Niemeyer foi grandemente influenciado por Le Corbusier, que afirmou que ele tem “as montanhas do Rio nos olhos”. Seus trabalhos também se referenciam à arte colonial barroca e ao estilo decorativo português dos azulejos. Entre suas obras mais importantes destacam-se o pavilhão brasileiro da Feira Internacional de Nova York de 1939, que afirmou a arquitetura moderna brasileira no exterior; o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte (1942-3); o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos, São Paulo (1947), além de inúmeros monumentos – inclusive um que está sendo realizado atualmente em Cuba. Integrou as equipes internacionais que projetaram o Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio da Cultura, no Rio de Janeiro, e a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Tem obras na Venezuela, Alemanha, Itália, Israel, Líbano, Argélia, Gana, França, Portugal, Rússia, dentre outros países. Recebeu vários prêmios internacionais. Brasília, a capital projetada por Niemeyer, foi inaugurada em 21 de abril de 1960 e em 1987 declarada patrimônio histórico da humanidade pela Unesco.

O arquiteto, que sempre reafirma suas convicções comunistas, concedeu esta entrevista a Princípios em junho, em seu escritório no Edifício Ypiranga, avenida Atlântica, Copacabana. No que você está trabalhando atualmente?

Niemeyer: Estou com o projeto de um prédio em São Paulo, outro em Portugal. Sempre mantive a minha relação de trabalho sem envolvimento com a política. Sempre contatos profissionais. Não posso me queixar. No Memorial da América Latina, por exemplo, os vãos eram grandes. Mas na ponte sobre a rua, por economia, eu previ uma coluna. Com 0a obra quase pronta, verifiquei que havia uma contradição. Era preciso retirar a coluna do meio da ponte. Os colegas e construtores disseram que isso seria impossível, criaria muitas críticas. Contra a opinião deles, fui ao Quércia que, compreensivo, aceitou a minha proposta. A coluna foi retirada e a ponte suspensa com um tirante externo. Eu gosto de escrever, e agora fiz um pequeno conto. Um passatempo como outro qualquer. É a história de um professor que quer escrever um livro mostrando que o Universo não foi feito para nós, e dele fazemos parte, humildes, insignificantes. Ele cria um grupo, e como a história se passa no tempo do Médici, a política os envolve e a briga começa. Darcy Ribeiro fez um pequeno prefácio e os amigos insistem para que eu o publique.

Qual o balanço que você faz da arquitetura brasileira?

Niemeyer: É grande a influência da nossa arquitetura. Até na obra do Le Corbusier influenciou. Isso se verifica nos seus últimos trabalhos. É o que diz seu amigo, o pintor Ozenfant, no seu livro de memórias: “Le Corbusier, a partir de certa data deixou de lado o ângulo reto, que tanto o entusiasmava, seguindo uma arquitetura que vem de fora, com muito talento”. Agora mesmo vou fazer uma palestra na Argentina, para atender a um abaixo assinado de 700 arquitetos de La Plata, que para isso me convidam. Gosto de falar aos estudantes e dizer-lhes que a arquitetura é importante, mas muito mais importante é a vida, a família, os amigos e mudar esse mundo tão injusto que vivemos.

Qual foi o grande momento da sua vida profissional?

Niemeyer: Talvez quando eu terminei os meus projetos na Europa, sentindo que minha arquitetura era compreendida, que criava surpresas. Para os estudantes, sempre digo que não basta ser um bom profissional. Que é preciso sair da escola compreendendo os problemas do país em que vivem, deste Universo imenso que tentamos decifrar. Digo-lhes também que é essencial ler um pouco, saber escrever. Não para fazer literatura mas, com um texto simples, poder explicar os seus projetos. Ninguém entende de arquitetura, mas com uma explicação clara é mais fácil compreendê-la. Quando eu chego a uma solução arquitetônica, começo a redigir os meus textos explicativos. E se ao fazê-lo não encontro bons argumentos, volto à prancheta. É uma espécie de prova dos nove. Com o tempo muita coisa desmereceu a arquitetura. Principalmente aquela preocupação de beleza que antes a dominava. Lembro a Renascença, quando a arquitetura e as artes plásticas se entrelaçavam e as pinturas subiam até os tetos. Depois veio o racionalismo, e a idéia de evitar tudo que era supérfluo na arquitetura. As belíssimas pinturas murais foram substituídas por materiais novos, às vezes tão caro quanto elas. Essa ligação da arquitetura com as artes plásticas foi renovada no Brasil por Capanema. É um princípio fundamental que eu procuro seguir até hoje. No Memorial da América Latina convocamos os artistas, nossos irmãos, e tantos que até um livro sobre a colaboração deles foi possível fazer.

