No limiar do século XXI estão a acontecer coisas nunca antes vistas, sequer imaginadas. O país mais rico e poderoso da Terra, invocando a necessidade de combater e eliminar o terrorismo faz da prática do terrorismo de Estado o instrumento de uma estratégia supostamente concebida para salvar a humanidade. Pela primeira vez na história, um império, os EUA, iniciou uma guerra apontando como seu inimigo principal não um povo ou um governo, mas um homem, cujo nome, semanas antes, era quase desconhecido. O território escolhido para cenário dessa guerra apresenta a peculiaridade contraditória de nele terem florescido, ou deixado, marcas indeléveis de grandes civilizações, mas de ser hoje habitado por povos que praticam uma agricultura de subsistência e se mostram infensos à idéia do Estado moderno, preferindo viver sob formas de organização tribais. Daí outro paradoxo: esse país, onde a vida transcorria totalmente à margem da economia mundial, uma terra sem indústrias, situada fora dos circuitos comerciais – ignorada pelas transnacionais e pelo capital financeiro –, tornou-se, de repente, cenário da primeira guerra do novo milênio. As mais mortíferas e sofisticadas armas do arsenal norte-americano foram durante meses utilizadas contra cidades e aldeias que continuavam a viver no ritmo do século XV. O alvo era o terrorismo – personificado por Bin Laden, a Al Qaeda e os Talibãs, seus aliados –, a vítima foi coletiva, o povo do Afeganistão, o mais pobre e atrasado da Ásia.

É impossível quantificar o genocídio afegão. Mas, as bombas e os mísseis norte-americanos mataram ali muito mais gente – um número de pessoas muito maior do que o de desaparecidos com os atentados terroristas do 11 de setembro. O castigo imposto pela destruição das torres de Manhattam à população civil de um remoto país asiático – totalmente alheia ao acontecimento – é por si só um demonstrativo da irracionalidade de uma estratégia política que configura hoje perigosa ameaça ao conjunto da humanidade.

Pelos seus múltiplos e ambiciosos objetivos, pela confusão que gera em setores da esquerda, e pelas conseqüências de campanhas de desinformação que apresentam os crimes dos EUA como ações de defesa da civilização – essa estratégia exige daqueles que a denunciam e condenam uma resposta, ao nível da reflexão e da prática, que permita combatê-la com eficácia. O esclarecimento e a mobilização das consciências é uma etapa indispensável na luta, de âmbito mundial, que os povos da Terra são chamados a travar contra o mais perigoso e abrangente projeto de dominação ecumênica concebido até hoje por qualquer outro império.

Fatos indesmentíveis provam que uma guerra sem quartel contra o terrorismo internacional, a Cruzada de Bush, foi desencadeada por um governo que, como afirma Chossudovsky, “protege o terrorismo internacional como parte da sua agenda de política exterior”.

Parece absurdo, mas é bem real. Os motivos invocados pelos EUA para iniciar uma guerra de agressão contra o Afeganistão foram totalmente fabricados. A Cruzada afegã de Bush foi planejada e executada com uma frieza que fez dela um “crime científico”. Mais do que os bombardeios de saturação das cidades, a chacina dos prisioneiros em Mazar-i-Charif e o quadro em que se desenvolveu o assalto e o saque de Kandahar configura crimes contra a humanidade que somente encontram precedente em matanças promovidas pelo III Reich alemão.

O que aconteceu naquelas cidades justifica uma reflexão profunda, até porque assume contornos de prelúdio de uma estratégia neofascista com efeitos planetários.
É esse o tema central desta comunicação ao nosso Fórum.

Esses massacres mereceram uma atenção discreta da mídia. A maioria dos jornalistas ocidentais que cobriram a guerra contra o povo do Afeganistão comportou-se como cúmplices do alto comando norte-americano, evitando o relato de fatos e situações que iluminam bem uma faceta nova da política de dominação perpétua sobre a humanidade e do sistema de poder imperial dos EUA.

Recordemos primeiro, brevemente, o que aconteceu em Mazar. O comando militar norte-americano, cumprindo instruções do Pentágono, dirigiu ali uma gigantesca matança de prisioneiros. O episódio principiou com o levante de 600 prisioneiros na fortaleza de Qala-i-Jangi, provocado pela tortura e pelo assassínio de companheiros por agentes da CIA.

