O Brasil enfrenta, novamente, um grande dilema, que tem sido recorrente em sua história. Este final de século foi pródigo em acontecimentos que provocaram uma enorme reviravolta na situação internacional, do ponto de vista político, econômico e social. Uma nova onda comandada pelo capital financeiro, a chamada "globalização", tendo à frente os Estados Unidos, atingiu em cheio o conjunto da humanidade. Esta onda, gerada por leis objetivas que comandam o processo de acumulação capitalista monopolista na atual situação histórica concreta, impõe, por toda a parte, sobretudo às nações que não integram o círculo restrito das potências imperialistas que estão no comando deste processo, enormes desafios.

Como se colocar diante desta realidade? Continua válido o esforço de se buscar a realização de um projeto nacional? Se a resposta é positiva, como situar este projeto frente a uma situação tão desfavorável? É correta a proposição das forças que hegemonizam o governo Fernando Henrique, no sentido de que o único caminho possível é o de promover a "inserção" do país no processo de globalização, mais uma vez de maneira caudatária e subordinada, sob pena de o país "perder o bonde da história"? Não existem respostas fáceis para estas questões, ainda mais numa situação em que o mainstream (corrente predominante) ideológico, o neoliberalismo, sufoca completamente quaisquer tentativas de se colocar para a sociedade uma visão crítica desta ideologia e a apresentação de alternativas a ela. Ignacio Ramonet, refletindo sobre este novo dogmatismo que o capitalismo espalha insistentemente por toda a parte, desenvolveu um conceito que chamou de "pensamento único". E o definiu como sendo a manifestação, do ponto de vista ideológico, em escala mundial, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, em particular aquelas do capital internacional1. A repetição constante do catecismo neoliberal – que inclui a primazia do mercado, a estabilização da moeda a qualquer preço, o Estado mínimo, a desregulamentação, a privatização, a liberalização, etc – por todos os meios de comunicação, por jornalistas, políticos e analistas, confere a este "novo evangelho" uma tal força de intimidação que sufoca as tentativas de reflexão livre, estabelecendo-se então o predomínio total do "pensamento único", chamado por Ramonet de "novo obscurantismo". No Brasil, este obscurantismo permeia atualmente tudo o que se divulga para a sociedade. Uma das conseqüências mais danosas que ele gera é que se deixa de discutir as particularidades que marcaram a formação histórica de nosso país e as características básicas da sociedade brasileira no presente. Somente entendendo este processo é que se pode formular com seriedade as bases de um projeto nacional capaz de encaminhar os graves problemas econômicos e sociais que o país vem acumulando ao longo de sua história. Do mesmo modo, este é também o caminho para se evitar falsas comparações com outros países ou se cair na armadilha doutrinária dogmática do "pensamento único", imposta pelos grandes interesses da oligarquia financeira internacional juntamente com os setores internos associados a ela, representados sobretudo pelo PSDB e PFL.

O Brasil tem suas particularidades que o diferenciam dos Estados Unidos, do Japão e da Alemanha, só para tomar três exemplos que são hoje paradigmáticos.

Os Estados Unidos foram a primeira república democrático-burguesa organizada no mundo, desde que a revolução norte-americana conquistou a liberdade face à Inglaterra e as treze ex-colônias inglesas da América do Norte firmaram, em julho de 1776, a famosa "Declaração da Independência", adotando o regime republicano e a ideologia dos "direitos naturais" do homem (ainda que a nova república convivesse com a escravidão). Os motivos básicos da revolução norte-americana contra a Inglaterra estão relacionados com razões econômicas, em particular a necessidade de se desenvolver as manufaturas e de se quebrar o monopólio do comércio externo imposto pela Inglaterra às suas colônias. Nos anos que se seguiram à revolução, os Estados Unidos, opondo-se ao pensamento econômico dos livre-cambistas ingleses, implementaram forte política protecionista, formulada sobretudo por Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, sob o presidente George Washington. Na segunda metade do século XIX, os Estados Unidos se envolveram numa violenta guerra civil (1861-1865), que opôs o Norte, burguês e industrializado, ao Sul, aristocrático e escravista.