Você uniu, com rara felicidade, o seu trabalho com a própria luta, como no Memorial da América Latina…

Niemeyer: Realmente, fiz alguns momentos por aí, todos de protesto. Tortura Nunca Mais, por exemplo, que não foi construído. Depois fiz um monumento contra a morte de três operários em Volta Redonda. A polícia explodiu o monumento. Nós voltamos e propus que fosse refeito, deixando as cicatrizes. Recebi telefonemas de ameaça, mas o monumento ainda está lá. Fiz outro para a África, lembrando a vinda de escravos para a América Latina. Uma placa de 80 metros de altura, com a figura de um escravo sacrificado. Fiz depois um monumento para os Sem Terra, essa luta fantástica que os irmãos mais pobres fazem pela reforma agrária. Vieram buscá-lo no meu escritório, com um pequemo comício diante dele. E aí conheci Stédile, uma grande figura no comando dos Sem Terra.

Você teve a oportunidade de fazer um monumento ou projeto registrando vitórias do movimento popular, de festa, de alegria?

“Pampulha foi o início da minha arquitetura. Essa arquitetura mais livre e mais criativa que começa a correr o mundo. Considerar a arquitetura uma invenção é a palavra-de-ordem que sigo hoje”

Niemeyer: Gostaria de fazê-lo, mas a merda continua. O último que fiz, e que Fidel adorou, foi contra o cerco de Cuba, essa coisa odiosa que envergonha a história dos homens.

Tem também o seu trabalho em Pampulha…

Niemeyer: Foi o meu primeiro trabalho e a primeira obra do JK. Lembro que quando fui falar com o Juscelino, ele me disse: “Vou fazer Pampulha, um bairro novo em Belo Horizonte, diferente, fantástico. Mas preciso que você faça o projeto do cassino para amanhã de manhã”. Eu era jovem, e senti que devia atendê-lo. Trabalhei a noite inteira e no dia seguinte entreguei o projeto. É o cassino que foi construído, e JK compreendeu que eu era uma pessoa que podia atendê-lo nas suas pressas. E isso ocorreu nos 4 anos em que Brasília foi construída. Pampulha foi início da minha arquitetura. Essa arquitetura mais livre e mais criativa que começa a correr o mundo. Considerar a arquitetura uma invenção é a palavra de ordem que sigo até hoje.

Como foi a experiência de fazer Brasília?

Niemeyer: Brasília foi uma aventura. E construí-la no interior do país foi idéia de JK. Em quatro anos ela foi realizada. Apesar de todas as críticas surgidas, de todas as mentiras inventadas. Isso deu ao povo brasileiro o otimismo que precisava, sentindo que nós, brasileiros, também podemos fazer muita coisa. Brasília nos deu muito entusiasmo mas também muito desconforto. Uma solidão difícil de suportar. Quando eu fui para Brasília com a minha equipe de arquitetura, levei comigo um jornalista, um médico que nada sabia de medicina, mas era amigo e sabia brigar, e cinco ou seis amigos que estavam na merda. Não tinham profissão definida, mas que eu podia ajudar. E todos foram úteis, dentro das suas possibilidades. O que eu não queria era ficar nas noites de Brasília, naquele descampado do cerrado, a falar só de arquitetura. Com esse grupo tão heterogêneo, o ambiente ficou mais agradável, os assuntos mais variados, e, para nós, mais fácil conviver naquele mundo abandonado.

Dizem que você renega algumas obras que fez em São Paulo, como o Copan…

Niemeyer: Nada disso. Algumas foram obras de caráter imobiliário, presas a problemas econômicos, como era inevitável. Éramos jovens, trabalhávamos em grupo, tínhamos o apoio de Otávio Frias, um bom amigo nosso. Lembro-me satisfeito daqueles velhos tempos. Depois, o Ibirapuera, e passamos a lidar com Cicilo Matarazzo, outro bom amigo. Convidei colegas do Rio e de São Paulo para colaborarem. E a obra foi feita, mas até hoje está inacabada. Falta o auditório que, ligado à cúpula exixtente, devia marcar a entrada do conjunto. É pena que, numa cidade importante como São Paulo, uma obra como a Bienal seja desprezada. Depois foi a América Latina, e lá está com 7 metros de altura, a mão espalmada com o sangue a escorrer até o punho, que representa um continente explorado, invadido, que, acreditamos, unido, poderia se defender melhor.