Chamados a intervir, aparelhos da Força Aérea dos EUA vindos do Uzbequistão, bombardearam o recinto da fortaleza secular, matando centenas de prisioneiros.

Tropas da Aliança do Norte intervieram posteriormente. Sob a direção de um coronel norte-americano (o assessor era britânico) esses mercenários afegãos completaram o massacre. Ao deporem as armas, os prisioneiros – muitos eram paquistaneses e alguns árabes, tártaros, azeris e bachkires – tinham recebido garantias de vida. Foram desrespeitadas. Não houve sobreviventes. No final, a cidadela oferecia o panorama de um açougue humano. Escaparam da matança 20 prisioneiros que, ao chegar, a Cruz Vermelha encontrou num contentor onde se haviam escondido.

Barbárie e civilização

Em Kandahar, num cenário étnico e cultural muito diferente, a fria decisão de matar emerge também como objetivo básico. A cidade foi exaustivamente bombardeada. Depois intervieram os mercenários locais (pachtunes) da Moderna Cartago, ou seja, dos EUA. A rendição, negociada pelos representantes do governo fantoche (que ainda não se instalara) criado por Washington, incluía garantias de vida para os defensores da praça. Mas o comando norte-americano informou secamente aos seus aliados que considerava inexistente o acordo. Houve uma orgia de crimes. O saque da cidade foi assinalado por cenas de apocalipse. No dia seguinte mais de um milhar de cadáveres em decomposição acumulavam-se nas ruas.

Os talibãs e os homens da Al Qaeda integram obviamente aquela categoria de fanáticos que inspiram horror. Mas o Estado norte-americano, na preparação quase científica da chacina dessa gente, desceu ao seu nível de amoralismo. A CIA continua a submeter à tortura os prisioneiros da Al Qaeda que lhe foram entregues pelos aliados afegãos que os capturaram em Tora Bora e noutros lugares.

Ao contemplar imagens da fortaleza de Mazar, onde os prisioneiros foram abatidos com requintes de barbárie, sob a tutela vigilante do exército dos EUA, recordei o que senti na Polônia ao visitar Aushwitz, o mais monstruoso dos campos de extermínio do III Reich nazista. Quando a selvageria humana ultrapassa certos limites a hierarquia dos crimes perde significado. Em Mazar e Kandahar, o Estado norte-americano, ali representado pelas suas forças armadas, atravessou essa linha divisória.

O governo de Washington já informou que rejeita liminarmente a hipótese de qualquer inquérito sobre os massacres de Mazar e Kandahar, sob supervisão da ONU.

O genocídio afegão teve como complemento o cultoricídio. O território do Afeganistão é um dos mais fabulosos museus arqueológicos naturais da humanidade. Talvez não haja outro país onde – ainda soterradas – existam tantas e tão belas ruínas de antigas civilizações. Citarei alguns exemplos pouco conhecidos.

Foi das cidades greco-bactrianas do nordeste afegão que saíram os mestres dos escultores que no início da Nossa Era, no território do Império Kuchano, criaram a chamada Arte de Gandhara que fundiu o rigor formal e a perfeição técnica dos antigos helenos com a espiritualidade budista. Mas, para os estrategos do Pentágono esses tesouros artísticos nada significam. Reagiram como os talibãs. Segundo vimos na televisão, Bagram, onde se localiza um campo arqueológico Kuchano mundialmente famoso, foi repetidamente bombardeada. Uma chuva de metralha caiu também sobre as ruínas das stupas budistas de Jalalabad, monumentos funerários únicos no planeta.

Outro exemplo de barbárie foi o bombardeamento de Ghazni. Recordarei que a islamização da Índia nos séculos XI e XII não foi empreendida pelos árabes, mas por duas dinastias de raiz afegã: a dos Ghaznividas (turcos) e a dos Ghoridas (iranianos). Ghazni foi durante dois séculos uma das mais civilizadas cidades do mundo. Aquele sultanato foi o berço de alguns dos mais notáveis escritores, cientistas e artistas do Islã. Entre eles Firdusi, poeta genial e um dos criadores do persa moderno; Al Biruni, humanista, historiador, filósofo, matemático de prestígio universal; Sanaí, o poeta místico cuja obra a crítica coloca ao nível da de Dante Alighieri; e Ibn Sina, o celebérrimo Avicena, o maior médico da Idade Média. Que terá acontecido ao campo arqueológico de Ghazni? Permanecerão ainda de pé os seus minaretes quase milenares?

