O capitalismo industrial brasileiro desenvolveu-se tardia e muito lentamente, no contexto de um país dominado. Seu início se deu após a abolição da escravatura, no final do século XIX, mais de 100 anos depois da revolução industrial inglesa – marco de passagem no sistema capitalista mundial para a fase superior da grande indústria mecanizada. Era a ocasião em que a indústria já se desenvolvia impetuosamente nos Estados Unidos e também na Alemanha, na França e em alguns outros países, quebrando o monopólio industrial inglês que durou quase um século (1). Até meados do século XX, a indústria têxtil foi a mais importante do país. Chegou a adquirir certo porte funcionando com máquinas importadas e energia a vapor basicamente. Em 1921 empregava 109 mil operários, 68% dos quais estavam no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (2).

Há apenas pouco mais de 50 anos, com o caminho aberto pela revolução burguesa de 1930, o desenvolvimento industrial brasileiro ganhou impulso e o país começou a conhecer de fato a fase da grande indústria mecanizada, destacadamente de meios de produção; cujos marcos são a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional, da Petrobras e das usinas geradoras de hidroeletricidade(3). Um processo cujos motores foram o capital privado e estatal brasileiros e o capital estrangeiro. Abriu-se assim um novo período cujas transformações econômicas estruturais levaram à transição de um país agrário para um país industrial. Um caminho cheio de deformações e de dificuldades, particularmente nas últimas duas décadas, caracterizadas por uma estagnação dolorosa, constantes e profundas crises. Basta ver que, de 1975 a 2000 o crescimento médio anual do Produto Interno Bruto foi de apenas 1,56%. São marcas do capitalismo brasileiro sempre condicionado por uma dependência crescente aos países centrais; mais recentemente agravada pela aplicação do projeto neoliberal.

Mesmo assim o país conta hoje com um importante e diversificado parque industrial desde a grande indústria pesada à de transformação. Produz meios de produção em larga escala, quase toda a energia que consome, possui considerável estrutura portuária e de transporte rodoviário. Os aviões são hoje o principal produto da pauta de exportações brasileiras. O Brasil possui as maiores reservas de minério de ferro do mundo e é o 8º maior produtor de aço em escala internacional, atualmente cerca de 28 milhões de toneladas. Esse setor, fundamental para o desenvolvimento industrial como um todo, foi ao longo de décadas, quase que totalmente alavancado pelo Estado brasileiro que ao todo fez investimentos na ordem de US$ 40 bilhões para, no início dos anos 90, privatizá-lo por cerca de US$ 5 bilhões, dos quais US$ 4 bilhões em moedas podres (4).

O campo brasileiro foi palco de profundas transformações estruturais. A produção agropecuária diversificou-se, cresceu e modernizou-se no sentido capitalista. Hoje prevalecem a grande agricultura capitalista mecanizada e os complexos agro-industriais. A produção de grãos passou de 50 milhões de toneladas em 1980 para 100 milhões em 2001/2002. Há um razoável grau de utilização de maquinaria (tratores, colhetadeiras e os implementos destas máquinas) e insumos (fertilizantes, agrotóxicos, sementes, rações, vacinas). Entre 1980 e 2000 foram comprados 534 mil tratores no Brasil. Em 2001 foram vendidos 35,5 mil máquinas agrícolas entre tratores, cultivadoras, colheitadoras e retroescavadoras.

De outra parte houve um desenvolvimento relativamente grande do que tradicionalmente se chama setor de serviços, sob a égide do capital. Dessa forma pode-se dizer que esse setor está hoje cada vez mais industrializado, como se disse que a expansão do capitalismo levou à transformação da agricultura em uma indústria (5).

O IBGE divulgou em outubro de 2001 o resultado da Pesquisa Anual de Serviços (PAS) realizada entre 1998 e 1999, onde faz uma atualização dos dados do “setor terciário”. O resultado mostra que as empresas prestadoras de serviços de uma maneira geral compõem 58,3% do PIB brasileiro, acima da indústria com 24,8%, da construção civil com 9,1% e da agropecuária com 7,8%. Que conclusão se pode tirar desses números assim apresentados pelo IBGE? À primeira vista, de que os serviços são o que há de mais importante na economia brasileira… E que a indústria, “setor secundário”, continua sendo superada…

O IBGE divide os serviços em quatro tipos aos quais atribui pesos percentuais de acordo com o faturamento bruto de suas respectivas empresas. Não inclui nos serviços, como de costume, a indústria da construção civil, mas não chega a classificá-la como indústria. Esta, para o IBGE, tem o sentido estritamente fabril. Por outro lado, ao separar os serviços mercantis dos não mercantis, e destes o comércio e as finanças, facilita, de certa forma, a análise do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo nos serviços e, portanto, a localização do proletariado.

