A reeleição proposta pelo Governo desperta no país acirrada polêmica. Quebra a tradição constitucional republicana de mais de cem anos, que sempre a proibiu. Estende a nova prerrogativa aos governos dos estados e prefeitos dos municípios que, como o presidente, não precisariam se afastar dos cargos para a disputa de novos mandatos. E beneficia de imediato o atual Presidente da República, eleito sob preceito constitucional que vedava a reeleição.

Por isso, a discussão de emenda reeleitoral tem abordado fundamentalmente aspectos do mérito jurídico-político da proposta do governo, inclusive seu argumento básico –“por que mudar algo que está dando certo?”- ao que tem-se dito, contrariamente, que a continuidade da política neoliberal do atual governo é o móvel principal dos reeleitoreiros.

Entretanto, um ponto estranho tem provocado suspeita e suscitado interrogações. É que a tramitação da emenda tem sido acopanhada de um açodamento espantoso, de uma pressa inusitada e esquisita, especialmente da parte de FHC. É como se algo estivesse pressionando irresistivelmente o Presidente, a ponto de levá-lo ao descontrole fácil, à tentativa de atropelar tudo e a se expor, como ninguém jamais o fez no Brasil, à espúria prática do aliciamento de políticos.

É certo que a popularidade ocasional fomenta a vaidade, o exercício do poder desperta a ambição continuísta e as diretrizes dos altos comandos não podem ser frustradas. Isso explicaria a proposta de emenda e mesmo a fraude constitucional da reeleição para o próprio presidente em exercício. Mas por que a pressa? Por que convocar extraordinariamente o Congresso para votá-la, e suspender em benefício da emenda, todos os prioritários pontos da agenda do país?Como explicar que o presidente tenha resvalado tão rapidamente para o desrespeito a um outro Poder,às decisões soberanas de um de um Partido que não o seu e ás comezinhas regras da educação parlamentar, encenando um “pito”público a autoridades da República e dirigentes do PMDB? Como entender que o Presidente nas vésperas da votação na Câmara, tenha coordenado pessoalmente a espúria compra de votos intensamente realizada, a partir do próprio Palácio do Planalto, transformando em centro de uma verdadeira esbórnia?

Efetivamente, sente-se que algo existe na pretendida reeleição, que traz a ela a urgência desesperada que normalmente não teria. Tudo parece indicar que este outro fator relaciona-se com problemas econômicos que o país está vivendo.

O governo, seguindo o conhecimento do costume de divulgar o que é bom e esconder o que não o é, apresenta como róseo o quadro econômico do país. A inflação que já esteve em 5000% ao ano baixou para 13%, a moeda permanece forte e os preços controlados, se bem que com inumeráveis exceções. As reservas estão altas os investimentos estrangeiros chegando. Um número elevado 13 milhões, não se sabe como achado, é exposto como sendo o de brasileiros que, em dois anos, teriam saído da faixa da pobreza.

Os exageros e as distorções são constantes na propaganda governamental. Os dados oficiais nada informam de onde vem o cabalístico número 13,mas, é que os 10% mais pobres do país passaram a ter 1,1% da renda nacional, mais que os 0,8% que tinham em 1992, o que mostra que a pobreza de fato diminuiu, se bem que um pouco. Entretanto os 10% mais ricos passaram a ter 48,2% da dita renda, bem mais que os 46,1% de que se apossavam em 1992, o que significa que o fosso social entre ricos e pobres aumentou bastante 1.

Quando se examina com cuidado alguns dos números simbólicos da economia brasileira e algumas das tendência visíveis do processo em curso, verifica-se que o quadro róseo não é tanto. Pelo contrário.
O Brasil, a partir de 1981, passou a ter um desempenho bastante positivo em sua balança comercial com o exterior. Desse ano, até, 1994, antes de começar o governo FHC, foram treze anos ininterruptos de saldo positivo na balança comercial, em geral acima dos US$ 10 bilhões por ano. Em 1988 foi estabelecido o saldo recorde, US$19,18 bilhões, muito significativo para um país em desenvolvimento (2).