Ao final da guerra, as forças separatistas foram derrotadas, garantindo-se a unificação do país e estabelecendo-se a hegemonia do Norte, o fim da escravidão e um poderoso estímulo à industrialização, ao trabalho assalariado e ao mercado interno. Já neste século, com a grande depressão iniciada em 1929, os EUA, sob a direção do presidente Franklin Delano Roosevelt (período 1933-1945), operaram grandes modificações na política interna. O presidente Roosevelt promoveu, para os padrões norte-americanos, reformas sociais e fiscais de vulto e a reativação da economia por meio de investimentos e gastos públicos. Deflagrada a Segunda Guerra Mundial, a economia norte-americana recebeu novo impulso e, ao fim do conflito, com a vitória das potências aliadas (União Soviética, Estados Unidos e Inglaterra), os EUA se firmaram definitivamente como grande potência internacional, com a enorme vantagem de ter sido a única potência que não teve seu território atingido diretamente pela guerra, mantendo-se intacta sua base industrial e econômica. Com o desenlace final da guerra fria a seu favor e a desintegração completa da União Soviética, tomou novo alento e firmou sua completa hegemonia em todo o mundo. É quem tem dado as cartas no presente processo de globalização, que é, até agora, a forma que assumiu o processo de expansão imperialista na ordem mundial unipolar.

Alemanha e Japão tiveram trajetória bem distinta, seguindo um caminho sem rupturas drásticas, em que as principais mudanças foram promovidas "por cima" pelas antigas classes dominantes, com pouca participação popular.

No âmbito da Europa Ocidental, a Alemanha teve industrialização tardia. A revolução burguesa de 1848 fracassou e a região continuou sob a hegemonia dos junkers (aristocracia rural) prussianos. Somente por volta no fim do século XIX, com a reunificação dos Estados alemães sob a direção do primeiro-ministro da Prússia, Otto von Bismarck (ele próprio um junker de fortíssima tradição autoritária) e o ressurgimento do Império é que a Alemanha experimentou um grande desenvolvimento capitalista.

Uma das bases objetivas que impulsionou a formação da nação alemã foi a idéia do Zollverein – a união aduaneira nacional dos Estados alemães – como forma de viabilizar sua industrialização e de se contrapor às demais potências européias (França e Inglaterra). Quem lançou a idéia do Zollverein foi o economista alemão Friedrich List, cuja obra principal, não por acaso, chama-se Sistema Nacional de Economia Política2. List criticou as teorias de Adam Smith e de Ricardo e defendeu a tese de que qualquer país, em fase inicial de industrialização, precisa de uma política de proteção tarifária contra produtos estrangeiros. O desenvolvimento e o expansionismo alemão desequilibrou a balança de poder mundial então dominado pela Inglaterra, acirrando as contradições em torno da disputa por mercados, zonas de influência e fontes de matérias-primas. Derrotada na Primeira Grande Guerra e humilhada pelos Tratados de Versalhes, a Alemanha mergulhou numa grande crise social, econômica e política, condições que favoreceram a chegada dos nazistas ao poder, em 1933, com Adolf Hitler assumindo o cargo de chanceler. O governo hitlerista deu enorme impulso econômico ao país, inclusive com o veloz rearmamento militar. A Alemanha estava, novamente, na condição de potência com pretensões expansionistas e hegemônicas. Hitler olhava sobretudo para o leste e para a União Soviética, acalentando o sonho de destruir e escravizar os povos eslavos e naquela direção expandir o grande Reich. Derrotada completamente na Segunda Guerra Mundial foi, logo em seguida ao final do conflito, largamente beneficiada com o desencadeamento da chamada Guerra Fria, que opôs os Estados Unidos à União Soviética. Na verdade, a antiga República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) era, na Europa, o posto mais avançado de contenção e enfrentamento do bloco socialista.

Isso a colocou em situação extremamente privilegiada, pois recebeu durante todo o período da guerra fria tratamento diferenciado dos Estados Unidos, que para lá carrearam um montante incalculável de recursos, favorecendo seu rápido soerguimento. No período final da guerra fria, aproveitou-se da fraqueza demonstrada pela União Soviética e pela República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental), desmontou rapidamente esta última sob a bandeira da "reunificação" e se firmou como principal potência capitalista em toda a Europa, qualifícando-se, mais uma vez, para a disputa de posições hegemônicas. Está claro que a principal interessada no projeto da "União Européia" é exatamente a Alemanha, pois é ela a maior beneficiária deste projeto, do ponto de vista econômico e político.

