. Pereira). Outros locais também apontados como tendo sido cemitério clandestino de guerrilheiros que foram mortos sob torturas confirmam os depoimentos colhidos por nós, e já estavam incluídos em nosso trabalho. Também comprovam inúmeras evidências levantadas. As principais delas nos dão a absoluta certeza das execuções sumárias e das mortes sob tortura de guerrilheiros presos com vida.

Isso possibilitou que a Comissão Especial que investiga o desaparecimento de militantes políticos destacasse determinados locais, a fim de proceder a escavações para encontras ossadas de guerrilheiros, a partir dos depoimentos dados. Seguramente, e pela quantidade de pessoas que surgem para reafirmar as indicações que são feitas e amplamente divulgadas pela imprensa, não é fantasia nem invenção tudo o que até agora foi dito pelos moradores da região e por alguns antigos guias do Exército, que testemunharam diversas mortes e prisões.

Contudo, as escavações feitas nos locais indicados pelo guia Manuel Leal (Vanu) podem representar uma frustração para os familiares que tentam pôr um fim a uma agonia que não se encerrará até que os corpos sejam localizados. Além do DNER de Marabá, outros locais serviram de cemitérios clandestinos, para enterrar principalmente aqueles que foram mortos sob torturas ou executados.

Aqueles que eram mortos dentro da mata ali mesmo ficavam, alguns nem sequer eram sepultados, e outros tinham a cabeça e as mão decepadas para que pudessem ser identificados, visto que era difícil retirar os corpos de locais inacessíveis aos helicópteros ou a animais. Vários depoimentos, inclusive de ex-militares, comprovam essa prática (7). Os outros locais que serviram como cemitérios clandestinos forma o próprio cemitério de Xambioá, em valas isoladas (já identificadas, sendo os restos mortais retirados); a cabeceira da pista de pouso da base militar de Xambioá; o antigo acampamento da Mendes Júnior ( que também serviu como base militar), onde hoje existe a Fazenda Bacaba; a Transamazônica, altura do quilômetro 100, também próximo à pista de pouso; e as margens de igarapés, em locais de fácil decomposição dos corpos.

Mas são bastante fortes as possibilidades de não se encontrar nenhum vestígio de ossadas nesses locais, à excessão do cemitério de Xambioá, logicamente por ser um local que não despertaria a atenção. Isso não significa, no entanto, que os depoiemntos de ex-guias sejam falsos. As evidências tendem a se confirmar nas declarações do ex-capitão aviador a atual coronel da reserva da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral. Ele afirmou em seu depoimento à Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados que uma verdadeira operação de guerra foi montada secretamente para poder fazer a “limpeza da área”, retirando-se, no fim do ano de 1994 e início de 1995, todos os corpos que teriam sido enterrados em locais clandestinos, levados então para a serra das Andorinhas, onde foram queimados.

Essa operação macabra, desenvolvida por agentes do Centro de Informações do Exército, obviamente jamais seria feita às vistas de moradores da região, como nem mesmo a tropa ali estacionada tomou conhecimento, visto que o objetivo era impedir que permanecessem vestígios que algum dia viessem a comprovar a existência de uma verdadeira guerra patrocinada por oficiais das Forças Armadas brasileiras, que receberam carta branca do governo militar para executar prisioneiros e torturar inocentes. Exatamente por essa razão, mesmo aqueles guias ou bate-paus que acompanharam ou serviram de coveiros não podiam tomar conhecimento de que os corpos enterrados nos locais por eles indicados foram um dia retirados, a fim de se apagar da memória do povo toda aquela história.

A Guerrilha do Araguaia jamais vai cair no esquecimento, apesar disso. Ela se constituiu num importante momento da resistência popular à intolerância política, ao totalitarismo da ditadura militar. A inserção da guerrilha na história visa demonstrar que muitos se insurgiram contra a intolerância política que se abateu sobre nosso país, e pagaram com suas vidas um alto preço para que nós pudéssemos hoje desfrutar das liberdades políticas, embora a luta por democracia e liberdade seja uma jornada infinita.

ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO é Mestre em História, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás e autor da dissertação de mestrado A esquerda em armas: história da guerrilha do Araguaia.

Notas

(1) A partir de 1992, tivemos reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia em jornais e revistas de grande circulação nacional, que trouxeram novos depoimentos, dossiês e fatos que contribuíram para elucidar e comprovar várias evidências que apontavam as barbaridades cometidas no combate ao movimento guerrilheiro: Jornal do Brasil (de 22 a 24/3/92); Veja (18/11/92); Manchete (06/02/93); Veja (13/10/93).

(2) Depoimento de José Vieira, camponês em São Domingos do Araguaia, filho do camponês-guerrilheiro Luís Vieira, concedido a Romualdo Pessoa Campos Filho, naquela cidade, em 25 de fevereiro de 1996.

(3) Depoimento do sr. José Veloso de Andrade, camponês, ex-guia do exército no combate à guerrilha, morador de Brejo Grande do Araguaia. Concedido a Romualdo Pessoa e Gilvane Felipe, em 19/01/94.
cabeça e as mão decepadas para que pudessem ser identificados, visto que era difícil retirar os corpos de locais inacessíveis aos helicópteros ou a animais. Vários depoimentos, inclusive de ex-militares, comprovam essa prática (7). Os outros locais que serviram como cemitérios clandestinos forma o próprio cemitério de Xambioá, em valas isoladas (já identificadas, sendo os restos mortais retirados); a cabeceira da pista de pouso da base militar de Xambioá; o antigo acampamento da Mendes Júnior ( que também serviu como base militar), onde hoje existe a Fazenda Bacaba; a Transamazônica, altura do quilômetro 100, também próximo à pista de pouso; e as margens de igarapés, em locais de fácil decomposição dos corpos.

Mas são bastante fortes as possibilidades de não se encontrar nenhum vestígio de ossadas nesses locais, à excessão do cemitério de Xambioá, logicamente por ser um local que não despertaria a atenção. Isso não significa, no entanto, que os depoiemntos de ex-guias sejam falsos. As evidências tendem a se confirmar nas declarações do ex-capitão aviador a atual coronel da reserva da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral. Ele afirmou em seu depoimento à Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados que uma verdadeira operação de guerra foi montada secretamente para poder fazer a “limpeza da área”, retirando-se, no fim do ano de 1994 e início de 1995, todos os corpos que teriam sido enterrados em locais clandestinos, levados então para a serra das Andorinhas, onde foram queimados.

Essa operação macabra, desenvolvida por agentes do Centro de Informações do Exército, obviamente jamais seria feita às vistas de moradores da região, como nem mesmo a tropa ali estacionada tomou conhecimento, visto que o objetivo era impedir que permanecessem vestígios que algum dia viessem a comprovar a existência de uma verdadeira guerra patrocinada por oficiais das Forças Armadas brasileiras, que receberam carta branca do governo militar para executar prisioneiros e torturar inocentes. Exatamente por essa razão, mesmo aqueles guias ou bate-paus que acompanharam ou serviram de coveiros não podiam tomar conhecimento de que os corpos enterrados nos locais por eles indicados foram um dia retirados, a fim de se apagar da memória do povo toda aquela história.

A Guerrilha do Araguaia jamais vai cair no esquecimento, apesar disso. Ela se constituiu num importante momento da resistência popular à intolerância política, ao totalitarismo da ditadura militar. A inserção da guerrilha na história visa demonstrar que muitos se insurgiram contra a intolerância política que se abateu sobre nosso país, e pagaram com suas vidas um alto preço para que nós pudéssemos hoje desfrutar das liberdades políticas, embora a luta por democracia e liberdade seja uma jornada infinita.

ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO é Mestre em História, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Goiás e autor da dissertação de mestrado A esquerda em armas: história da guerrilha do Araguaia.

Notas

(1) A partir de 1992, tivemos reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia em jornais e revistas de grande circulação nacional, que trouxeram novos depoimentos, dossiês e fatos que contribuíram para elucidar e comprovar várias evidências que apontavam as barbaridades cometidas no combate ao movimento guerrilheiro: Jornal do Brasil (de 22 a 24/3/92); Veja (18/11/92); Manchete (06/02/93); Veja (13/10/93).

