A visita do Papa a Cuba foi, na opinião dos próprios adversários da Revolução, um acontecimento cujo balanço favoreceu amplamente o regime socialista.

Nas vésperas da chegada de João Paulo II havia otimismo em Havana, mas as apreensões eram
muitas.

O próprio fato de Fidel Castro, em uma conferência de imprensa, ter sublinhado que assumia pessoalmente a responsabilidade pelo empenho do Estado e do Partido na mobilização do povo, contribuiu para criar em torno da visita uma atmosfera de desafio, um desafio não isento de riscos.
Muitos cubanos de firmes convicções revolucionárias consideraram excessivos os elogios então feitos por Fidel a João Paulo II e a sua personalidade porque traduziam uma confiança que não encontrava fundamento nas ações e palavras do bispo de Roma ao longo dos vinte anos do seu polêmico Pontificado.

Torna-se hoje secundário proceder à exegese da opinião de Fidel sobre o Papa. Parece mais importante, na perspectiva da história, compreender a certeza que ele tinha quanto ao resultado, uma certeza inabalável, expressa no apelo insistente para que todos os cubanos, incluindo os não-católicos – a maioria do povo – fossem às missas papais, fazendo dialeticamente da sua presença um ato de defesa do socialismo alheio a quaisquer sentimentos religiosos.

As extensas citações que na referida conferência de imprensa Fidel fez de homilias e encíclicas do Papa, refletiam todas elas posições progressistas de João Paulo II. Comentando o que ocorrera em Roma em dezembro de 1996 durante a reunião da FAO, não hesitou em afumar: "quase se poderia dizer que os dois discursos mais parecidos que foram pronunciados nessa conferência sobre a alimentação foram o do Papa e o meu."

Os balanços iniciais do grande acontecimento político que foi a visita de João Paulo II a um país cujos dirigentes proclamam a sua fidelidade ao marxismo-Ieninismo, portanto a uma concepção materialista da história, confirmam que Fidel conhecia muito bem a evolução do posicionamento estratégico do Papa Karol Woytila. E essas, na transição do milênio, distanciaram-se muito das que orientaram sua ação no início do seu Pontificado. O pensamento político do Papa, no tocante à ideologia, não mudou. Mas como o mundo é outro, porque não caminhou na direção que ele esperava, as formas de atuar e os objetivos do chefe da Igreja Católica também mudaram.

Bernstein e Politi reconstruíram com paciência os vínculos que, a partir da primeira viagem papal à Polônia, se desenvolveram entre João Paulo II e a Casa Branca.
O presidente Carter incumbiu então o seu conselheiro Zbignew Brzezinski, de origem polaca, de estabelecer com o Vaticano as bases de uma aliança tática que veio a atingir a sua máxima expressão durante os mandatos de Ronald Reagan.

William Casey, o diretor da CIA, e o general Vernon Walters, dirigente destacado da organização, ambos católicos, cumpriram então missões delicadas e de grande importância. Tal como Reagan, Walters acreditava que "o verdadeiro poder na Polônia era Woytila, mesmo sentado no seu gabinete, atrás das paredes do Vaticano".(1) Tad Szulc vai mais longe: "a forma direta, mas muitíssimo eficaz como o Papa dirigiu de modo pessoal a crise polaca, foi a pedra de toque no processo que estava provocando a desintegração do comunismo" (2). A opinião pode chocar por demasiado categórica, mas o autor fundamenta-a em tomadas de posição do Papa.

Bernstein-Politi afirmam que os chefes da Igreja, ao reunirem-se no Vaticano em 1982, decidiram “utilizar o enorme poder de que dispunham para promoverem uma mudança fundamental no mundo, a qual, para ambos, era inspirada por Deus: o eclipse do comunismo pelos ideais cristãos".
Os mesmos autores salientam que o Papa nunca levou muito a sério Gorbachev. Falando a respeito dele, atribuem-lhe o seguinte comentário: "é um bom homem, mas fracassará porque quer realizar algo impossível. O comunismo não pode ser reformado".

O Papa tinha, porém, uma grande confiança na contribuição das lutas sociais na Polônia para a
derrocada do socialismo na União Soviética. Segundo Bernstein-Politi, teria dito: "A Perestroika é uma avalancha que nós desencadeamos e seguirá o seu caminho. A Perestroika é um prolongamento do Solidariedade; sem o Solidariedade não teria existido a Perestroika. Reagan, no entender dos biógrafos do Papa, nunca conseguiu compreender bem as suas motivações. Temia as reações imprevistas do Sumo Pontífice romano. Em 1983 receava que João Paulo II, ao visitar a Nicarágua, assumisse atitudes prejudiciais ao desenvolvimento da política norte-americana na Região, embora ambos coincidissem na condenação da Teologia da Libertação. O Presidente dos Estados Unidos pediu por isso a monsenhor Pio Laghi (hoje cardeal) que persuadisse João Paulo II a apoiar o arcebispo Obando y Bravo contra a igreja popular nicaragüense. E que lhe pedisse também que não condenasse os contra somozistas, definidos, por Reagan, como "combatentes da liberdade" e "novos Bolívares" …
A visita, como se sabe, foi desastrosa para o sandinismo. João Paulo II intimou os padres Ernesto e Fernando Cardenal e D’Escoto a deixar o Governo.