Entendendo as particularidades da formação histórica de nosso país poderemos formular as bases de um projeto nacional capaz de encaminhar os graves problemas econômicos e sociais do país

O Japão, por seu lado, manteve-se isolado do Ocidente praticamente até meados do século passado. Tinha um regime feudal. No período 1868-1912, o Japão passou por grandes transformações, sob o imperador Mutsuhito, período conhecido como "Renovação Meiji". Sob o impacto dos choques provocados pelos contatos com o Ocidente, o imperador quebrou o regime feudal japonês, centralizou o poder em Tóquio, lançou as bases da modernização capitalista do país, reestruturou o exército e a marinha, ao mesmo tempo em que iniciou uma nova era de expansionismo japonês na Ásia. O caminho japonês também foi, à sua maneira, o de uma modernização conservadora e autoritária.

Sempre premido por suas limitações de recursos naturais e por suas pretensões hegemônicas na Ásia e no Pacífico, o Japão operou uma das mais rápidas e bem sucedidas transformações econômicas deste século, tendo em conta seu atraso relativo face às potências ocidentais. No começo da década de 1930 invadiu a China, estabeleceu um Estado fantoche na Manchúria e deixou claras suas pretensões de erigir um grande império na Ásia. Alinhou-se à Alemanha e à Itália na Segunda Guerra Mundial e se lançou contra as posições inglesas e norte-americanas no oceano pacífico, a partir do ataque surpresa à base de Pearl Harbor, no Havaí, em dezembro de 1941. Derrotado na Segunda Guerra Mundial, foi o único país a sofrer ataques nucleares, com o bombardeamento atômico das cidades de Hiroshima e Nagasaki, pelos Estados Unidos, em agosto de 1945. Destruído pela guerra e sob ocupação norte-americana foi, como a Alemanha, enormemente beneficiado pela Guerra Fria, pois, na Ásia, era o posto capitalista mais avançado de contenção do campo socialista (deve-se lembrar que a União Soviética era uma potência euro-asiática). A vitória da revolução chinesa, em 1949, só veio aumentar a importância do Japão para os Estados Unidos, assim como a eclosão da guerra da Coréia, em junho de 1950. Ali, também, o imperialismo norte-americano aplicou somas enormes, estimulando e favorecendo a reorganização e soerguimento econômico do país. O Japão manteve, porém, sua forte identidade nacional. Possui uma das bases econômicas mais modernas do mundo, opera em áreas tecnológicas de ponta e mantém um mercado interno muito fechado. É o país com quem os Estados Unidos têm o maior déficit comercial, situação que vem perdurando há muitos anos, em que pese todos os esforços e pressões norte-americanas por uma maior abertura do mercado japonês. Hoje, o Japão é, de longe, a principal potência capitalista da Ásia e uma das três maiores economias do mundo.

O fato objetivo é que estes três países, com trajetórias históricas muito diferentes, mantiveram sempre seus respectivos projetos nacionais e praticaram o protecionismo econômico com a maior desfaçatez quando isso lhes era conveniente (e, de uma maneira ou de outra, ainda que disfarçadamente, praticam-no até hoje). A base material destes projetos foi a montagem de um esquema de acumulação capitalista próprio, comandado por suas respectivas burguesias, que também passaram a controlar seus Estados nacionais, interferindo decisivamente nas suas trajetórias históricas. Nem os Estados Unidos e nem a Alemanha e o Japão são fruto de tendências puramente espontâneas ou da "mão invisível" do mercado: é provável que, se não tivessem combinado projetos nacionais bem definidos com circunstâncias históricas favoráveis, os Estados Unidos talvez tivessem sido divididos entre Norte e Sul, e o presidente Roosevelt teria deixado de intervir na economia, sem realizar o "New Deal", tão importante para a recuperação do poder norte-americano e para sua participação na Segunda Guerra Mundial. Na Alemanha, a ação de Bismarck e as idéias de List não teriam vicejado e talvez ela tomasse outro rumo, sem jogar papel tão estratégico na Europa e no mundo. E o Japão – quem sabe – não se modernizaria tão rapidamente, sucumbindo ao poder das potências ocidentais.