Como você vê o Rio de Janeiro hoje?

Niemeyer: No Rio, como em São Paulo, o problema é o mesmo. O crescimento descontrolado, a circulação degradada e a técnica atual criando os novos meios de circulação, com suas sequelas inevitáveis. Mas eu gosto do Rio. Gosto da displicência com que o carioca sente a vida. Não porque algum princípio filosófico o provoque, mas porque a natureza bela, e as praias e o mar o fazem mais desinibido e feliz. E gosto de São Paulo, é claro, onde tenho muitos amigos, com sua vida dinâmica, voltada para o trabalho e o progresso.

O que você está achando da juventude no Brasil?

Niemeyer: Quando a gente pensa na juventude no Brasil, tem que pensar primeiro nos que nunca tiveram uma juventude feliz. Sem escola, sem casa, perambulando pelas ruas, entregues a todos os vícios. E são milhares. A maioria, com certeza. E deles ninguém cuida. Nem o governo, nem a classe privilegiada, com os seus luxos e egoísmos.

Qual sua opinião sobre a luta dos sem terra?

Niemeyer: É fantástica. Ninguém pode ser contra a reforma agrária. A terra a todos devia pertencer. É um problema delicado, que exige muita cautela. Se a terra for ruim, muito empedrada, sem água e sem meios de transporte, a reforma agrária pode ser até uma cilada. É claro que ninguém pode ser contra a reforma agrária. Só um cretino. E o próprio governo não tem coragem de assumir uma atitude negativa.

Como você analisa a situação atual?

Niemeyer: Eu não sou economista. E quando sentimos que entre eles uma dúvida fundamental ainda existe, o melhor é cada um seguir a sua intuição natural. Protestei a vida inteira. Participei de todos os atos pelo Petróleo é Nosso. Não é possível agora aceitar essa privatização invadir o nosso país. A impressão que eu tenho é que agora o dinheiro comanda tudo. Que a solidariedade e a justiça desapareceram. Eu nunca podia ser um bom político. Se eu tivesse que demitir 500 famílias, eu acho que eu ia embora. A grande guerra mundial, o nazismo, começou silenciosamente apoiando o general Franco, e as primeiras vítimas daquela hecatombe que sacudiu o mundo foram os republicanos espanhóis. Quem sabe se, no Brasil, as primeiras vítimas da privatização não foram os que se sacrificaram na luta pelo Petróleo é Nosso? A impressão que eu tenho é que no Brasil existem agora três posições definidas. Os que estão bem de vida, e apóiam o governo satisfeitos com esse regime de classe em que vivemos. Os que, coniventes, aceitam, apesar de progressistas, os pequenos favores que o capitalismo concebe para se manter. E os que, como eu, desejam uma sociedade sem classes, que o governo capitalista nunca via permitir. Para estes, só a revolução resolve. Não é uma revolução para amanhã, mas uma revolução feita pelo povo, quando possível. Pois os que sofrem representam a grande maioria, esmagados pelo poder do dinheiro, angustiados, sem esperanças.

Você afirma que é pessimista, mas não perde a perspectiva do socialismo…

Niemeyer: O otimismo, já dizia aquele líder italiano no cárcere, é a vontade de não fazer nada. Eu sou pessimista, mas não pretendo o niilismo. O pessimismo que eu defendo é o pessimismo de Sartre, que dizia que toda a existência é um fracasso, mas ao mesmo tempo defendia Cuba e todos os movimentos progressistas, declarando aos amigos que gostava de ter dinheiro no bolso para dar esmolas. Sou pessimista porque sei que este Universo não foi feito para nós. Que a vida é um sopro e somos filhos da natureza, irmãos dos bichos da terra e dos peixes do mar. Acho que o pessimismo realista levaria os homens a esquecer essa preocupação de luxo e riqueza, de mando e poder, que desmoraliza suas pobres vidas.

Alguém na sua família era comunista?

