Farei apenas três ordens de considerações: sobre o nosso partido, sobre o governo Prodi, sobre as relações com a esquerda.

Em primeiro lugar quero ressaltar que com esse nosso III Congresso damos um grande passo avante. Não só pelo aumento do número de filiados, não só pela votação obtida, pelo enraizamento na sociedade e nas instituições, o que é evidente para todos. Destes resultados estamos seguros. Nunca tive dúvidas sobre o êxito de nossa empreitada, desde os primeiros momentos, quando poucos de nós nos reunimos naquela pequena saleta em Rimini, nos primeiros dias de fevereiro de 1991. Os resultados apontados já eram.então, objetivos que sabíamos ser realizáveis. Não é necessário insistir sobre isso. Quando falo de um grande passo adiante me refiro ao fato de que alcançamos esses êxitos porque, enfim, nos transformamos num partido político, melhor dizendo, numa organização que não faz apenas propaganda de seu grande ideal, e que, muito menos, se contenta apenas em ser testemunha de visão, de uma exigência, de uma intenção de transformar essa sociedade injusta dominada pelo capitalismo. Não. Somos uma força que raciocina e age politicamente, que influi nos resultados, que tem papel incisivo: uma verdadeira e real força política. Disso nos dá prova tudo que alcançamos, indicativo de nossa presença ativa nas lutas sociais e nas instituições democráticas.

Mas este resultado, esta transformação em força política, que faz política, que contribui a determinar a pelotica, não eram favas contadas, visto terem sido enormes as dificuldades que nos rodearam quando fomos compelidos a nascer e viver: dificuldades objetivas, que estavam em nós próprios – nos modos de ser, de pensar e de agir de muitos de nossos companheiros. Havia muito entusiasmo , muita paixão e dedicação mas, também, muita confusão pelos diferentes percursos de cada um de nós. Eram freqüentes as fáceis ilusões e tantas simplificações. Vocês são testemunhas do que digo. E podemos falar disso com tranqüilidade, ainda que com plena consciência crítica, porque registramos, aqui e agora, com o nosso sucesso, a fora de poder oferecer perspectivas políticas válidas e reais para nosso povo e nosso país.

O certo é que crescemos muito rapidamente. Inclusive porque houve fatos que nos impeliram a fazer, rapidamente, nossas opções. Uma força política conquista prestígio e consenso se sabe fazer escolhas, se sabe fazer escolhas, se sabe se posicionar. Fazer política, ao final de contas, significa fazer opções. As nossas posições se demonstraram justas, uma após a outra, inclusive quando, para assumi-las, não hesitamos em tomar decisões complexas, de difícil trânsito. Mesmo para nós próprios, no interior do partido: lembram-se das vicissitudes, das crises dos grupos dirigentes, primeiro na própria secretaria do partido e, depois, mais recentemente, na bancada parlamentar? Parecem fatos remotos, e não obstante são crônicas recentes, de ontem, de anteontem. Decisões e opções difíceis sobretudo para fora do partido e, assim mesmo, posições ao mesmo tempo simples para nós, porque é com a mesma coerência e com a mesmíssima bússola que determinamos nossas posturas e soubemos e pudemos, portanto, dizer não ao governo Dini e depois dizer sim ao governo Prodi. Duas posições diversas, opostas, mas ambas coerentes, baseadas na mesma linha, válida num e noutro caso porque fundada sobre o binômio indissolúvel que tenazmente quisemos construir e no qual continuamente nos inspiramos: o binômio autonomia e unidade.

Como dizia, então, podemos ser bem afirmativos quanto aos termos dado, com esse nosso III Congresso, um grande passo adiante, principalmente no que diz respeito a essas características do partido como força política. O debate que se desenvolveu nas bases registrou dois dados muito significativos: primeiro o número de participantes relativamente superior a qualquer outro momento; segundo, porque as próprias bases do partido tomaram decisões. Foram os filiados que direta e soberanamente, sem delegações nem mediações- que decidiram a política a ser adotada, e o fizeram se posicionando entre duas opções, francamente contrapostas entre si, e por isso, pela própria contraposição tomaram posição clara, sem equívocos.