Não se entenda que se queira tomá-los como exemplos a serem cegamente seguidos, pois todos estes projetos foram projetos nacionais capitalistas e, em seguida, imperialistas, na medida em que estes países se transformaram em potências imperialistas, com pretensões hegemônicas em escala mundial. Com suas economias completamente dominadas pelos monopólios e pela oligarquia financeira, Estados Unidos, Alemanha e Japão deflagraram conflitos mundiais ou regionais e agrediram e submeteram muitos povos e nações, cometendo todo o tipo de atrocidades, com um alto custo em vidas humanas (basta lembrar a Alemanha nazista, pivô da Segunda Guerra Mundial, que foi o maior conflito em que a humanidade até hoje se envolveu). Mas, o importante a se destacar é que a ideologia que as burguesias monopolistas deste três países pregam há muito para os outros povos e nações, não corresponde, absolutamente, como quer fazer crer o "pensamento único", à própria trajetória histórica que eles percorreram.

E o Brasil? Aqui, à independência não se seguiu nenhuma revolução burguesa, que já direcionasse um projeto nacional (burguês) para o país. Nem tão pouco ocorreu qualquer tipo de "despotismo esclarecido" que operasse, ainda que "por cima", as necessárias transformações sociais e econômicas capazes de modernizar o Brasil e fazê-lo contemporâneo do curso da história mundial. País de desenvolvimento capitalista muito tardio, sempre fomos e continuamos a ser – apesar do tamanho de nosso território, dos nossos recursos naturais e da nossa população -, uma nação periférica no cenário mundial, caudatária das potências do momento e em crise constante de identidade. As elites que permanentemente aqui hegemonizaram o poder -pois este, até agora, jamais foi alcançado pelas classes populares – nunca implementaram um projeto que resultasse num país próspero e independente, mesmo dentro dos marcos do regime capitalista. Houve poucas tentativas neste sentido e se perderam muitas oportunidades históricas. Quem estuda a evolução econômica do Brasil percebe que problemas como crise cambial, inflação e dívida externa estão sempre presentes e entrelaçados. Tais problemas resultam de um regime capitalista deturpado e manco, submetido a interesses externos. Além das contradições e das mazelas normais do capitalismo, ainda tivemos de suportar uma permanente interferência das potências hegemônicas e do capital monopolista internacional na estruturação de nossa vida política e econômica. Ao longo de nossa história, inclusive na fase capitalista mais recente, temos transferido uma parcela considerável das riquezas aqui criadas para as potências imperialistas, pelos mecanismos da dívida externa, dos pagamentos de juros, das remessas de lucros, das trocas desvantajosas, etc. Grande parte do excedente econômico (mais-valia) aqui gerado vai para fora e, em termos relativos, somente uma parcela reduzida deste excedente é reaplicada no Brasil.

O fato objetivo é que os Estados Unidos,o Japão e a Alemanha, com trajetórias históricas muito diferentes, nunca abriram mão de seus projetos nacionais

Isso não quer dizer que aqui nada se fez. Nos períodos das duas guerras mundiais, houve razoável desenvolvimento industrial, pois estes conflitos, afetando os fluxos de capitais e mercadorias das potências capitalistas, estimularam as iniciativas de produção interna dos bens importados, sobretudo dos bens de consumo. A fase da Segunda Guerra Mundial foi a mais significativa do ponto de vista da industrialização nacional. Fatores internos e externos se conjugaram para estabelecer esta situação. Internamente, o Brasil estava sendo dirigido por Getúlio Vargas, o mais expressivo quadro político saído das fileiras da burguesia nacional. Aproveitando-se das condições criadas pela guerra, o primeiro governo Vargas deu um enorme impulso ao capitalismo de estado, procurando equacionar alguns dos principais pontos de estrangulamento que impediam a plena acumulação capitalista no Brasil.