Herat, no Noroeste, foi outra cidade insistentemente bombardeada. Por quê? A antiga capital de Sha Rukh, o filho de Tamerlão, era a cidade-museu do país. Segundo escreveu o príncipe Babur – o fundador do Império do Grão Mogol na Índia – não havia no final do século XV em todo o mundo Islâmico cidade tão bela e civilizada como era Herat, quando a visitou. Que terá acontecido à famosa cidadela, às suas grandes mesquitas, obras primas da arte do Renascimento Timúrida? (1)
Obviamente, George Bush nunca ouviu falar do Sultanato de Ghazni, da Civilização Kuchana – intermediária no comércio entre Roma e China – dos Timúridas de Herat. Não o censuro pela sua comprovada ignorância, mas ela não lhe confere o direito de fazer explodir mísseis sobre o que sobrou de grandes culturas.

Quando ele pronunciava com orgulho a palavra Kandahar para anunciar um novo bombardeio não fazia a menor idéia de que nessa cidade – a antiga Alexandria Aracósia, fundada por Alexandre da Macedônia –, os habitantes falavam ainda grego e aramaico dois séculos depois. Foi um edito do rei indiano Achoka, da dinastia Maurya, gravado numa estrela de pedra encontrada ali por acaso numa ruína, que nos trouxe há poucos anos essa revelação. O presidente dos EUA, a cujos olhos os crimes dos Cruzados aparecem como atos de bravura, não ouviu sequer mencionar a existência desse monarca que reinou sobre Kandahar e outras terras afegãs. Admito que nunca virá a saber que Achoka se tornou credor do respeito universal ao proibir por edito real a guerra na área do seu império por considerá-la um fenômeno bárbaro incompatível com a vocação e o destino dos homens.
O presidente Bush não tem consciência da sua condição de moderno bárbaro que faz do terrorismo de Estado um pilar da estratégia imperial.

Uma estratégia agressiva e ambiciosa

Os atentados terroristas do 11 de setembro demonstraram a vulnerabilidade do império, mas, paradoxalmente, criaram condições muito favoráveis ao desenvolvimento da estratégia de dominação planetária e perpétua adotada pelo sistema de poder norte-americano a partir da Administração Reagan.

A decisão de levar a guerra punitiva a um país longínquo, e a necessidade de inventar “um inimigo número 1”, resultou em parte de uma exigência política: impedir a todo custo que o povo dos EUA compreendesse que o essencial da máquina terrorista que montou os atentados está enraizado no próprio território norte-americano. O conhecimento da verdade poderia gerar uma situação de paranóia coletiva.

Mas a escolha do mau da fita obedeceu a um objetivo estratégico inconfessável: a penetração política e econômica maciça dos EUA na Ásia Central.
Entretanto, o massacre midiático que satanizou Bin Laden e a Al Qaeda é pouco inteligente. No Afeganistão os computadores eram peças raras. Seria impossível comandar a partir daquele país a logística ultra-sofisticada da operação do 11 de setembro. O sistema de espionagem do sistema Echelon, aliás, estava vigilante.

Em Washington omite-se que Bin Laden e a sua organização atingiram um auge de popularidade na Arábia Saudita após a explosão das Torres de Manhattam. Não apenas entre o povo. São “muito numerosos os membros da alta classe saudita que simpatizam com Bin Laden e alguns enviam-lhe fundo”. Segundo o escritor Tariq Ali, “a Arábia Saudita, o mais querido aliado da América, é a fonte ideológica e de recursos do atual inimigo mortal dos EUA que aparece como um anjo” a muitos islamitas. (2)

Aos EUA convinha inventar um responsável pelos crimes monstruosos do 11 de setembro. O fato de Bin Laden se encontrar então no Afeganistão facilitou o desenvolvimento de uma estratégia complexa cujos meandros estão ainda mal iluminados.