(2) Depoimento de José Vieira, camponês em São Domingos do Araguaia, filho do camponês-guerrilheiro Luís Vieira, concedido a Romualdo Pessoa Campos Filho, naquela cidade, em 25 de fevereiro de 1996.

(3) Depoimento do sr. José Veloso de Andrade, camponês, ex-guia do exército no combate à guerrilha, morador de Brejo Grande do Araguaia. Concedido a Romualdo Pessoa e Gilvane Felipe, em 19/01/94.

(4) Jornal do Brasil, 22, 23 e 24/3/92.

(5) Depoimento de Etevaldo Dias à Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados, em 26 de março de 1994.

(6) As reportagens de O Globo foram publicadas a partir do dia 28/4, e seqüencialmente por mais sete dias, mantendo ainda por vários dias matérias a respeito do tema. Adriana Barsotti, Aziz Filho, Consuelo Dieguez, Ascânio Seleme e Amauri Ribeiro Jr. foram os jornalistas responsáveis por este importante trabalho investigativo.

(7) O jornal O Globo de 31 de dezembro de 1995 traz uma reportagem com o ex-soldado José dos Santos Aniká, na época baseado em Clevelândia do Norte (AP). Ele afirma: “Eu matei um guerrilheiro e, seguindo a prática do exército, cortei sua cabeça e as mãos, para que seu nome pudesse ser riscado da lista negra entregue a todos os militares com os nomes e as fotos dos procurados”. Aniká serviu ao Exército durante vinte anos, de acordo com a reportagem. Em 19 de maio de 1996, também o jornal O Globo entrevistou o fazendeiro José Augusto Aranza, que em junho de 1972 ficou preso em Xambioá, no buradco conhecido como Vietnã. Segundo ele, ao ser libertado viu “três sacos de lona serem desembarcados de um helicóptero. Dentro de um deles, uma mão de mulher, as unhas pintadas, branca como a morte. Fiquei sabendo depois que o Exército matava os guerrilheiros e trazia suas mãos e cabeças. Não sei se era para identificarem os mortos ou para que os corpos deixados na mata nunca fossem reconhecidos”.

(4) Jornal do Brasil, 22, 23 e 24/3/92.

(5) Depoimento de Etevaldo Dias à Comissão Externa dos Desaparecidos Políticos da Câmara dos Deputados, em 26 de março de 1994.

(6) As reportagens de O Globo foram publicadas a partir do dia 28/4, e seqüencialmente por mais sete dias, mantendo ainda por vários dias matérias a respeito do tema. Adriana Barsotti, Aziz Filho, Consuelo Dieguez, Ascânio Seleme e Amauri Ribeiro Jr. foram os jornalistas responsáveis por este importante trabalho investigativo.

(7) O jornal O Globo de 31 de dezembro de 1995 traz uma reportagem com o ex-soldado José dos Santos Aniká, na época baseado em Clevelândia do Norte (AP). Ele afirma: “Eu matei um guerrilheiro e, seguindo a prática do exército, cortei sua cabeça e as mãos, para que seu nome pudesse ser riscado da lista negra entregue a todos os militares com os nomes e as fotos dos procurados”. Aniká serviu ao Exército durante vinte anos, de acordo com a reportagem. Em 19 de maio de 1996, também o jornal O Globo entrevistou o fazendeiro José Augusto Aranza, que em junho de 1972 ficou preso em Xambioá, no buradco conhecido como Vietnã. Segundo ele, ao ser libertado viu “três sacos de lona serem desembarcados de um helicóptero. Dentro de um deles, uma mão de mulher, as unhas pintadas, branca como a morte. Fiquei sabendo depois que o Exército matava os guerrilheiros e trazia suas mãos e cabeças. Não sei se era para identificarem os mortos ou para que os corpos deixados na mata nunca fossem reconhecidos”.

EDIÇÃO 42, AGO/SET/OUT, 1996, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28