Obviamente, João Paulo II nunca alinhou de maneira incondicional com os Estados Unidos. A sua aliança foi sempre tática. Tinha consciência das contradições que opunham os interesses da Igreja a estratégia de domínio planetário do imperialismo norte-americano. Muito antes da sacralização do mercado e dos atuais delírios do neoliberalismo ortodoxo, o Papa desconfiava já das metas do capitalismo e as temia. Sabia que o fosso crescente entre o Norte industrializado e o Sul subdesenvolvido, e o distanciamento entre minorias cada vez mais ricas e egoístas e a massa dos trabalhadores e excluídos, cada vez mais pobres, implicavam para a Igreja a obrigação de condenar os efeitos do capitalismo e a loucura consumista. Se o não fizesse, as massas afastar-se-iam mais e mais dela. Não obstante o seu fortíssimo sentimento anticomunista, sabia também, como sublinham Bernstein-Politi, "que se fosse destruída a ordem mundial consagrada em Ialta, haveria um regresso à ordem mundial consagrada em Versalhes. E essa não fora uma ordem mundial muito boa". A partir da desagregação da União Soviética e do fim do socialismo na Europa, João Paulo II percebeu de que o fim da guerra fria, ao alterar radicalmente a correlação de forças preexistente, exigia, do Vaticano, uma mudança da sua política externa.

A sua visita à Polônia, em 1991, terá sido determinante para a revisão estratégica. Regressou a Roma decepcionado. O seu próprio povo o recebeu quase com indiferença. O Solidariedade perdera a motivação e principiava a perder o prestígio; transformara-se num grupo de interesses no qual a corrupção alastrava.

O grande sonho papal de "uma luz vinda", que ajudaria a Igreja a recuperar força e influência, desfez-se no duro contato com as realidades. O capitalismo não trouxe a democracia nem a felicidade às sociedades ex-socialistas. Em vez do prometido bem-estar, apareceram flagelos sociais num contexto de anarquia: desemprego, miséria, desigualdades chocantes, máfias e corrupção generalizada.
O comunismo, com o desaparecimento da União Soviética, deixou de ser olhado por João Paulo II como o inimigo principal. As conseqüências da sacralização do mercado aparecem-lhe como perigos bem maiores. Na febre consumista identificou um inimigo da Igreja. Está se abrindo um caminho – declarou numa das suas homilias – para o triunfo do lupencapitalismo, um tipo de capitalismo selvagem e desprezível.

Essa linguagem somente podia afastá-lo de Washington, não obstante a cautela posta na crítica a aspectos do capitalismo, a qual deixa entrever a possibilidade de um capitalismo bom, aprovado pela Igreja.

A primeira condenação do bloqueio a Cuba – agora renovada na missa de Camaguey – foi devidamente analisada e interpretada na Casa Branca.

No que se refere à política interna da Igreja não houve, entretanto, alterações. João Paulo II não se afastou da sua estratégia de condenação das tendências progressistas que se manifestam na instituição. Continuou a combater a Teologia da Libertação, contrariou o rumo da Companhia de Jesus enquanto promovia a Opus Dei, manteve-se intransigente na condenação do aborto e dos anticoncepcionais, opôs-se ao debate sobre o celibato dos padres e à ascensão ao sacerdócio de mulheres e não hesitou em afastar bispos e padres que na sua opinião estavam a levar longe demais o espírito do Concílio Vaticano II.

O êxito da visita papal a Cuba foi, em grande parte, como salientei antes, uma vistoria pessoal de Fidel Castro. Muitos latino-americanos progressistas recordavam com apreensão o que se havia passado na Nicarágua, em março de 1983. Eu estava em Manágua nesses dias e não esqueço o que então se passou. O seu discurso foi ali, de começo ao fim, hostil à Revolução Sandinista.

Em 15 anos o mundo deu muitas voltas. Fidel terá sido o primeiro estadista a avaliar as imensas implicações da revisão estratégica a que o atual papa se viu forçado pelos acontecimentos da história. Percebeu que o seu povo poderia tirar grandes benefícios da nova política – sempre sinuosa – mas muito diferente, do Vaticano. Decidiu correr o risco, com o apoio do Partido e do Governo, e os fatos confirmaram a correção da sua análise.

MIGUEL URBANO RODRIGUES é jornalista.

(l)Su Santidad Juan Pablo II y la historia oculta de nuestro tiempo, de Carl Bernstein e Marco Politi, Ed. Norma, Bogot, 1996.
(2)El Papa Juan Pabio II, Tad Szulc, Ed Martinez Roca, Barcelona, 1995.
Obs.: O sociólogo cubano Aurelio Alonso Tejada publicou no número 10 da revista Temas, de Havana, lançado dias antes da visita papal, um interessante artigo intitulado "Wojtyla, el papa del fin de siglo".

EDIÇÃO 48, FEV/MAR/ABR, 1998, PÁGINAS 63, 64