Estabeleceu a grande siderurgia, em 1941, com a Companhia Siderúrgica Nacional3. Em 1942, nacionalizou a Itabira lron Ore Company, dominada pelo empresário norte-americano Percival Farquhar e que controlava as maiores jazidas de minério de ferro do país, localizadas em Minas Gerais. Em seu lugar, criou a Companhia Vale do Rio Doce, viabilizada pelo Acordo de Washington, no qual o governo brasileiro, organizando a Vale e também assumindo a Estrada de Ferro Vitória-Minas, comprometia-se a atender as necessidades de minério dos Estados Unidos e Inglaterra, envolvidos num enorme esforço de guerra4. O governo Vargas funda também a Fábrica Nacional de Motores, com o fim de fabricar aviões de guerra e que, a partir de 1946, passa a produzir caminhões pesados. Forma, em 1943, a Companhia Nacional de Álcalis, para fabricar barrilha e soda cáustica para a indústria química.

No âmbito da administração federal, cria um conjunto de órgãos administrativos voltados para o planejamento da produção de setores estratégicos, como o Conselho Nacional do Petróleo e o de Águas e Energia Elétrica (1939), a Comissão do Plano Siderúrgico e a Superintendência do Vale do Amazonas (1940) e a Comissão de Planejamento Econômico, junto ao Conselho de Segurança Nacional (1944)5.

No segundo governo Vargas (1950-1954), expande-se ainda mais o capitalismo de estado no país com a formação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, e a Petrobrás, em 1953, esta última como resultado de ampla campanha popular e nacionalista. O segundo período Vargas termina tragicamente, em agosto de 1954, com seu suicídio. O projeto por ele acalentado sofre modificações durante o governo Kubitschek (1956-1961), período em que a economia brasileira experimenta um grande processo de internacionalização, com o estabelecimento da indústria de bens de consumo duráveis (sobretudo automobilística), por grupos estrangeiros. O governo Kubitschek, de certa forma, substituiu a bandeira do nacional-desenvolvimentismo pela do desenvolvimentismo, expresso em seu Plano de Metas – conjunto de planos setoriais com a fixação de metas a serem atingidas predominantemente em áreas industriais, como petróleo, fertilizantes, siderurgia, alumínio, metais não ferrosos, cimento, celulose e papel, borracha, automóveis, construção naval, mecânica e material elétrico pesado. O Brasil, durante os anos cinqüenta, torna-se predominantemente país industrializado, com o valor da produção industrial superando o da produção agrícola e a indústria assumindo o papel de dinamizadora da economia. Entretanto, problemas centrais continuam sem solução: o país continua como grande importador de máquinas e equipamentos, de insumos básicos e de tecnologia; persiste a crise cambial que, por sua vez, alimenta a inflação. Além disso, a indústria de bens de consumo duráveis, quase toda formada por monopólios internacionais, pressiona gravemente a balança comercial com a importação de máquinas e insumos. Há também estrangulamento na área de serviços públicos – energia elétrica, comunicações – dominadas por companhias concessionárias estrangeiras, que não realizam os investimentos necessários, reforçando a campanha nacionalista pela estatização destas companhias. O país vai marchando para o impasse, há intensa mobilização sindical e em prol da reforma agrária e o projeto nacional, especialmente no curto período do presidente João Goulart, assume uma feição mais à esquerda, com características nacionais e populares, provocando um realinhamento das forças à direita – reunindo latifundiários, grandes capitalistas e os monopólios internacionais. Ecoam, nesta época, por toda a América Latina, os resultados da revolução cubana. A Guerra Fria se acirra e os Estados Unidos tomam a ofensiva na região, apoiando golpes militares e fazendo intervenções. Em março de 1964, o presidente Goulart é deposto e começa o regime militar, que iria durar cerca de 20 anos.