Há companheiros, inclusive nesta plenária, que estavam preocupados por debater, decidir e votar no auge do debate sobre a lei de orçamento. Preocupação compreensível e legítima , mas que se revelou infundada. Melhor que isso, foi o próprio confronto vivo, em tempo real, entre a discussão nas bases e aquela no Parlamento e junto à sociedade, que tornaram ainda mais relevante a força, a validade, a incisividade da posição que cada um foi chamado a defender. Posição obviamente não técnica nem administrativa já que por trás desse debate e com a lei do orçamento – uma lei cheia de sombras, de limitações e erros mas, ainda assim, marca distintiva da nossa intervenção contra as tendências dominantes no passado italiano e no presente europeu- emergiram concretamente e foram postas abertamente em campo as diversas posições políticas presentes nas nossas fileiras: sobre desistência ( retorno à oposição), sobre o governo, e sobre os programas. Polêmica, por isso, em um par de meses de debate muito intenso, que abarcou simultaneamente o passado o presente e o futuro da política do partido. Polemicada sobre a natureza, o papel, o destino do partido, sobre composição dos núcleos dirigentes. Polêmica que contrapôs lealmente, mesmo que as vezes asperamente, companheiros entre si. Agora podemos dizer que todos sabemos melhor que antes aquilo que somos e o que queremos. Nós todos, mesmo que nem todos estejamos de acordo. Todos, porque cada um pôde dizer aquilo que pensa. E hoje podemos bem julgar os resultados de nosso debate. Verificou-se que há uma larga maioria, e que há uma minoria respeitável. Agora é imprescindível que a maioria tenha uma visão realista a cerca da minoria de sua consistência, de seus argumentos, de suas razões.

E é imprescindível que a maioria reconheça e aceite lealmente a vontade da maioria. Maioria e minoria têm, a partir de hoje, um propósito comum: aplicar a linha política e estratégica decidida pelo Congresso. Está será, doravante, a linha de todo partido, e deverá ser aplicada e desenvolvida por todos os companheiros. Naturalmente, permanecem as diferenças e as distinções, mas não para os agrupamentos. Continua o debate, com plena liberdade, no pleno, e límpido respeito à concepção pluralista que caracteriza a natureza do nosso partido, mas cessam as oposições prejudiciais e a fidelidade de tendência. A partir de hoje novas maiorias nascem, se compõe e decompõem,mas partindo do pressuposto comum, já clara e democraticamente estabelecido, de que a linha e a estratégia do Partido da Refundição Comunista são as que foram decididas pelo Congresso

De outra parte- e este é o segundo ponto sobre o qual quero deter-me- não podemos nos atrasar nem sequer um instante sobre aquilo que é o cotidiano político. Há coisas urgentes, numa situação que permanece tensa e atualmente muito confusa. Não vou falar do que já foi dito muito claramente por Bertinotti e por outros companheiros acerca da anomalia da nossa situação política, a de uma maioria parlamentar conquistada bem sabemos como e a de nossa própria situação dentro dela. É essa anomalia que freqüentemente gera profunda confusão. Confusão até mesmo entre os companheiros de nossa atual minoria, marcados por um histórico, consolidado, imutável e tradicional hábito de não distinguir, não discernir, de pôr sinal de igualdade em tudo, pôr a todos no mesmo plano, com tendência a não se dar conta de que, ás vezes, a audácia inovadora dos revolucionários está em saber dizer sim, em vez de apenas dizer sempre não. Mas além das nossas polêmicas internas, na verdade bastante chatas ( e aqui abro um parênteses para perguntar: como podem ainda continuar a retroceder, sem um sopro de autocrítica, os que propõe a desistência, como podem não se dar conta do simplismo banal contido nas afirmações “retorno à oposição”, sem lembrar que não somos simplesmente portadores de uma posição de apoio ou de oposição ao governo, mas sim sujeitos determinantes para que o governo e a presente legislatura vivam ou morram, determinantes não só no sentido político mas também no sentido numérico, e determinantes como jamais o foi, numericamente, nem mesmo o grande PCI, nem mesmo o PC francês no governo Miterrnd?) quero, for a de nossas polêmicas, sublinhar que é exatamente o não levar em conta séria e definitivamente tal anomalia que conduz continuamente certas forças políticas às idéias confusas e a posições ainda mais confusas.

Somos forças determinante na maioria e ao mesmo tempo não estamos no governo e nem sequer fazemos parte da Oliva ( N.T. Oliva é o nome da coligação eleitoral com que concorreu a Refundação, que incluía também o PDS – Partido Della Sinistra, ex-PCI. É assim. Esta é a realidade. O erro não é não ter em conta que as diferençasão tais que não consentem, nem sequer requerem, a presença da

Refundação nesse governo.Nenhuma fórmula focada ou palavra pode anular as diferenças, do que se depreende de que não existe hoje condições nem de uma participação no governo, nem de uma participação no governo, nem de um pacto comum de governo. A propósito, é com esquemas forçados desse tipo que corre o risco de comprometer o esforço por um empenho solidário acerca de questões sobre as quais é possível e obrigatório encontrar um acordo.

