Ensaio sobre a cegueira, embora uma ficção, remete à nossa dura e complicada realidade. Ao lê-lo, fica a sensação de algo muito próximo. É um romance que retrata muito bem esta época bastante conturbada, na qual as certezas não são tantas — um mundo onde “imperam, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatórios”, como diz a apresentação do livro.

De repente, um homem se descobre cego, em meio ao trânsito, parado em um semáforo. É o primeiro caso de uma série de outros. A cegueira não é uma cegueira comum, mas uma “treva branca” (como um mar de leite), uma luz ofuscante. E por que uma treva branca, e não uma cegueira negra? É com se o autor nos dissesse que a realidade é tão intensa que nos ofusca a visão. Enxergamos mas não conseguimos ver. Habituamo-nos às misérias humanas de tal forma que não a vemos mais. Chama a atenção, dessa forma, para a necessidade de termos olhos quando os demais já perderam. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

Contagiosa, a cegueira se espalhará por toda cidade, formando em pouco tempo uma multidão de cegos que precisará aprender a viver de novo, em quarentena. O autor remete suas personagens, dessa forma às necessidades e afetos mais básicos, colocando-os no limiar de sua condição humana.

Propositadamente não os nomeia: “não disse como se chama, também saberá que aqui não tem importância”. A cegueira e as condições nas quais são obrigados a viver tira-lhes a possibilidade de individualidade. Apenas os descreve, fazendo-os acompanha-los por essas descrições: o primeiro cego; a mulher do primeiro cego; o médico que atende o primeiro cego; a mulher do médico; a mulher de óculos escuros, paciente do médico; o menino estrábico, também paciente do médico; o velho da venda preta. Em torno dessas personagens a história se desenrolará.

Confinados em um hospício desativado, são entregues a primeira sorte. Não poderão contar com nenhuma intervenção externa, diz uma voz no alto-falante. Soldados depositam diariamente caixas com alimentos na entrada do hospício, com ordens expressas para não se aproximarem os cegos e fuzilarem aos que se atreverem a sair da quarentena.

Enquanto são poucos, os cegos conseguem manter um mínimo de ordem, mas a população aumenta a cada dia, tornando inviável a mínima organização. Dejetos se espalham por todo o chão. Fedores, fome, medo, desesperança são as sensações mais presentes. É formada uma quadrilha de cegos que, pela força, obtém o controle dos alimentos, dos objetos de valor, das mulheres.

Apenas uma pessoa continua enxergando. Fingira estar cega para acompanhar o marido, e a ela caba a responsabilidade de enxergar, quando os demais já não podem faze-lo. Isso ao contrário do que foi dito pelo jornalista Marcelo Coelho, em sua resenha, não dá ao leitor uma sensação reconfortante de poder desfrutar com o autor de uma suposta lucidez crítica. Dá, isso, sim, uma sensação inquietante da extrema responsabilidade de nos compreendermos como seres humanos, cheios de medos, franquezas, mesquinharias, e das necessidades de nos domarmos, para não perdermos o resto de lucidez ainda existente.

Mas o autor, antigo comunista, não perde a perspectiva. Apesar dos horrores a que nos remete, nos dá algumas indicações de que nem tudo está perdido, que mesmo em pleno caos há resquícios de humanidade. É o caso do guarda que titubeia em atirar nos cegos,pois lembra que não está imune a cegueira.

Abusando das virgulas e descartando os travessões, numa escrita que se aproxima da fala cotidiana, Saramago nos leva numa leitura instigante e interessante. Sem dúvida, Ensaio sobre a cegueira é uma romance que deve ser lido e apreciado por todos aqueles que acreditam que o ser humano é um ser em construção e que ainda há muito a ser compreendido e resgatado.

Antônia Rangel (Coordenadora do Centro de Estudos Sindicais e mestranda em História pela Unesp/Franca)