Acontecia que a conta de serviços (juros,fretes,royalties,seguros, remessas) era sempre deficitária. Chegou aproximadamente US$ 15 bilhões negativos em 1988, compondo então um saldo geral positivo de cerca de US$ 4 bilhões.

Essa tendência foi alterada a partir de 1995, precisamente no primeiro ano do governo FHC, com os efeitos da abertura ao exterior feita desde 1993, reduzindo-se alíquotas de exportação, às vezes de 200% para 2%, e isentando-se a importação de cerca de 500 produtos. Isto, e mais câmbio supervalorizado, encarecendo nossas mercadorias, acabou por elevar o saldo de nossa balança comercial em 1995 para o patamar negativo de US$ 3,15 bilhões, primeiro déficit na balança comercial do Brasil nos últimos treze anos. Como a balança de serviços ficou no patamar negativo de US$18,60 bilhões, o saldo geral de nossas balanças comercial e de serviços (conta corrente), em 1995, ficou em US$21,75 bilhões.

Agora o governo vem publicar seus números de 1996. A balança comercial ultrapassou os prognósticos mais pessimistas e cravou um déficit de US$5,54 bilhões; de longe o maior da história do Brasil. Nossas exportações ficaram em US$47,74 bilhões, enquanto as importações foram para US$53,29 bilhões. A conta de serviços, que pelas expectativas pessimistas chegaria a um déficit de cerca de US$ 19 bilhões, estourou em US$ 21,70 bilhões. Como as transferências unilaterais reduziram-se a US$2,90 bilhões,(dinheiro remetido por familiares para parentes no Brasil), o déficit em transações correnters foi de US$24,35 bilhões, outro recorde de nossa hitória, valor equivalente a 3,27% do PIB brasileiro (3).

Importante acompanhar a evolução recente deste índice. Em 1990, com Fernando Collor de Melo, o déficit das transações corrente foi de US$3,78 bilhões, correspondentes a 0,86% do PIB. Com Itamar Franco, em 1994, esse déficit foi reduzido para US$1,45 bilhão equivalentes a 0,31% do PIB 4. O índice agora atingido de 3,27% do PIB de déficit em transacões corrente é muito mais alto, considerados alarmantes por certos organismos internacionais.

Especial preocupação suscita o declínio das exportações brasileiras. Em 1984, a participação brasileira nas exportações mundiais era de 1,19%. Se tivesse mantido essa mesma presença de treze anos atrás, a exportação brasileira no ano passado teria auferido US$11,9 bilhões a mais do que consegui, o que nos levaria a um saldo razoável em nossas transações correntes e não ao déficit recorde registrado. A participação de 1,19% de treze anos atrás foi reduzida para 0,93% (5) .

A taxa de crescimento das exportações brasileiras, medidas pelo valor exportado, vem diminuindo sistemática e abruptamente nos últimos anos, notadamente no período do Plano Rel. Em 1994 essa taxa foi de 12,9%. Caiu para 6,8% em 1995 e foi agora para 2,7%, apenas (6). Paulo Nogueira Batista JR., apoiando-se em dados da Cepal, observa que as exportações do resto da América Latina, no mesmo período, cresceram 13,1%, uma média quase cinco vezes maior do que a obtida pelo Brasil.
A retração acentuada das exportações brasileiras, rudemente agravada pela forma atabalhoada de como o governo está dirigindo a inserção submissa do Brasil no mercado mundial, tem trazido sérias conseqüências para economia brasileira, particularmente para seu setores industrial, agrícola e do comércio.