Niemeyer: Pelo contrário. Meu avô, Ribeiro de Almeida, foi ministro do Supremo Tribunal durante muitos anos, e morreu pobre, deixando para os seus quatro filhos somente a casa hipotecada. E nós morávamos nas Laranjeiras. E é por esse motivo que quero morrer pobre como ele. O que eu ganho, eu gasto. E por isso tenho que trabalhar para o dia seguinte.

“(…) e lá está com 7 metros de altura, a mão espalmada com o sangue a escorrer até o punho, que representa um continente explorado, invadido, que, acreditamos, unido, poderia se defender melhor”

Como foi o seu contato com o movimento comunista?

Niemeyer: Eu não era do Partido. Ajudava o Socorro Vermelho. Entrei para o Partido em 45, quando Prestes saiu da prisão. A pedido de um amigo, recolhi 15 comunistas no meu escritório e tomei contato com eles, com o clima de idealismo e luta em que viviam. Me solidarizei com eles e entrei para o PCB.

Qual foi o grande momento de sua biografia política?

Niemeyer: Quando Prestes saiu da prisão, e os grandes comícios que realizamos. Foi um período de entusiasmo que logo passou. Eu me lembro que para falar com o Prestes eu já tinha que pegar um carro, mudar de carro no caminho, para ir para uma casa que nunca procurei saber onde era. Minha colaboração foi sempre muito modesta. Os outros lutaram muito mais do que eu, foram presos, torturados.

Qual foi o momento mais difícil que você viveu?

Niemeyer: A vida é cheia de alegrias e tristezas. Mas ficar no exterior, longe da família, sem saber o que ocorria no meu país, não foi fácil. Mas ao mesmo tempo tinha amigos, andávamos de um país para o outro, vendo coisas novas, novas amizades, e tudo isso foi muito bom. Lembro tempos de Argel. O contato que tínhamos com dirigentes dos países africanos, lutando pela libertação de seus países. Gente boa, com os quais gostava de conversar. E é com satisfação que sentimos que a vitória ocorreu e que muitos hoje são ministros em seus países. Gostava de Paris, onde fiquei muitas vezes com apartamento no Boulevard Raspail, da Copule, dos amigos franceses que conhecia. Do meu escritório no Champes Elysées, de Sartre, André Maurois e dos camaradas do partido, meus amigos. E viajei muito. Até na Arábia Saudita um dia eu fui parar.

E o exílio?

Niemeyer: O governo dos militares, ou melhor, o prefeito de Brasília, queria que eu pedisse demissão, e tudo fazia para me sacanear. Um dia enchi o saco e fui para o exterior. E eles, que queriam me calar, deram-me a oportunidade de levar minha arquitetura para a Europa e fazê-la conhecida, como desejava. Para isso tive apoio de Maurois, que conseguiu de De Gaulle uma lei especial para eu trabalhar na França.

Como você vê os partidos de esquerda no Brasil?

Niemeyer: Eu acho que todos os partidos de esquerda deviam se unir. Eu me considero de todos eles, inclusive do PCdoB, que é o mais ativo.

Qual sua avaliação do governo Fernando Henrique?

Niemeyer: Estou muito preso às minhas antigas convicções. E não penso em mudá-las. Sou contra o globalismo, a privatização, contra tudo o que ofende os meus velhos princípios. E como o tempo me fez mais radical, assino qualquer protesto, qualquer coisa que os ofenda ou contrarie.

Quais suas impressões sobre o resultado eleitoral da França, com a vitória da esquerda?

Niemeyer: Fiquei contente com a vitória da esquerda, e estou certo que o mesmo vai acontecer nos países do Leste, já descrentes da farsa em que se meteram. Até na União Soviética tenho esperanças. É impossível que um país tão importante, dono de uma história fantástica de luta e de liberdade, não se recupere. Há poucos dias recebi a visita de um casal soviético. Deram-me um relógio comemorativo dos 70 anos de luta política e, na conversa, perguntaram-me: “O que você acha de Gorbachev?” É uma merda, respondi. E eles riram, dizendo “Nunca vimos uma palavra tão bem empregada”. Quem leu Dostoievski, Tolstói e Gorki tende a acreditar no povo soviético, tão amante da paz e da liberdade. A vida é perversa, mas é de forma solidária e de mãos dadas que os homens devem vivê-la.

Carlos Pompe
Jornalista. A presente entrevista foi realizada em 03-06-1997.

EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54, 55