Não insistirei mais sobre esse ponto. Insisto, por outro lado, sobre a gravidade da tensão que se adensa e que vai adensar-se sobre o cenário político italiano e suas perspectivas. É próprio dos míopes, como se sabe, não conseguir enxergar longe. Agora o risco é que não se consiga nem enxergar perto. Avulta uma ofensiva da direita, está em curso essa ofensiva pesada, massiça, grave.

Este é o traço mais saliente da situação atual. Esta ofensiva atropela de maneira atrevida, no limite do que é lícito e suportável, a questão econômica e põe em campo a vontade ilimitada p;por parte da direita de defender, a todo custo, seus privilégios e riquezas. Atropela atualmente as instituições e o ordenamento democrático. Não é mais o costumeiro e recorrente ataque das classes dominantes. O que há hoje é algo profundamente diverso. É a própria identidade nacional de país democrático que pode ser devastada. A dramaticidade da crise nacional não reside tanto na enormidade do défict público, quando na progressiva queda livre, numa espécie de “ buraco negro”, que parece capaz de arrastar em sua voragem cada tentativa de mudança e de reconstituição da identidade nacional em bases novas e partilhadas, de algum modo transparentes e democraticamente controláveis. O risco de uma desagregação nacional e de uma derrapagem rumo à formas de autoritarismo oligárquico é cada vez maior. A “secessão”do Norte, mais que uma simples ameaça de Bossi, é a ruptura de todo o nexo entre o Norte e Sul, a impossibilidade de conferir o dualismo estrutural uma saída produtiva nos marcos de uma estratégia européia. Desse modo, bem vistas as coisas, trata-se não apenas da falência do tradicional meridionalismo das classes dirigentes, mas da explicação de uma espécie de divórcio das elites”com respeito ao tema da solidariedade entre o Norte e o Sul da Itália, que é o que rege a questão da identidade nacional.

A rudeza, o peso do ataque que comungam a Confindustria e a Liga Norte, empresários e aproveitadores, produtores e evasores, corruptos e corruptores, todos aqueles que são ou que se consideram ricos, todos os que possuem ou querem poder conservar a unhas e dentes seus privilégios, não tem encontrado a política adequada. O risco é um pavoroso retrocesso. O governo oscila, vacila, não consegue compreender, ou quem sabe não quer compreender, que a saída para o país e para sua própria sobrevivência e fortalecimento, não está na simples (e demasiadamente propalada) exaltação de seus feitos e de suas obras, as quais, por sua vez, têm desgostado não apenas os ricos e poderosos adversários, O governo sequer consegue satisfazer os amigos, como parece ser o caso da insatisfação de que fala hoje Massimo D`Alema (N.T. dirigente do PDS). Diante disso, imagine-se então o tamanho de nossa insatisfação! E muito menos a saída para o governo Prodi pode estar na proposta de compromissos que , manifestando-se sobre bases deterioradas, acabam por agravar a fratura da consciência civil do país, quando deveria estar bem claro que é exatamente sobre a consciência civil de nosso povo que se deveria investir na tentativa de impedir que se fortaleça uma direita perigosamente ofensiva, sem escrúpulos, hoje mais perigosa que ontem. Será o governo pretende insistir num compromisso, num acordo de comprometimento diante das câmaras de televisão? Correndo o risco de perder a confiança da nação, arriscando nunca mais conseguir reunir, sobre tal tema, uma “confiança”no Parlamento?

A saída não é nem a de marcar passo, nem a de endurecer (o que não leva a nada dado que as forças de sustentação estão rachadas pela ação dos quinta coluna que agem a partir de dentro). A saída é ir adiante, na conquista de espaços mais avançados de consenso entre as forças fundamentais de renovação e do progresso, entre as massas trabalhadoras e entre os setores médios, entre as mulheres, entre as forças culturais sempre vivas da nossa democracia, entre o exército imenso de rapazes e moças. Marchar adiante, pondo ao centro, ou melhor, pondo em primeiríssimo plano, o tema do trabalho. E para isso é necessário livrar-se excelentíssimo Prodi, do antigo erro, do erro de sempre, que é aquele que diz primeiro o sacrifício e depois… E depois nada! Não bastam mais os panos quentes para fazer frente à crise ocupacional da época em que vivemos. E nada, digo absolutamente nada, deve caminhar na direção que querem os moderados e os reacionários, que é de uma inaceitável e inadmissível redução da condição social. Ao invés disso, deve pôr-se em cena uma ação séria e contínua; é indispensável agir, de uma parte, pela conquista de postos de trabalho e, por outra,pela exigência de amplos recursos, ao menos através do combate às evasões fiscais, amplos recursos para permitir um passo adiante e não atrás, um salto inovador no estado social.

