O lema deste acontecimento inédito "um outro mundo é possível" – expressa bem o espírito de uma luta difícil e demorada, que exige o confronto e a derrota da engrenagem de poder do capitalismo que está a empurrar a humanidade para o abismo. O evento evidenciou o caráter universal da rejeição pelos povos do novo capitalismo imperial.

O que aconteceu em Porto Alegre nestes dias não seria possível há dois ou três anos. Nesse breve espaço de tempo produziu-se um amadurecimento da consciência social que altera as perspectivas do desenvolvimento da história e começa a modificar o quadro de forças. Foi a própria obra devastadora e desumana do neoliberalismo que atuou em escala universal sobre as vítimas do sistema, criando as condições subjetivas, antes inexistentes, para a confrontação em curso. Porto Alegre deu ao Fórum do capital, reunido em Davos, uma resposta que foi muito além do protesto, comovente mas inorgânico, de Seattle. Da fase do repúdio, forças e organizações que representam o sentir de milhares de milhões de pessoas passaram ao patamar da reflexão e do debate coletivos sobre a alternativa àquilo que não aceitam.

Na tarde escaldante de 25 de janeiro, o povo da capital do Rio Grande do Sul abriu o grande espetáculo como sujeito da história. Ao comparecer maciçamente, unindo-se aos participantes estrangeiros do Fórum, imprimiu ao grande desfile a atmosfera de um sereno desafio internacionalista. O discurso de Olívio Dutra na abertura do Fórum foi importante na medida em que pelo tom e conteúdo contrariou a tendência reformista que aflorava nas posições de muitas das ONGs. Seria uma atitude sectária subestimar o mérito do trabalho desenvolvido por dezenas dessas organizações na preparação do evento de Porto Alegre. Mas é transparente e até natural a inexistência de consenso entre elas quando se coloca a questão-chave da alternativa. O próprio protagonismo assumido pela equipe de Le Monde Diplomatique na mobilização dos apoios e na adesão de personalidades é esclarecedor das clivagens ideológicas que as conferências e debates do Fórum fizeram emergir. O respeito que merece o combate travado por Ignacio Ramonet e Bernard Cassen – as duas estrelas do jornal presentes em Porto Alegre – não me impede de reconhecer o óbvio. Combatendo com firmeza e talento o imperialismo e denunciando a globalização neoliberal como um flagelo, nem um nem outro colocam em causa a sobrevivência do capitalismo. O que pretendem é reformá-Io, humanizá-Io. De alguma maneira assumem noutro contexto histórico perante o sistema uma postura crítica que lembra a de John Maynard Keynes após a I Guerra Mundial. Essa tendência não se impôs no Fórum. O capitalismo é, pela sua própria lógica, desumano.

Mas – cabe então perguntar – por ventura a relação de forças existente hoje é compatível com uma alternativa socialista ao capitalismo a curto prazo? Não. Mas se os esforços desenvolvidos por forças democráticas e progressistas heterogêneas na luta contra o neoliberalismo globalizante fossem orientados para uma convivência pacífica com o capitalismo numa transição de longa duração, o sistema acabaria por neutralizar e até absorver as forças que o contestam.

O Fórum de Porto Alegre veio iluminar uma nova dinâmica de lutas e desafios, ainda pouco clara, contra o sistema de poder imperial hegemonizado pelos EUA – sistema no qual a globalização neoliberal desempenha um papel fulcral. Nesse confronto, que tende a radicalizar-se, a descoordenação e o espontaneísmo transparecem no discurso e nas táticas de muitas ONGs cujos objetivos são com freqüência divergentes. A valorização excessiva do caso Bové, por exemplo, um episódio irrelevante no evento, traduziu bem a imaturidade política de muitos participantes, pois permitiu à direita usar a mídia para desviar a atenção das grandes questões em debate.