Para George Bush é, aliás, muito embaraçoso que o “inimigo número 1”, Bin Laden e o seu aliado, o Mullah Omar, chefe dos Talibã, tenham, aparentemente sobrevivido à guerra alegadamente desencadeada para os eliminar. Até o momento em que escrevo ignora-se o paradeiro de ambos.

Existe hoje uma documentação oficial importante sobre a política que visa garantir o domínio dos EUA sobre o petróleo e o gás natural da çsia Central ex-soviética. Brezezinski define a região como “o novo eixo geopolítico”. Em março de 2000, eminentes acadêmicos russos revelaram na Conferência Internacional de Solidariedade à Iugoslávia, realizada em Belgrado, pormenores do projeto de desmembramento do Estado russo. Essa estratégia prevê o afastamento da Rússia do Cáucaso e da Região caspiana na seqüência de conflitos que os EUA estimulariam (Chechênia, Daguestão, Calmuquia etc). O motivo principal para a escolha do Afeganistão como primeiro alvo da retaliação teria sido a localização estratégica do país como porta de acesso às fabulosas riquezas em petróleo, gás e diferentes minérios do Turquemenistão, do Casaquistão e do Tajiquistão. A súbita virada de Putin – já definida por alguns observadores como a maior capitulação da história da Rússia – veio facilitar muito o desenvolvimento do ambicioso projeto norte-americano. A presença de forças militares dos EUA em algumas dessas repúblicas aperta o cerco à Rússia, previsto no plano de desmembramento da atual Federação.

Significativamente, o jornal The New York Times (8/1/2002) salientou em editorial que o Pentágono decidiu que as forças militares norte-americanas permaneçam sem limite de tempo na çsia Central ex-soviética. No Kirguistão começou já a ser construída uma gigantesca base aérea.
A militarização do planeta e o perigo do fascismo
A ofensiva contra os direitos civis intensificou-se muito após o 11 de setembro. Era inevitável pela lógica do sistema de poder.

A Administração Bush reagiu imediatamente e com satisfação às campanhas das forças políticas da extrema direita que reclamavam restrições às liberdades públicas alegando que eram indispensáveis a um combate eficaz contra o terrorismo. O Congresso, correspondendo ao apelo do Presidente, aprovou logo um primeiro pacote de medidas que fere direitos e garantias constitucionais, embora não tenha concedido a Bush tudo o que ele pedia.

Influentes colunistas se alinharam com a extrema direita. Thomas Friedman, ex-assessor de Madeleine Albright, escreveu no The New York Times: “Temos de lutar com os terroristas como se não existissem normas de conduta”. Richard Lowry foi mais longe na National Review: “Se destruirmos parte de Damasco ou de Teerã, ou o que for necessário, isso será parte da solução”. Steve Dunleavy lançou no New York Post um apelo que re-atualiza os de Goebels: “A resposta deve ser tão rápida como fácil – matar os bastardos. Um tiro entre os olhos; fazê-los voar em pedaços; envenená-los se necessário. Quanto às cidades e países que hospedam esses vermes, devemos bombardeá-las até as converter em quadras de basquetebol”. (3)

Em 13 de novembro, o Presidente, na sua condição de comandante supremo das Forças Armadas dos EUA, assinou o famoso diploma que autorizou a criação de tribunais militares para julgar estrangeiros residentes nos EUA suspeitos de participação em atos terroristas. A iniciativa de Bush, além de inconstitucional, apresenta contornos fascistizantes. Escancarou a porta a toda espécie de arbitrariedades contra cidadãos estrangeiros. A detenção por simples denúncia de milhares de pessoas originárias de países muçulmanos e os interrogatórios e torturas a que muitas foram submetidas desenvolveu-se numa atmosfera de caça às bruxas que alarmou inclusive setores liberais que, até então, haviam apoiado incondicionalmente, a escalada militar na çsia. Pela primeira vez, embora timidamente, jornais como The New York Times e Washington Post manifestaram apreensões pela orientação imprimida ao combate contra o terrorismo.

Alguns Estados, onde a implantação da extrema direita é mais forte, já se haviam, entretanto, antecipado a Bush, promulgando legislação inconstitucional que atinge, sobretudo os estrangeiros. Uma onda de xenofobia continua a varrer os EUA, invadindo inclusive as universidades. Em escolas privadas a censura de livros e autores tornou-se rotineira, como na época do macartismo. O absurdo atinge tais extremos que a famosa canção de John Lennon que faz a apologia da paz foi proibida em muitos estabelecimentos de ensino por ser considerada subversiva.