O Deputado Delfim Neto examinou recentemente o sucedido com a cultura de algodão, onde nos últimos seis anos, o Brasil deixou de ser um dos maiores exportadores do mundo e passou a ser um dos maiores importadores. “A área plantada – escreveu Delfin- entre 1994 e 1997 foi reduzida em quase 500 mil hectares… uma perda aproximada de 50 mil empregos.”Delfim mostra, entre outras causas deste descalabro, “as imensa facilidades de crédito para importação, a prazo seis vezes maiores e taxas de juros seis vezes menores do que as suportadas pelo produtor nacional” (7). Com o trigo aconteceu em 1996 outro despropósito o governo comprou trigo brasileiro a US$100 a tonelada e pagou US$300 pela tonelada do trigo importado.

A repercussão dessa política de incorporação subalterna do Brasil no mercado mundial, através de importação, supostamente com o fim de promover a produtividade nacional, tem sacrificado muito as empresas locais, com o crescimento de falências requeridas e decretadas.Entre 1995 e 1996, as falências requeridas ao país cresceram 64,1% passando de 29.361 para 48.184. As falências decretadas deram um salto; de 2.476 em 1995 foram para para 5.172 em 1996, registrando um crescimento de 108,9%.

Tudo isso são percalços da opção governamental por incorporar rapidamente a economia do pais no capitalismo globalizado, de forma passiva e submissa, sacrificando os interesses nacionais. As Nações centrais cada vez impõe exigências, ante as quais o governo que não assumem projetos de Nação como o de Fernando Henrique, só fazem capitular.

Ainda há pouco realizou-se em Cingapura um reunião da Organização Mundial do Comercio. A liberação dos produtos agrícolas na União Européia esteve em discussão, ,ais uma vez. Era o que interessava nos países menos desenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, potencialmente ricos em produtos agrícolas e a cata de mercados amplos. Não passou. Em discussão também esteve a liberação de toda América Latina aos produtos de informática e de telecomunicação. Era o que interessava aos países ricos. Passou. A propósito, o empresário brasileiro Antônio Ermínio de Moraes escreveu: “Para variar… ganharam os mais fortes. Tentam condenar os pobres a ficar pobres. Os produtores brasileiros continuarão tendo seus produtos taxados e sobre taxados nos Estados Unidos, Japão e Europa”. E acrescentou:”Ficou claro ser utópico contar com a complacência dos países desenvolvidos”.

Está claro que a situação econômica geral do país está a exigir prontas medidas. Contudo o governo trilhando o caminho neoliberal que tanto zelo segue, só enxerga medidas de um determinado viés. É necessário exportar mais, evidentemente. Como fazê-lo? Alterando o câmbio? Não poderia ameaçar a estabilização do Real. Contendo o mercado interno,pensa o governo, através de medidas inibidoras do consumo, vale dizer, privando o povo de meios de compra. É necessário, sob outro ângulo, diminuir mais o chamado “custo Brasil”, para baratear o valor de nossas produções. Como? Diminuindo as taxas de juros, que são os preços do capital e que são das mais altas do mundo? Não. Flexibilizando,si, mais ainda, os direitos sociais, direito dos trabalhadores, e os direitos políticos também, como a organização sindical, a greve, etc. É preciso trazer dinheiro novo do estrangeiro, para compensar contas externas. De que maneira? Vendendo estatais brasileiras, porém as maiores, o sistema elétrico, as telecomunicações, a Vale, a Petrobrás… Esse dinheiro, além de solapar a soberania do país, quando se limita a comprar ativos já existentes, as empresas nacionais, não contribuem para o aumento da produção.

É nesse contexto que se situa a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Sabe o presidente que as medidas econômicas que seguramente estão em pauta, se tomadas antes da votação da reeleição, provocariam tal ira popular que poderiam impedir sua aprovação. Razão porque as medidas têm que se adiadas. Mas Mas seu adiamento não pode ser excessivo, já que o quadro econômico do país pode se deteriorar. Daí a pressa em votar a reeleição, a urgência urgentíssima para que o golpe seja consumado o mais rápido possível.