Em terceiro lugar, para finalizar, direi que se pode até compreender como esta linha – em todo caso a única capaz hoje de salvaguardar uma perspectiva democrática para o país seja controversa no interior de um governo que é expressão de forças sociais, culturais, políticas em larga medida moderadas. O que não se compreende é quando o PDS faz referências à reunificação da esquerda. Contudo uma reflexão crítica deveria ser já madura por parte de esquerda sobre os erros do passado. E ao invés se assiste a uma proposta que está apontando para um sentido oposto aquele que seria necessário e possível. Não me refiro ao extenso revisionismo histórico, cômico se não fosse trágico. Não aceitamos distorções da história e dos valores que permearam: hoje caminhamos no sentido de reafirmar nossa indestrutível consciência antifascista em solene delegação diante do símbolo por excelência do martírio e da luta pela liberdade, com uma delegação do Congresso às Fosse Ardeatine ( N.T. Local de mineração em Roma onde, em 1944, foram chacinados e enterrados 335 pessoas entre combatentes da Resistência antifascista, cidadãos italianos e judeus. A chacina foi ordenada por Hitler em represália ao ataque da Resistência que vitimou soldados das tropas alemãs: a ordem foi de 5 vidas para cada soldado alemão) Nem falo, portanto, disto, falo sim da já prevalecente crítica da direita à política daquele que foi o grande Partido Comunista Italiano. Criticam-se pessoas e posições que, ao inverso (penso em Togliatti de 45-48, ou de Berlinguer de 74-77) deveriam encontrar uma apreciação crítica de sentido bem diverso. Falo daquele que aparece como uma antiga “maldição”que parece inevitavelmente pesar sobre a esquerda quando, em vez de procurar avançar em suas possibilidades de crescimento – determinando com isso, o avanço de toda sociedade -, ela se atrasa, estaciona, quase se assustando com a própria força e suas potencialidades. Termina por retroceder, por ser derrotada inexoravelmente, e isso a história já deveria ter ensinado a todos.

É por isto – também por isto- que não são aceitáveis as indicações do PDS pela unificação das forças de esquerda sob um signo moderado. Terminaríamos achatados por essas forças, amalgamados por uma massa única, numa composição nas qual as tendências antagonistas seriam privadas de visibilidade e de poder de ação política, inertes, simples testemunhas passivas diante de uma realidade que exige efetivamente um papel antagonista. Uma visão e uma ação antagonista é uma exigência objetiva, e objetivamente necessária, se não por outros motivos, exatamente porque opera dinamicamente em contraponto à involução moderada. É uma exigência necessária não só para nós mas para toda a sociedade, uma exigência que fez de nós aquilo que somos. Numa única formação política, dominada por uma tendência moderada, ainda que genericamente de esquerda, tudo se achataria e terminaria por impedir, de fato, cada efetiva esperança de batalhas por transformações. Nós batalhamos pela superação do capitalismo. Ai de nós se assim não procedêssemos! Somos uma esquerda antagonista, ai se não o fôssemos! A presença de duas esquerdas diversas entre si é enfim um fato; pode ser motivo não de contraposição mas de uma eficaz competição pela conquista de hegemonia ideologia, cultural política entre as massas trabalhadoras e entre os jovens, entre a subjetividade potencial de uma batalha por mudanças. Trabalharemos pela competição e não pela contraposição. Encaramos com respeito o que se passa no PDS, sua posições, sua ação,tanto mais se análogo respeito se manifeste da parte deles pelos próprios fatos e posições. Mas não compartilhamos de sua opinião. O PDS trabalha pela “Coisa 2”? Refundação Comunista é outra coisa”. Divergimos. Não nascemos para viver como aqueles que crêem estar vivos só porque sobrevivem.

Nascemos e vivemos para transformar, para marchar adiante, para construir um projeto ousado as condições de uma nova sociedade, zelosos e firmemente convictos de nossa indispensável e autônoma radicalidade; e, com sensatez e infinita sabedoria, buscamos nossa unidade.
Sentimo-nos portadores de uma grande inovação na inspiração, na cultura, na praxis que caracterizaram a história inteira desde o século; é neste modo vivo, criativo que escutamos o chamamento de Marx, não órfãos do passado, mas radicado no presente, projetados no futuro.

Ouvimos seu chamado e queremos ser protagonistas do mais árduo dos empreendimentos que possa conceber- nele queremos atuar, neste fim de milênio, nesta parte do mundo. Escutamo-lo e por isso queremos ser os protagonistas, os construtores da Refundação Comunista.

*Este artigo foi traduzido por Walter Sorretino

*Intervenção do presidente do Partido da Refundação Comunista da Itália, Armando Cossuta, durante a realização do seu Congresso, em Roma, em dezembro de 1996.

EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 37, 38, 39, 40