Assim é que são colocados os números:

1) serviços mercantis não financeiros, 28,4% (maior que os 24,8% da indústria). Esse setor em 1999 produziu riquezas na ordem de R$ 178,5 bilhões. Aí estão os transportes, a geração de energia, empresas de alojamento (hotéis e pousadas), empresas de alimentação (bares, lanchonetes e restaurantes), empresas de telecomunicações e de informática, os correios, empresas de vigilância e segurança etc, num universo total de 650 mil empresas;

2) serviços não mercantis, 16,5%. Aí se situam a administração pública, as ONG’s e entidades que não têm fins lucrativos; e

3) comércio, 7,3%;

4) Serviços financeiros (bancos e empresas de crédito), 6,1%.

Já a Gazeta Mercantil no seu Balanço Anual 2001 adota uma sistemática de classificação um pouco diferente. Inclui nos serviços, entre outros, a produção de energia elétrica, os transportes e a construção civil, pois, tal como o IBGE, considera como indústria somente o setor fabril. Por esse método estatístico levaria a concluir-se que todos os trabalhadores desses setores estão fora do proletariado industrial.

É claro que não são todos os ramos dos serviços dos quais se poderia dizer que “geram riquezas”, pelo erro primário de confundir geração de riquezas com faturamento bruto das empresas, ou com receita líquida, critérios usuais de classificação das empresas. Mesmo nas empresas classificadas de serviços mercantis não financeiros há setores não produtivos; mas o fato é que há também ramos que geram riquezas no sentido de que seus trabalhadores têm sua força de trabalho comprada com capital, e que produzem excedente que se transforma em capital.

Se forem somados os setores produtivos: o que se inclui tradicionalmente na indústria (extrativa e de transformação), mais a indústria da construção civil, mais o que se classifica de serviços mercantis não financeiros e mais a agropecuária, teremos, pelos números do IBGE, 70,1% do PIB. Já os setores improdutivos, ou seja, bancos, comércio e serviços não mercantis juntos representam 29,9% do PIB.

Essa é a base para uma análise mais correta. A classificação tradicional que divide a atividade econômica em setor primário, secundário e terciário espertamente esconde a realidade do capital, a sua relação com grande parte dos trabalhadores, particularmente no setor terciário (serviços). Essa é uma forma de ver vulgar e superficial que apresenta os serviços como a grande novidade, o novo capitalismo, para induzir à conclusão de que a indústria e a agricultura vão perdendo peso e os “serviços” crescem… Trabalhadores em serviços não são operários… A classe operária é algo decadente, declinante…

Traços sociais do Brasil

Em um país com tal nível de desenvolvimento capitalista e ao mesmo tempo dependente, as forças fundamentais da sociedade são a burguesia e o proletariado. A primeira é composta pela burguesia internacional e sua sócia, a grande burguesia brasileira. Nas encruzilhadas com que se defronta a nação, os rumos que tomará o país se colocam em torno dos interesses dessas duas classes.

Soberania ou dependência, democracia ou falta de liberdade, direitos ou exploração feroz dos trabalhadores, e, enfim, capitalismo ou socialismo constituem os pólos do choque permanente entre essas forças. O proletariado brasileiro é o maior interessado, o núcleo central das forças que buscam na soberania a solução do problema nacional, bem como a vigência de uma vida política democrática, pois, só assim, pode avançar na direção de seus interesses estratégicos. Equivocadamente, às vezes subtende-se que ao proletariado só interessam os problemas atinentes às suas condições de vida e de trabalho.

Fruto do desenvolvimento do capitalismo, 80% dos 170 milhões de habitantes do país vivem hoje em grandes regiões metropolitanas, cidades médias importantes e outras regiões urbanas menores. A estrutura de classes dessa população é bem diferente de 50 anos atrás. Do total dos brasileiros, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD – de 1999 do IBGE, diz que 130 milhões têm mais de 10 anos de idade, dos quais, aproximadamente 80 milhões compõem a denominada População Economicamente Ativa – PEA. Desse universo, cerca de 72 milhões trabalhavam de uma ou outra forma.

A grande burguesia, classe dominante no Brasil, é constituída de uma fração internacional e outra brasileira. São os donos do capital financeiro, os grandes empresários da indústria, comércio e rurais, além dos grandes empresários dos serviços: ensino, saúde, telecomunicações, comunicações, transportes etc. Aí está incluído um número reduzido de pessoas. A Receita Federal informa que nas declarações de Imposto de Renda de 2000 somente 106 mil brasileiros (89 mil homens e 17 mil mulheres) admitiram ter patrimônio superior a R$ 1 milhão, ou aproximadamente US$ 400 mil. Com suas famílias, devem chegar a umas 400 mil pessoas, algo em torno dos 0,25% da população brasileira. O país, diga-se de passagem, tem uma das mais altas concentrações de renda do mundo.

