Dia 19 de janeiro: Jornal da Record – a jornalista Salete Lemos pergunta ao ministro da Fazenda se o governador Itamar Franco é o responsável pela ruína do Plano Real. "Não", diz o ministro, atribuindo o desastre a uma "complexidade de fatores".

Você não leu errado. Foi isso mesmo: o ministro Pedro Malan, a autoridade que em tese melhor conhece as entranhas da engrenagem econômico-financeira do país, recusou-se a fazer o papel ridículo de atribuir ao governador de Minas Gerais a implosão súbita do plano de estabilização que há cinco anos sustentava-se na sobrevalorização irreal da moeda.

Mais realista que os paladinos do Real, a elite da mídia brasileira responsabilizou diretamente o governador mineiro pelo calamitoso dia 13 de janeiro, quando o governo federal tomou medidas para estancar a caudalosa saída de dólares do país. O mundo inteiro sabia que o Brasil era "a bola da vez" – depois do México, da Tailândia, da Indonésia, da Rússia … De julho a dezembro do ano passado, saíram do país 40 bilhões de dólares. Nas duas primeiras semanas de janeiro de 1999, investidores e especuladores, estrangeiros e brasileiros, sangraram outros US$ 5 bilhões das reservas nacionais. O real sofria uma hemorragia verde.

O bode expiatório foi moldado sob medida: o governador Itamar Franco. Ele afirmou que seu estado não poderia pagar a dívida de R$ 16,2 bilhões, renegociada em parcelas com a União. Na segunda semana de janeiro, os principais jornais. revistas e redes de TV pintavam o governador como o principal inimigo do país. Pelo que lia e ouvia, a moratória de Minas significava, para o Brasil. o desastre que a quebra da Bolsa de Nova York significou para os Estados Unidos em 1929: Itamar derrubara as grandes bolsas do mundo (São Paulo, Nova York, Londres, Tóquio … ) fizera os investidores retirarem dólares e lançara no descrédito o mais importante título da dívida externa brasileira, o C-Bond (detalhe: o suposto efeito Itamar teria emagrecido o CBond para 56% do seu valor de face, mas em agosto o título já rastejara em 49,6%). A imprensa sugeria nas entrelinhas: se Itamar não fizesse marola, o barco do Real chegaria ao porto da bem-aventurança.

O colunista Jânio de Freitas, da Folha de S. Paulo, entreviu (13/1) nas críticas da mídia uma fatura pós datada. "A antipatia, às vezes rancor, dos meios de comunicação por Itamar Franco – o que em alguns casos tem a ver com interesses não atendidos em seu governo – está atribuindo à moratória mineira efeitos muito maiores do que houve e há no sistema financeiro internacional, e mesmo na ciranda mundial que especula com títulos brasileiros". Infelizmente, como tem sido comum na imprensa, o colunista insinuou mas não especificou que empresas estavam no jogo livre do jornalismo pela carta marcada da vingança.

Os editoriais modelaram a cobertura. "Gesto insano", classificou a Folha. O Estadão, num artigo que fez lembrar a devoção da Última Hora por Getúlio Vargas, aproveitou para incensar o seu príncipe predileto: (7/l) "O senhor Itamar Franco tornou-se presidente da República por infeliz acaso. Despreparado para o cargo, teve atuação medíocre, salpicada por explosões de temperamento entremeadas de faniquitos que oscilaram entre o grotesco e o ridículo. Seu único lampejo de lucidez como presidente levou-o a convidar o então chanceler Fernando Henrique Cardoso para ocupar o Ministério da Fazenda. Graças ao insuspeitado talento administrativo demonstrado pelo ministro Fernando Henrique Cardoso ao consolidar o Plano Real, o governo Itamar Franco deixou de ser uma nota de rodapé na História do Brasil." Era também o que se lia nos grandes jornais do mundo, a exemplo do americano The Wall Street Journal: "Itamar põe em risco esforço do Brasil de manter-se na rota do investidor".

A revista Veja, líder em circulação e influência entre os semanários, pode ser analisada como o meio de comunicação que melhor resumiu a histeria da mídia com a moratória de Minas. "A volta do trapalhão", estampou a revista, com data de 13/1. A reportagem de quatro páginas usava expressões como "ato estabanado", "iniciativas trapalhonas", "místico das Alterosas" e chamava o governador pelo apelido de "Topete". O que primeiro chama a atenção na reportagem é a mudez do protagonista. Veja cita numerosos críticos da moratória – do presidente Fernando Henrique Cardoso, passando pelo presidente do Congresso, Antônio Carlos Magalhães, a governadores (Tasso Jeressati, do Ceará, e Espiridião Amin, de Santa Catarina) e os do Rio, Anthony Garotinho, e Rio Grande do Sul, Olívio Dutra – os dois últimos mencionados por se oporem não à decisão mas à forma individual como foi anunciada.

O indefectível ex-ministro Maílson da Nóbrega, que embarcou a inflação brasileira num foguete intergalático (80% ao mês no governo Sarney), batia o ponto na defesa do governo federal. Nenhum analista independente foi ouvido. A reportagem encerrava-se com uma citação do ex-embaixador dos Estados Unidos, Melvyn Levitsky, a quem a revista atribuiu a piada de que FHC foi "o único presidente que fez seu antecessor". Veja dispensou entrevistas com Itamar ou seu secretário da Fazenda. Nenhuma frase entre aspas, nenhuma explicação, nenhuma defesa. Se os leitores quisessem saber as razões da moratória de Minas, certas ou erradas, que ligassem para o Palácio da Liberdade.