O regime instaurado pelo golpe militar alinha o Brasil no bloco norte-americano, apoiando-se nas formulações da "segurança nacional" elaborada pelos meios militares dos Estados Unidos. No plano interno, os militares abandonam quaisquer veleidades de um projeto nacional autônomo e passam a pregar a doutrina da interdependência, reconhecendo abertamente a hegemonia norte-americana. Para muitos, contraditoriamente, o regime militar desenvolve mais ainda no país o capitalismo de estado. Na verdade, ele modifica o papel do setor produtivo estatal, colocando-o a serviço da acumulação dependente. Sua fórmula era: endividar-se para crescer, crescer aumentando significativamente as exportações para gerar superávits e controlar a dívida. Há o período da euforia e do "milagre brasileiro", mas esta equação vai por água abaixo quando modificam-se as condições do mercado financeiro internacional, sobre as quais o Brasil não tinha o menor controle. Os governos Geisel e Figueiredo, enfrentando a diminuição do fluxo de capitais externos e altas constantes das taxas de juros no mercado internacional, fazem o Estado assumir o risco cambial do setor privado e utilizam as empresas estatais para a contratação de operações de crédito externos em condições cada vez piores, endividando pesadamente estas empresas. A ordem, antes como agora, é a de conseguir dólares a qualquer preço. Os militares, em meados dos anos 80, saem do poder e entregam um país e um setor público falidos, com obrigações em atraso e amarrado a um serviço da dívida estrangulados A taxa de investimento público cai a níveis baixíssimos.

No plano internacional, já se delineia o esfacelamento da União Soviética e a imposição da "nova ordem mundial" pelos Estados Unidos. Esta nova ordem, na América Latina, atinge furiosamente o chamado capitalismo de estado, em particular as grandes empresas estatais. O governo Collor e, posteriormente, o governo Fernando Henrique, alinham-se completamente à nova ordem e abandonam qualquer projeto de desenvolvimento nacional independente, que passa a ser considerado idéia absurda e ultrapassada. Vem a época do Plano Real, que sofre grande impacto com a crise mexicana de dezembro de 1994. Tudo-controle da inflação, taxa de investimento, política cambial – repousa na expectativa de um grande fluxo de capitais externos e o país declara-se disposto a pagar qualquer preço para garantir este fluxo. Uma das principais moedas de troca oferecidas é a privatização das empresas estatais. Gustavo Franco, principal teórico do governo FHC no terreno econômico, chega a afirmar, em trabalho divulgado em fins de 1996, que o atraso do Brasil se devia àqueles que o amarraram ao "viés do mercado interno" e à industrialização por meio da substituição das importações.

"Sem dúvida", afirma, "o atraso para pegar o bonde da globalização se deve ao viés pró-mercado interno (pró-substituição de importação) das políticas locais, cuja ênfase esteve sempre associada à noção de auto-suficiência e à constituição de superávits comerciais"6. Defende a tese de que tudo se resume a uma questão de produtividade e que, com "a abertura e as transformações dela decorrentes", espera-se "que o país mude progressivamente a natureza de sua competitividade", resolvendo-se o nó górdio de nosso atraso. Ataca qualquer idéia de "projeto nacional" com base na ação do Estado, afirmando que "o governo não é mais o agente primordial do processo", pois o "progresso e o crescimento se obtém crescentemente na área privada e, nestas circunstâncias, o governo precisa se acostumar, ao exibir um cartel de realizações, que não se limita e nem mesmo prioriza, o números de obras ou programas que iniciou".

Voltamos, assim, ao "pensamento único", ao pretenso enunciado de leis econômicas que dariam certo em qualquer parte, sob quaisquer circunstâncias. A grande realização do governo Fernando Henrique, em 1996, apresentada e decantada é o montante recorde de investimentos estrangeiros que ingressaram no país, da ordem de US$ 9 bilhões. Não se discute que, mais uma vez, a taxa de crescimento da economia foi muito baixa, inferior a 3% (segundo estimativas oficiais), além de um déficit recorde na balança comercial (exportações menos importações), de US$ 5 bilhões, e um buraco nas transações correntes com o exterior de US$ 23 bilhões. De que adiantam bilhões de dólares externos com uma taxa de crescimento tão baixa e resultados tão negativos nas contas externas? Na verdade, os tais investimentos não são investimentos no sentido de que a capacidade produtiva esteja aumentando de maneira significativa. São, em grande parte, simples aquisições de fábricas e empresas brasileiras, públicas e privadas, como a Light/Rio (adquirida em 96 pela empresa estatal francesa Eletricité de France) e a Metal Leve (adquirida, também no ano passado, pela sua concorrente alemã Mahle). Até mesmo João Sayad, banqueiro e ex-ministro do Planejamento, coloca-se como um crítico àqueles que acham que este tipo de investimento externo seja um progresso para o Brasil. "Confesso que não acredito nessa alternativa – inédita na história do desenvolvimento de um país – em que muitos empresários ficam eufóricos com a entrada de investimentos estrangeiros, que vêm comprar seus negócios", escreveu ele7.