Analistas, de diferentes pensamentos, já antevêem o pós-reeleição, o “day after”. Paulo Nogueira Batista Jr.diz “que a situação está a exigir medidas políticamente difíceis, que poderiam tumultuar a aprovação da emenda da reeleição”. (10). Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda do Brasil, declarou que “medidas de desaquecimento tomadas agora introduziram um “ruído desnecessário”ba aprovação da emenda da reeleição”(11).Rudizer Dornbusch, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, dos Estados Unidos, estudioso da economia brasileira, autor de comentários dobre o Plano Real que não agradaram o governo, voltou a fazer observações sobre o mesmo e sobre a reeleição. Ei-las: “Brasil vem apresentando um crescimento muito insuficiente nos últimos quinze anos; a renda per capta hoje é menor que em 1980. O desempenho dos investimentos se deteriorou. O país ficou muito para trás na competição internacional. “Constata a seguir: “A política econômica brasileira se rege pela necessidade de assegurar a reeleição do presidente.”Nessa situação, diz:
“A alternativa é ir em frente, criar uma euforia financeira através da privatização agressiva e mascarar os problemas financeiros e de comércio com a alta dose de entusiasmo estrangeiro. Assim que o segundo mandato estiver assegurado, então a questão negligenciada dos problemas acumulados pode receber atenção.

“ E indaga. “Será que essa estratégia funciona?”E ele mesmo responde: pode apostar que sim. Assim que a Vale do Rio Doce, a Petrobrás, as companhias telefônicas e outras mais se forem nesse pacote, a euforia será espetacular”. E conclui:”O problema é que a economia real é muito mais importante que a reeleição do presidente”(12).

Tudo parece indicar que o povo brasileiro, mais uma vez, poderá ser vítima de um grande engodo. Desencadeou-se uma movimentação extraordinária, na qual o Presidente da República pessoalmente assume o comando do aliciamento dos políticos, da troca de favores mais abjeta, das articulações ameaças e chantagens. A Nação assiste estarrecida aos interesses pessoais e de grupos condicionarem as decisões mais importantes. E observa espantada o quanto está sendo petulante o Presidente ao transformar o gabinete de trabalho da Presidência da República em sala de reuniões da campanha eleitoral, em alojar no Palácio do Planalto seu comitê de candidato. Para quem tivesse dúvidas sobre o potêncial de suborno, corrupções e chantagem que tem um Presidente da República candidato à reeleição, e que não se ausenta do de seu cargo, o que fez Fernando Henrique para aprovar sua emenda no primeiro turno de votação da Câmara dos Deputados foi uma lição extraordinária, porque rigorosamente o presidente comprou os votos necessários à vitória de sua emenda. Se para aprovar uma emenda fez o Presidente o que está fazendo, sem o menor constrangimento, afrontando a todos com a a maior desfaçatez, subornando e ameaçando – ou vota em minha emenda ou sai do meu governo – o que não fará esse homem quando estiver em pauta sua eleição para Presidente da República, de novo

Haroldo Lima é deputado federal pelo PCdoB/BA

Notas

(1) Dados da Fundação Getúlio Vargas, Jornal do Brasil, 18/01/97.
(2) Todos os dados do Banco Central,Almanaque Abril. Cd-rom.
(3) Informações econômicas do Banco Central, 24.01.97
(4) Finanças e mercados, Gazeta mercantil.27.01.97
(5) Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior, Funcex.Gazeta mercantil, 27.01.97
(6) Paulo Nogueira Batista JR. ,Folha de São Paulo,9/01/97
(7) Delfim Neto, Folha de São Paulo, 18.12.96
(8) Pesquisa da Segurança ao Crédito e Informações, SCI.Correio Brasiliense, 18/01/97
(9) Antônio Ermínio de Moraes, Um Apelo ao Congresso Nacional,Folha de São Paulo.
(10) Paulo Nogueira Batista JR, op.cit
(11) Maílson da Nóbrega, declarações em O Estado de São Paulo,18/1/97
(12)Amanhã Economia e Negócios, setembro de 1996.

EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 22, 23, 24, 25