O temor provocado pela fórmula bushiana “os que não estão conosco estão contra nós” é particularmente identificável na mídia. Tal como Bin Laden, Bush proclama que Deus está com ele… Cresce a tendência para a autocensura em canais de televisão, rádios e jornais tidos por independentes.

Circunstâncias pouco comuns permitiram ao sistema de poder levar adiante a sua política em condições favoráveis. Em primeiro lugar os atentados do 11 de setembro produziram um efeito imediato de choque com características inéditas. Nunca havia acontecido algo similar. O horror generalizado pelo ato terrorista abriu a porta a solidariedades imediatas e diversificadas. Os EUA estavam em recessão e o seu isolamento aumentava. De repente emergem como nação agredida e pólo de uma coligação contra o terrorismo. A imagem de fanatismo e barbárie dos Talibã ajudou. O intenso bombardeio midiático foi um fator decisivo para a formação da vaga inicial de solidariedade ao povo dos EUA. As imagens daquelas torres a desmoronarem-se após o impacto dos aviões suicidas ficaram para sempre gravadas na memória de centenas de milhões de pessoas.

Transcorreu algum tempo antes que uma parcela importante da humanidade tomasse consciência de que a resposta dos EUA assentava numa política de retaliação cujos contornos se apresentaram inicialmente como nevoentos. Mas quando, quatro semanas depois, a 7 de outubro, os primeiros mísseis explodiram em Cabul, o panorama tornou-se menos confuso. O genocídio afegão provocou um repúdio cada vez mais amplo.

Milhares de pessoas principiaram a sair às ruas em todos os continentes, condenando uma guerra irracional que atingia um povo inteiro afetado pela fome e por duas décadas de conflitos fratricidas.
Esse movimento de repulsa, é verdade, não assumiu as proporções que a monstruosidade da agressão justificava. Para a maioria dos telespectadores de qualquer país ocidental a idéia do Afeganistão aparece, sobretudo, associada à de uma sociedade tribal primitiva na qual as mulheres são tratadas como animais e a vida não vale nada. É demasiado remoto e brumoso para provocar interesse e compaixão suficientes para a mobilização das solidariedades.

Identifico, porém, como negativa e até perigosa a posição daqueles que atribuem a passividade com que a maioria da humanidade aceitaria a dominação política, econômica e tecnológica norte-americana ao fascínio que a cultura e o sistema de vida dos EUA exerceriam sobre a quase totalidade da Terra. Essa é, por exemplo, a posição sustentada por Ignacio Ramonet no Le Monde Diplomatique e por ele exposta em Havana durante o Festival do Cinema Latino-Americano. (4) Segundo o diretor daquele jornal, a hegemonia dos EUA no campo da cultura e no domínio do simbólico gerou um tipo de dominação carismática, “a passiva cumplicidade dos dominados, aquilo a que poderíamos chamar uma opressão afável, um delicioso despotismo”.

Tal teoria, ao tomar a passividade por adesão, é confusionista e desmobilizadora. A debilidade e lentidão da resposta dos povos à agressiva estratégia de hegemonia planetária dos EUA não resultam do fascínio norte-americano. Há muito que os EUA deixaram de irradiar a imagem do paraíso. Um pouco por todo o Terceiro Mundo a opressão afável e o delicioso despotismo são sentidos, pelo contrário, como formas de dominação insuportáveis que provocam a miséria, o desemprego, o empobrecimento dos povos submetidos à estratégia imperial.

O castigo infligido ao Afeganistão, e a imposição ali de um governo fantoche, após mais de dois meses de bombardeios selvagens, ficarão talvez a assinalar na história um marco importante numa ambiciosa estratégia de dominação universal e perpétua que pela sua dinâmica aponta para uma militarização da Terra, ou, para ser mais preciso, para uma ditadura militar atípica, exercida pelos EUA sobre a totalidade do planeta.