A cobertura de Veja para o "episódio Itamar" e a crise econômica é um daqueles exercícios jornalísticos em que o texto subjuga os fatos. Na edição que esfriava nas bancas quando o ano começou, datada de 23/12/98, a revista fazia campanha pela manutenção das regras da economia. Com o tom soberbo e imperativo da sua congênere inglesa The Economist, o semanário brasileiro saiu com um título tão falastrão quanto inconsistente: "FHC vira o jogo – O presidente diz que é ele quem manda e não vai mudar a política econômica". O artigo considerava a desvalorização do câmbio a opção da "irresponsabilidade", "uma aventura … arriscadíssima" e, dentro desta lógica, assegurava que o presidente "acabou com a impressão de que o comando da economia estava adernando". Informava que FHC ligara para Gustavo Franco, presidente do Banco Central, e o convocara a esquecer as fofocas de que o arquiteto da valorização da moeda estava ameaçado de perder o cargo: "Não liga pra isso não. Vamos trabalhar". Duas semanas depois aconteceu tudo ao contrário: Gustavo Franco caiu, o real foi brutalmente desvalorizado, a equipe econômica deu sinais de desorientação. A revista não se deu por vencida. A principal reportagem da edição de 20/1, com o relato dos efeitos da desvalorização, insistia em culpar o governador de Minas: "Em atraso com as reformas e pego pela síndrome Itamar Franco, o governo perde credibilidade rapidamente e libera o câmbio". Apesar da pose, Veja deu impressões de sentir-se traída. Uma das reportagens sobre o desastre na economia levava o título "Para ler ao contrário – Na semana de caos, o que governo garantiu em público era para ser lido pelo avesso".
Veja foi usada aqui como um exemplo da distorção do jornalismo que a elite da imprensa tem praticado durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Nunca, nos períodos democráticos, imprensa fez tanta propaganda, protegeu e edulcorou um governo como atualmente. Omitiu-se na apuração de programas caros duvidosos, como o Sivam e o Proer. Valorizou os indicadores sociais apurados e editados pelo governo protegeu a figura pessoal do presidente em casos como o do grampo no BNDES e desvio de verbas da saúde. (l)

É uma traição ao jornalismo. A grande imprensa comercial, que vende informações a um público de interesses diversos, tem com primeiro dever a fiscalização do poder público. Fiscalização equilibrada, baseada em fatos narrado com exatidão. Não lhe cabe fazer oposição e muito menos apoiar governos.

O papel da imprensa, nas democracias liberais, é apurar e publicar notícias de interesse público. Se for tolhida pela censura sua única saída é rebelar-se combater pela liberdade. Em contrapartida, a elite da mídia tem mais militado do que noticiado. Antes apresentar os fatos, de ouvir as versões, de traduzir os acontecimento os grandes meios de comunicação modelam reportagens editorializadas. Tomam partido acintosamente Como um ventríloquo do governo ("oposição pra quê?", perguntou certa vez o presidente), esta imprensa desacostumou-se ao debate, à diferença, ao conflito – exceto para disseminar a fofoca, num trabalho de leva traz que desonra o jornalismo. Dá-se mais atenção aos políticos que política. Um mexerico na montagem de um programa importante ganha mais destaque que o programa e suas implicações para a sociedade. governo (aqui entendido o Executivo) resplandece nas notícias como o tabernáculo de onde saem decisões luminosas. Opor-se é fracassomania, onovo nome da sedição.

Nesta militância, mais própria a agremiações partidárias do que a meios de comunicação, a imprensa tem agido como um partido único. Há diferenças e vozes dissonantes – típicas da formação em bloco, pois não há organização mais dividida em facções do que o partido único. É assim que há espaço na mídia para interpretações divergentes. Mas são emitidas em baixo volume para não perturbar a vigília da propaganda do governo.

O jornalista Aloysio Biondi, cuja coluna de críticas à política econômica sai na Folha de S. Paulo às quintas-feiras, afirma que atribuir o estouro do Plano real ao governador Itamar é "desonestidade". O grande jornal especializado em assuntos de economia, Gazeta Mercantil, disse, num editorial em 15/1: "O grito de Minas veio depois". Depois … "que uma saraivada de boatos sobre a iminente desvalorização do real agitou as reuniões de Ano Novo nas boas praias deste país". Minas, como se sabe. é um estado mediterrâneo. Noutra amostra da ciranda de desinformação, o colunista Villas Boas Corrêa no Jornal do Brasil de 13/1, escreveu o que muita gente estava matutando: "Se a nota do governo de Minas, anunciando a decisão de suspender o pagamento ao governo federal da parcela da dívida estatal renegociada pelo seu antecessor, provocou a turbulência mundial no sistema financeiro, com a queda das bolsas de Tóquio, de Frankfurt. de Londres e de Nova Iorque, a derrubada dos títulos brasileiros no exterior, a desvalorização recordista do dólar em relação ao iene – maluco não é o Itamar".

É hora de parodiar o pesquisador Wolfgang Donsbach, autor de um artigo sobre a "media watchdog", aquela que atua como cão de guarda na vigilância dos interesses do público e faz da fiscalização equilibrada do governo a sua primeira tarefa. O artigo de Donsbach, sintetizado no número 9 (março-abril de 1996) do boletim do Instituto Gutenberg, levou o título "Cãezinhos de estimação, cães de guarda e vira-latas". Nesta escala, a grande imprensa brasileira tem abanado o rabo para o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso como um cãozinho de estimação.

* Sérgio Buarque de Gusmão é jornalista, diretor do Instituto Gutenberg – Centro de Estudos da Imprensa.

(1) As manipulações estão demonstradas no boletim impresso e na página do instituto na internet: www.igutenberg.org

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 24, 25, 26, 27