A grande burguesia internacional se faz presente no país através de investimentos crescentes nos mais variados setores. Desde indústria ao comércio varejista e comércio exterior, bancos, agricultura, empresas de serviços (transportes etc.). Pleiteia sempre as maiores garantias e liberdades para seu capital, que é apresentado como o grande “motor do desenvolvimento”. Em boa medida essa burguesia é representada por executivos das grandes empresas, regiamente remunerados. A grande burguesia brasileira abandonou qualquer veleidade de independência ou de projeto nacional. Economicamente tende à composição com o capital estrangeiro; politicamente é subserviente ao imperialismo.

O proletariado brasileiro cresceu e se diversificou muito. Como produto mais característico do desenvolvimento da grande indústria capitalista surge um novo proletariado fabril nos últimos 50 anos aproximadamente, que é o núcleo central do movimento operário, um segmento relativamente sólido e estável, o mais esclarecido e combativo do proletariado. Realizou grandes jornadas grevistas na passagem da década de 70 para a de 80. É uma importante base de apoio político dos partidos de esquerda. Os trabalhadores na indústria de transformação, segundo a PNAD/99, somam 8,3 milhões. Na indústria da construção estão empregadas outras 4,7 milhões de pessoas (6).

Em parte importante do assim chamado setor de serviços – produção de energia elétrica, transportes, entre vários outros ramos – também se desenvolveu um proletariado numeroso e combativo nos últimos 30 anos. Na indústria dos transportes há cerca de 3 milhões de trabalhadores, incluídos os condutores e cobradores de empresas de ônibus urbanos e interurbanos, de frotas de caminhões (urbanos e interurbanos) e de táxis, mototrabalhadores, ferroviários, metroviários, aeronautas, portuários, marítimos, estivadores de uma maneira geral, trabalhadores dos Correios. Como um todo essa categoria cresceu muito e joga papel estratégico. Tem mostrado um enorme potencial de luta nos últimos anos. O IBGE diz que todo o setor dos chamados serviços mercantis não financeiros empregava 5,5 milhões de trabalhadores no país em 1999.

Convém registrar que há em todo o país um crescimento recente e acentuado dos serviços de motofrete. Estima-se que há no Brasil 800 mil motos em serviços de entrega e mais umas 200 mil como mototáxi. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos tem a maior frota do país, cerca de 10 mil unidades. Por causa dessa demanda é que a produção nacional de motocicletas passou de 50 mil unidades em 1993 para 550 mil em 2000. Na capital paulistana há atualmente cerca de 150 mil mototrabalhadores, dos quais, 20 mil são mulheres, que fazem 270 milhões de entregas por ano. As condições de trabalho desses novos proletários são extremamente duras: salário médio em torno dos R$ 850,00; jornada de trabalho diária que se inicia às 6 horas da manhã e se estende até a noite; quando o trabalhador tenha rodado entre 220 a 250 km em um trânsito brutal do qual ele é a principal vítima. Houve 14.220 acidentes envolvendo motos no Estado de São Paulo em 2000 (7).

O desenvolvimento do capitalismo no campo levou a um duplo fenômeno: ao mesmo tempo em que, em relação ao conjunto da população do país diminuiu a população rural, cresceu entre ela o proletariado. É necessário tomar cuidados para separar com algum rigor os assalariados agrícolas dentre as 17 milhões de pessoas (das quais quase 50% estão no Nordeste) que se declararam ocupadas em atividades agrícolas ao IBGE, o que foge ao alcance deste artigo. De qualquer forma, os proletários rurais somam-se ao contingente proletário urbano e constituem reforço importante às suas lutas.

O semiproletariado no Brasil é numeroso e basicamente urbano por causa do nível de desenvolvimento capitalista atingido. A rigor não pertencem à categoria dos trabalhadores produtivos nem à dos improdutivos. Aí se encontram os ambulantes, os chamados trabalhadores informais e precários, bem como os trabalhadores rurais que se empregam nas épocas das colheitas e, ainda, os perueiros e taxistas, proprietários de seus veículos, artesãos e “trabalhadores por conta própria” de uma maneira geral. Calcula-se que cerca da metade da PEA, cerca de 40 milhões de pessoas, pertença a essas categorias.

