Gerou grande controvérsia a aula magna ministrada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso na Universidade Sarah, logo após o anúncio da composição do novo ministério. O Presidente recorreu a Max Weber, pensador alemão do final do século passado e início deste, para estabelecer uma distinção entre a ética do cientista e a ética do político. Parte da controvérsia foi dirigida para saber se o Presidente recorreu com propriedade e fidelidade, ou não, ao cientista social alemão. A questão relevante é evidentemente a pertinência da referência pois não se discute o rigor do presidente-sociólogo em operar abstratamente com os conceitos de um dos clássicos da sociologia. “O homem de Estado não pode dizer tudo o que sabe, sob pena de, ao proclamar, prejudicar o Estado, a nação e o povo”. Afirmação perfeitamente pertinente se se tratasse, por exemplo, do preparo de uma ação militar de defesa de fronteiras, ou da elaboração de medidas econômicas com repercussões imediatas na especulação cambial. A questão, contudo, era de natureza bem diferente.

O Presidente “não pode dizer tudo o que sabe” porque não conseguiria justificar perante a opinião pública todas as concessões feitas para manter uma tão vasta base de apoio parlamentar. Para isolar a esquerda e desestruturar a oposição, com o objetivo não confesso de governar imperialmente, o governo monta no Palácio do Planalto, a cada votação importante ou a cada mudança nos ministérios, um balcão de trocas do mais puro fisiologismo, dando continuidade ao que de pior existe na cultura política brasileira. Vale lembrar que esta tem sido a prática do governo de um partido – PSDB – constituído por políticos que saíram do antigo PMDB sob o pretexto de formar um partido político visceralmente contrário ao clientelismo. O Presidente não conseguiria justificar também que tantas concessões tenham resultado em ministério tão medíocre. Seria uma confissão de incompetência.

A controvérsia na grande imprensa prestou pouca atenção a uma das implicações da aula presidencial. A nocividade maior do Governo FHC não está na suposta incompatibilidade entre os procedimentos adotados de ética duvidosa e os objetivos governamentais. A tragédia para a nação e o povo brasileiros está precisamente nesses objetivos. Sob o pretexto da manutenção da estabilidade monetária e da integração da economia brasileira à globalização em curso, assiste-se a uma dilapidação de estruturas estratégicas essenciais para qualquer inserção soberana do País no mundo atual, com uma monumental transferência de recursos de origem pública para o grande empresariado nacional e estrangeiro. Presencia-se também uma crise social sem precedentes, com um exército de desempregados nas grandes cidades e uma multidão de famintos no nordeste. A própria integridade territorial brasileira começa a ser ameaçada com a negligência no combate a desastres ecológicos na Amazônia e na aceitação da ingerência do G-7, grupo dos sete países mais ricos do mundo, na definição das reservas indígenas nas fronteiras brasileiras no Norte do País.

Se incluirmos nesta controvérsia sobre a pertinência de procedimentos éticos os reais objetivos do governo FHC, seremos, então, levados à conclusão de que há perfeita compatibilidade entre ética e fins no atual governo. Ou seja, o clientelismo em larga escala, às escondidas da opinião pública, é um procedimento compatível com o objetivo de inserir o Brasil na nova ordem mundial ao custo da soberania nacional e das condições de vida e de trabalho de seu povo.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 3