Nas salas dos quatro Eixos da PUC apresentaram comunicações ou intervieram nos debates especialistas de prestígio mundial. O discurso incidiu sobre a totalidade do conhecimento acumulado pelo homem e o mau uso dele feito no contexto da revolução tecno-cientifica instrumentalizada pelo capitalismo neoliberal. Personalidades como Ignacio Ramonet, Eduardo Galeano, Danielle Mitterrand, Cuauhtemoc Cardenas, Ricardo Petrella, Frei Betto, Alfredo Guevara, Tariq Ali, Ahmed Ben Bella, atraíram milhares de ouvintes. Mas os representantes de organizações diretamente envolvidas no combate diário contra o imperialismo e o neoliberalismo – caso do coronel equatoriano Lucio Gutierrez, que liderou a marcha dos índios sobre Quito, dos porta vozes das FARC colombianas, de líderes sindicais como Victor Gennaro, presidente da Central de Trabalhadores da Argentina, de João Pedro Stédile, o coordenador do MST – estiveram permanentemente no centro das atenções tanto pelas temáticas abordadas como pela solidariedade que as suas organizações mobilizam em nível mundial.
Ricardo Alarcon, presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba, foi saudado com a maior ovação. Mais do que o tema – uma lúcida exposição sobre a estratégia, os crimes e o desafio à humanidade do Império ianque – o que emocionou os presentes foi a lição da resistência heróica do povo cubano, ou seja a demonstração de que é possível dizer Não a Washington e recusar o neoliberalismo, optando pelo socialismo.

Num Fórum como este, marcado pela coexistência de uma enorme diversidade de opiniões de delegados com formações e mundividencias diferentes, unidos pela rejeição das políticas neoliberais e pela disponibilidade para as combater, seria inevitável que as intervenções refletissem perspectivas também muito diferenciadas no tocante a formulações estratégicas, a aspectos táticos de lutas em curso, a iniciativas a tomar e, obviamente, ao debate sobre as alternativas. Essa diversidade manifestou-se no discurso político. Uma das mais felizes iniciativas do Fórum foi a da montagem de centenas de mesas redondas nele integradas, mas organizadas autonomamente por diferente instituições ou forças políticas.

Participei numa delas, organizada pelo Partido Comunista do Brasil. Durante três dias o auditório da Fundação da Faculdade de Ciências Medicas (400 lugares) encheu-se a transbordar de um público que interveio intensamente nos debates sobre temas como a economia parasitária, a exclusão social e o autoritarismo; a resistência e a luta dos povos contra o neoliberalismo; e a construção de uma alternativa à barbárie. Entre os conferencistas estiveram Samir Amin, François Houtard, Marta Harnecker, a filosófa argentino-cubana Isabel Rauber, a mexicana Ana Ceceña (estudiosa do movimento zapatista), o sindicalista Victor Gennaro, o chileno Jose Cardematori, ex-ministro da Economia de Allende, Julio Gambina, coordenador da Attac Argentina, o cientista social Luis Fernandes, Cristovam Buarque, Jaime Caicedo, secretário geral do PC Colombiano, etc. Uma das mesas foi presidida por Tarso Genro. A maioria das exposições foi fascinante e os debates impressionaram pelo alto nível. Samir Amin, que se assumiu "de certa maneira como comunista" foi categórico: para a barbárie capitalista atual não há alternativa fora do socialismo.

O debate televisivo entre representantes dos dois Fóruns contou em Porto Alegre com uma audiência que, pela paixão, lembrava a dos grandes jogos de futebol. Na opinião da torcida internacional reunida na capital gaúcha o resultado foi uma goleada do team de Porto Alegre. É significativo, entretanto, o mau humor de George Soros quando, no final, declarou aos jornalistas que não voltará a participar de iniciativas similares. O multimilionário foi a única estrela do debate via satélite. Merece reflexão a atitude de Soros ao assumir-se perante milhões de telespectadores como um "especulador". Não é nele inédito o cinismo que exibiu. Em seu livro Soros fala de Soros não somente revela como levou ao tapete a libra esterlina, como se orgulha da sua proeza de aventureiro. Escreveu então: "nunca me preocupei com as conseqüências sociais dos meus atos. Em determinadas circunstâncias, tinha consciência de que as conseqüências poderiam ser nefastas, mas isso não me interessava, porque eu estava respeitando as regras". Nas regras a que alude contemplamos o retrato da engrenagem do capitalismo imperial. A confissão define o homem que o Fórum de Davos designou para o representar no diálogo com o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Nas palavras do mega-especulador está condensado o espírito do projeto de sociedade do neoliberalismo globalizado, o desprezo pela humanidade dos novos teólogos do mercado que erigem o dinheiro em valor absoluto.

O brado de Porto Alegre começa a tirar o sono aos responsáveis pelo aprofundamento da desigualdade entre os homens e por um modelo de sociedade que configura ameaça à própria continuidade da vida na Terra. A idéia de que "um outro mundo é possível" tende a ser assumida por parcelas cada vez mais importantes da humanidade. Avançamos devagar mas com esperança para um futuro melhor.

Miguel Urbano Rodrigues.