A enorme massa de trabalhadores desempregados – cerca de 6 milhões de trabalhadores, considerando-se a taxa de 7% da PEA para o desemprego aberto – e excluídos da PEA (por não terem procurado emprego em período imediatamente anterior às pesquisas regulares do nível de emprego) faz parte, em boa medida, da massa proletária. Entre os desempregados a faixa mais numerosa é de jovens.

A população improdutiva tem uma composição variada. Desde os trabalhadores domésticos, empregados administrativos, na esfera pública e na privada, de uma maneira geral, comerciários, bancários, integrantes das polícias e das forças armadas – todos esses assalariados não produtivos –, passando por aposentados e pensionistas e também juízes, boa parte dos advogados e outros “profissionais liberais”, o clero, até os rentistas e os burgueses de uma maneira geral (indústria, comércio, agricultura e bancos). No comércio e nas finanças não há valorização própria do capital. O comerciante reparte com o industrial a mais-valia extraída por ele, o banqueiro valoriza seu capital pelos juros de empréstimos a particulares (especialmente empresários) ou ao governo.

Seria um erro primário não fazer as distinções necessárias dentro da população improdutiva do ponto de vista do capital. Os setores assalariados explorados, majoritários, são aliados naturais do proletariado. É o caso dos bancários, uma combativa categoria que vem diminuindo de número com a modernização do setor, mas que mesmo assim soma hoje cerca de 350 mil trabalhadores; dos comerciários, que se situam em torno de 5 milhões de pessoas; dos trabalhadores domésticos que passam dos 5,3 milhões, dos quais 4 milhões não têm carteira assinada. É o caso também dos aposentados e pensionistas que chegam aos 13 milhões (que não estão incluídos na PEA), e da ampla maioria dos empregados nos diversos níveis da administração pública cujo total chega a 3,3 milhões segundo o IBGE.

A geografia do proletariado brasileiro mantém-se a mesma com pequenas alterações. Há uma forte concentração nas regiões Sudeste e Sul, particularmente na primeira e, nesta, no Estado de São Paulo. Nos últimos anos percebe-se um movimento de mudança da localização de importantes plantas industriais em direção ao interior de São Paulo, sul de Minas Gerais e também para certas áreas do Nordeste e Norte (caso da Zona Franca de Manaus). Isso se dá num quadro de expansão do capital que procura melhores condições de lucro, quer através de incentivos oficiais, quer através da diminuição dos salários como no caso das empresas de São Paulo que se transferiram do ABC e da capital para o interior, nas quais os salários foram reduzidos em 20%, segundo o professor Rodolfo Prates da USP.

A indicação geral, mesmo considerando-se o tratamento ainda precário dos dados e da pesquisa é de que o conjunto do contingente proletário forma junto com o semiproletariado e com os trabalhadores assalariados explorados – sempre considerando os trabalhadores e suas famílias – a grande maioria da população do país. Em certa medida tem destaque dentro do proletariado mundial. É uma força em ascensão, numérica e politicamente, e não uma força declinante. Isso, sem dúvida, é um fator objetivo de aproximação do socialismo.

Dilermando Toni é jornalista e membro da direção nacional do PCdoB.

Notas
(1) ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Prefácio à edição alemã de 1892, Afrontamento, 1975.
(2) STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil – 1850/1950. p. 111. Campus, 1979.
(3) LIMA, Haroldo. “A crise energética e a pusilanimidade do governo”. revista Princípios nº 62.
(4) Gazeta Mercantil, 13/8/2001.
(5) Marx refere-se a isso dizendo: “O capital é a força econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Constitui necessariamente o ponto de partida e o ponto de chegada. (…) a agricultura torna-se cada vez mais um simples ramo da indústria e acha-se totalmente dominada pelo capital”, Introdução à crítica da economia política, p. 236, Estampa, 1971. Lênin, ao fazer a análise de classes da sociedade russa, vai na mesma direção: “O processo de especialização que separa diferentes tipos de transformação dos produtos, conduzindo à criação de um número sempre crescente de ramos industriais, manifesta-se também na agricultura. (…) transforma a própria agricultura em uma indústria.” Lênin, V. I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Cap. I, p. 14, Abril Cultural: 1982.
(6) Por precaução convém registrar o desencontro de dados relativos aos trabalhadores industriais. No caso da cadeia industrial têxtil, por exemplo, o IBGE informa que em 1998 havia 604.481 pessoas ocupadas no setor. Já a Associação Brasileira de Indústria Têxtil e da Confecção – Abit, informa que em 2000 havia 22 mil empresas no setor, com faturamento de US$ 20 bilhões, exportações de US$ 1,2 bilhão e 1,4 milhão de trabalhadores.
(7) Gazeta Mercantil, 10/9/2001.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 62, 63, 64, 65