O governo FHC esta desmantelando a espinha dorsal da economia brasileira, ou seja, o setor produtivo estatal, que é a base principal da geração de riqueza no país

O governo Fernando Henrique está desmantelando a espinha dorsal da economia brasileira, ou seja, o setor produtivo estatal, que é a base da geração de riqueza no país. O regime militar desvirtuou e endividou este setor e o governo Fernando Henrique quer lhe dar o golpe final, transformando-o em simples moeda de troca para o pagamento de dívidas que expressam a subordinação do país à oligarquia financeira internacional. Este capitalismo de estado é o produto mais importante de décadas de desenvolvimento e do trabalho gerado pelo povo brasileiro. Ele representa o que o Brasil, bem ou mal, conseguiu organizar em termos de nação e compreende não uma ou duas companhias, mas um grande conjunto de empresas estatais como Petrobrás, Vale do Rio Doce, Eletrobrás, Telebrás, Banco do Brasil, BNDES, etc, a maioria delas com estruturas que abrangem todo o território nacional. Este conjunto de empresas (inclusive, é claro, as que já foram privatizadas) é que garante as condições básicas de funcionamento de nossa economia, fornecendo insumos básicos, energia elétrica, petróleo, infra-estrutura de comunicações, matérias-primas, sistema de crédito e financiamento para novos investimentos, etc. Fora desta área, não há, praticamente, geração de tecnologia no país. Se o Brasil, com todas as suas limitações, conseguiu estar entre as dez maiores economias do mundo, deve isso essencialmente à montagem do setor produtivo estatal.

Sob o comando de forças conseqüentes e apoiando-se nesta estrutura, seria possível deslanchar um grande projeto nacional, que não se reduziria jamais à simples "inserção" subordinada do Brasil no atual processo de globalização, mas um projeto independente e próprio, comandado de dentro do país, apoiando-se nos interesses nacionais e populares e baseado na participação popular. Não seria, obviamente, apenas a retomada do projeto nacional dos anos quarenta e cinqüenta, de vez que os cenários nacional e internacional sofreram profundas modificações. Não há, no país, nenhum setor da burguesia capaz de conduzir este projeto. Ou as forças populares assumem seu comando – incluindo a resistência tenaz e o combate ao governo FHC, expressão acabada, em nosso país, da nova ordem unipolar e de sua ideologia – ou o Brasil poderá sofrer enorme retrocesso como nação que se pretende soberana e independente.

Luiz Marcos Gomes é economista e jornalista. Foi editor de economia dos semanários Opinião e Movimento e membro do Conselho Federal de Economia de 1987 a 1989.

Notas

1.Ignacio Ramonet, "La pensée uni-que", Le Monde Diplomatique, janeiro/1995.
2.Ver Georg Friedrich List, Sistema Nacional de Economia Política, trad. de Luiz João Baraúna e apresentação de Cristovam Buarque, in "List/ Sistema Nacional de Economia Política e Hodgskin/A Defesa do Trabalho Contra as.Pretensões do Capital", coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1986.
3.Isso dá uma idéia do atraso do Brasil, pois enquanto se desenrolava uma guerra mundial decisiva entre as potências aliadas e o eixo nazi-fascista, com o emprego de armas e de tecnologias jamais vistas – entre as quais a tecnologia dos foguetes e a nuclear-, o Brasil cuidava de montar sua primeira usina de aço de grande porte!
4.Para uma visão abrangente dos antecedentes e da formação da Companhia Vale do Rio Doce, ver Demerval José Pimenta, A Vale do Rio Doce e sua história, Editora Vega S. A., Belo Horizonte, 1981.
5.Francisco Iglésias, História Geral e do Brasil, Edições Júpiter, 4a ed., Belo Horizonte, 1976.
6.Gustavo H. B. Franco, A inserção externa e o desenvolvimento, mimeografado, 1996.
7.João Sayad, É possível ter um Estado Desenvolvimentista?, Folha de S. Paulo, 08/04/96

EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12