Não foi por acaso que Negroponte, Cheeney, a senhorita Condoleezza, Rumsfeld e naturalmente George Bush advertiram repetidamente que o Afeganistão deveria ser visto apenas como um primeiro capítulo da guerra sem quartel contra o terrorismo. Entre os futuros alvos têm sido citados o Iraque, a Síria, a Líbia, o Líbano, a Colômbia, o Iêmen. A irracionalidade da política do sistema de poder norte-americano desaconselha previsões. Mas não é improvável que países como as Filipinas ou a Somália mereçam a preferência de Washington. Também eles são como o Afeganistão; territórios remotos, mal conhecidos e pobres. Se amanhã mísseis começarem a explodir nas selvas de Mindanao perto de um acampamento de rebeldes muçulmanos, “em defesa da civilização”, a primeira reação de milhões de pessoas será provavelmente procurar no mapa o lugar dessa ilha das Filipinas.

Para a América Latina é especialmente preocupante a inclusão das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular na lista das organizações terroristas elaborada em Washington. Doravante qualquer movimento de libertação nacional pode, de um dia para outro, ser exorcizado por George W. Bush como terrorista. As mesmas bombas de 7 toneladas que esventraram as cidades afegãs podem amanhã explodir sobre as montanhas e as selvas da Colômbia.

A estratégia de militarização do planeta apresenta peculiaridades que não têm merecido atenção suficiente. Uma delas é indissociável de uma situação inédita. Aquilo que defini como eventual prólogo de uma ditadura militar de âmbito planetário implica numa radicalização ideológica dos responsáveis pela condução das guerras de agressão exteriores. A Somália diferiu do Golfo, e o Afeganistão inovou em múltiplos aspectos. A chacina de Mazar, o saque de Kandahar, o desfecho do assalto a Tora Bora, bastião da Al Qaeda, trazem à memória, como já sublinhei, ações criminosas das SS nazistas na segunda guerra mundial. Na decisão de matar os prisioneiros, na atitude de recusar a rendição de combatentes para evitar sobreviventes incômodos aflora um pensamento fascista. As tropas norte-americanas comportaram-se no Afeganistão como cartagineses do século XXI. Compraram mercenários para lutar e morrer por uma causa que lhes era estranha. O envolvimento do alto comando das Forças armadas dos EUA nessa política não foi apenas transparente. A tarefa foi cumprida com zelo, com prazer e orgulho.

As sementes do fascismo contaminaram já – é inocultável –, muitos pilotos e oficiais do exército presentes no cenário de horrores do Afeganistão.
Essa realidade tem passado quase despercebida, inclusive a intelectuais marxistas. O perigo de um fascismo de novo tipo torna-se mais difícil de identificar porque apresenta características inéditas: 1) Não se enquadra nas definições clássicas do fascismo; 2) Aparece como inseparável da dinâmica agressiva de um sistema de poder imperial e anuncia-se como efeito da própria lógica da violência desencadeada pelas Forças Armadas que servem esse sistema como instrumento de dominação planetária; 3) Sendo um fenômeno que se enraíza no corpo de oficiais, apresenta a peculiaridade de, estruturando-se e fortalecendo-se longe do país no quadro das suas guerras de agressão, tender a se alastrar de fora para dentro, ou seja, da periferia para os EUA, coração do sistema.

A dificuldade em admitir que a atual política de terrorismo de Estado dos EUA ameaça desembocar no neofascismo reside precisamente no caráter das instituições norte-americanas e na atipicidade da ideologia subjacente às ações de genocídio praticadas com freqüência crescente por um poder militar hegemônico. O hábito de associarmos o fascismo quase mecanicamente como modelo de Estado e de organização da sociedade à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini nos leva a esquecer que a sua implantação assumiu no último meio século formas muito diferenciadas e que tanto o assalto ao poder – aliás, diferente naqueles dois países – quanto o funcionamento do sistema não cabem em definições rígidas.

O fascismo na Europa, e fora dela, não obedeceu a um figurino único. Se no III Reich e na Itália – inicialmente – contou com forte apoio de massas, e teve como instrumento, importantes partidos que seguiam cegamente líderes carismáticos e fanáticos, isso já não aconteceu na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar. Na Hungria de Horthy, na Romênia de Antonescu, na Croácia de Ante Pavelich foram, sobretudo, aspectos fulcrais da organização do Estado que tomaram, como fonte de inspiração, o modelo alemão ou o italiano. O único denominador comum a todos os fascismos foi o nacionalismo irracional e agressivo, com uma componente racista, a tentativa de imposição de uma contracultura e a criação de aparelhos de repressão do tipo da Gestapo. Na ordem econômica as diferenças foram transparentes.

Ainda hoje se discute no Brasil se a ditadura militar no período de Médici e no início de Geisel foi ou não um fascismo castrense atípico. Como afirmou Palmiro Togliatti, o fascismo é “um sistema de reação tão conseqüente e completo” que não se define somente “pelos atos de terror selvagem” por ele praticados contra operários e camponeses. O caso do Chile é, por exemplo, um tema inesgotável de reflexão, tanto pelo que nele foi específico, no terreno político, econômico e militar, quanto pelas suas contradições. Aqueles que definem a ditadura terrorista de Pinochet, pela teoria e pela práxis, como fascista, sustentam – a meu ver com fundamento – que as Forças Armadas desempenharam ali o papel que no Reich nazista foi assumido pelo partido nazi e pelos aparelhos policiais por ele criados. (5) O fenômeno chileno ajuda a compreender num contexto diferente e noutra dimensão a ameaça neofascista que o terrorismo de Estado norte-americano carrega no ventre.

O perigo agora é planetário e, repito, nasce longe da sociedade cujo sistema de poder o gerou. As expedições punitivas não tomam por alvo minorias nem partidos de esquerda ou organizações sindicais. O inimigo, imaginário, fabricado é, agora, outro: indivíduos transmutados em gigantes demoníacos e, sobretudo, povos paupérrimos, distantes e desarmados.

A agressividade imperial assume proporções e ritmo assustadores.

A política de militarização global não poderia ser implantada sem a fascistização progressiva de uma parcela importante do comando das forças incumbidas de missões criminosas como as citadas neste trabalho.

É muito cedo para previsões. A agressividade vai prosseguir. Mas, muita coisa dependerá dos futuros cenários e da reação dos povos à cruzada do terrorismo de Estado imperial.
Pode eventualmente configurar-se uma situação sem precedentes. Não obstante as restrições às liberdades públicas e a escalada repressiva em curso, a sociedade norte-americana continua a evoluir num contexto em que as instituições democráticas mantêm a sua vigência. Esboça-se assim num horizonte muito enevoado uma contradição de tendências antagônicas entre o sentir do povo dos EUA, apegado a estruturas políticas conservadoras, mas incompatíveis com qualquer tipo de governo autocrático, e a inevitável importação da herança política de uma estratégia de dominação militar de perfil ditatorial e neofascista nas relações com o mundo exterior.

Não sou pessimista; apenas realista.

Na crise global de civilização em que vivemos o desenvolvimento da história anuncia conflitos que pela irracionalidade do superimperialismo norte-americano atualizam as utopias de Huxley e Orwell. Não é impossível que a rejeição pelo povo dos EUA de um modelo de contracivilização neofascista venha a funcionar como detonador de explosões sociais imprevisíveis há poucos anos.

Companheiros, o terrorismo de Estado praticado pelos EUA como alicerce da sua estratégia de dominação planetária constitui ameaça à própria sobrevivência da humanidade.

A história continua e o futuro do homem não está traçado. Dependerá dele, dependerá de todos nós, do nosso espírito de luta, da nossa capacidade coletiva de nos batermos por ideais que vêm da profundidade do tempo, de demonstrarmos que a globalização de figurino imperial é uma aberração e que está ao alcance do homem construir um mundo diferente, compatível com aspirações eternas da sua condição.

Miguel Urbano Rodrigues é escritor e jornalista. Este texto reproduz sua comunicação no Seminário Internacional “Não à guerra imperialista e à ameaça neofascista”, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (2 de Fevereiro de 2002).

Notas
(1) Miguel Urbano Rodrigues, Nômadas e Sedentários na Ásia Central, 435 p., Campo das Letras, Porto, 1999.
(2) Left Business Observer, Nova York, 18 out, pp.
(3) Ct. por Frente Socialista de Porto Rico, novembro pp.
(4) Juventud Rebelde, Havana, 7 dez. pp.
(5) V. Marta Harnecker, “Fascismo y Dependencia”, agosto de 1977, in Chile Informativo nº 4 123-24, Casa de Chile en México.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18