A criação de uma área de livre comércio entre os 34 países da América Latina, exceto Cuba, tem gerado discussões e polêmicas. Enquanto parte expressiva da sociedade acredita que o Brasil deveria deixar de negociar esse acordo por representar perda de soberania, um outro segmento vê a formação da Alca como um passo natural no processo de liberalização do comércio internacional.

Aderentes a essa última forma de encarar a criação dos blocos regionais de comércio estão idéias como a de Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial. Ao discutir a relação entre liberalização comercial e formação de grandes blocos regionais de comércio, Stiglitz refere-se a estes como uma fase intermediária a persistir até que a Organização Mundial do Comércio (OMC) consiga derrubar as barreiras não tarifárias que emperram a total liberalização do comércio mundial.

Por esse ponto de vista, os acordos regionais de comércio podem, pelo menos teoricamente, promover a liberalização multilateral, ao pressionar por reformas unilaterais baseadas no mercado (como, por exemplo, a mudança na legislação sobre propriedade industrial feita pelo México ao aderir ao Nafta), e encorajar a competição entre países para diminuir suas barreiras ao comércio e aos investimentos externos.

Para os que assim pensam, o Mercosul não passa de um estágio na transição para o livre comércio e deverá ser deixado para trás tão logo a Alca venha a se concretizar.

Uma parte significativa da sociedade brasileira, entretanto, não pensa desse modo. Para essa parcela a formação do Mercosul não foi apenas o resultado dessa lógica liberalizante dos fluxos internacionais de comércio. Enquanto a globalização é um processo centrífugo, de dispersão econômica, a regionalização é um fenômeno centrípeto que envolve o movimento de duas ou mais economias em direção a uma integração mútua maior. Tanto pode ser dirigido por forças políticas motivadas por preocupações econômicas, de segurança, ou quaisquer outras, como também pode resultar de um processo guiado pelas mesmas forças microeconômicas que conduzem a globalização, isto é, as grandes corporações multinacionais.

o primeiro caso temos a União Européia e o Mercosul. O Nafta está mais próximo da segunda categoria, uma vez que sua principal força motriz são as grandes corporações norte-americanas sedentas de novos mercados e de nivelar o terreno de competição em escala global para fazer melhor o jogo do lucro.

A integração regional pode adquirir diferentes formas institucionais, e distintos níveis de profundidade, variando de uma zona de livre comércio, onde os participantes não têm uma política de comércio exterior comum, como é o caso do Nafta, até uma integração aduaneira, como o Mercosul, onde se pode alcançar formas mais profundas de integração, com harmonização de algumas políticas domésticas (principalmente de incentivo a investimentos); reconhecimento mútuo de padrões e normas; e finalmente pode-se, em princípio, alcançar a total integração econômica, monetária e política, como no caso da União Européia.

A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), se de fato algum dia vier a se constituir, será uma mera extensão do Nafta para o restante do continente americano. O Mercosul, por sua vez, enquanto união aduaneira com pretensões de vir a ser um mercado comum tem um sentido muito mais profundo e é guiado não apenas por forças de mercado ou pelo desiderato de uma potência hegemônica cujos termos de acordo passam necessariamente pela aceitação das regras do jogo por ela impostas.
Um aspecto marcante da etapa atual de desenvolvimento do sistema capitalista-imperialista mundial – por muitos denominada como globalização ou mundialização da economia –, foi a constituição da Organização Mundial do Comércio – OMC, como órgão de administração econômica global, e a proliferação dos blocos regionais de comércio.

Existe um amplo consenso de que as novas regras de funcionamento da economia mundial, estabelecidas no âmbito da OMC, condicionam fortemente as possibilidades de desenvolvimento dos países. A adesão do Brasil a acordos regionais de comércio, com regras até mais restritivas que as impostas pela OMC, como se pretende com a criação da Alca, se constituirá em elemento altamente restritivo para a aplicação de políticas locais de desenvolvimento, quando estas vierem a afetar interesses econômicos de empresas e países participantes do bloco.

A adesão do Brasil à OMC trouxe, até o momento, mais encargos e obrigações do que benefícios. As razões disso estão no fato de que, embora pelas regras do OMC cada país tenha um voto e cada voto tenha o mesmo peso, na prática quem comanda o processo são as grandes potências comerciais e as empresas multinacionais.

União Européia, Estados Unidos e Japão respondem por 60% das importações mundiais; suas empresas e consumidores gastam mais de US$ 3 trilhões anuais em produtos vindos do exterior.(1) A história tem mostrado que as “leis” de comércio mundial são ditadas por quem controla o acesso aos principais mercados e os demais países as aceitam simplesmente por que não têm outra alternativa.

Os principais agentes desse processo são as empresas multinacionais. Elas respondem por aproximadamente um terço de toda a produção e dois terços das exportações mundiais, sendo metade desse fluxo interfirmas, ou seja, entre diferentes unidades de uma mesma empresa.

Esta situação exige, no plano institucional, um ambiente cada vez mais desregulado, que permita e garanta a livre movimentação de capitais e mercadorias de acordo com a estratégia global dos grandes grupos que dominam a economia mundial. A reivindicação mais freqüente dos representantes das grandes corporações multinacionais nos inúmeros fóruns internacionais convocados para debater o tema expressa-se amiúde pelo termo “nivelar o campo de competição”(2), ou seja, o livre entendimento entre lobos e cordeiros.

A existência de diferentes normas e regulamentos na área comercial, financeira, tributária, trabalhista e no regime de proteção à propriedade intelectual nos diversos países em que atuam, bem como a possibilidade que cada país possui de mudar as regras do jogo de acordo com as suas próprias conveniências e circunstâncias constituem-se, para essas empresas, em elemento que amplia o grau de incerteza normalmente associado às decisões de investimento. A presença de situações e fluxos fora de seu campo de controle é uma situação percebida como problemática e evitável.

Tal pretensão, entretanto, é aplicada de forma unilateral, pois enquanto os países em desenvolvimento vêm dando grandes passos no processo de abertura comercial e adaptação de sua legislação aos padrões reivindicados pelas multinacionais, os países desenvolvidos aceitam a padronização desde que seja a de seu interesse.

Escudados no argumento de que suas economias já eram bastante abertas, aos fluxos internacionais de mercadorias e capitais, os países ricos pouco tiveram de ceder para obter enormes concessões dos países pobres. Além disso, no pouco que se comprometeram a ceder, quase nada fizeram de concreto.

Tome-se, por exemplo, o Acordo de Têxteis e Vestuários celebrado na OMC, em 1994, segundo o qual os países desenvolvidos se comprometeram a eliminar gradualmente todas as cotas que restringiam as exportações dos países em desenvolvimento em cerca de US$ 350 bilhões ao ano, até sua eliminação em dezembro de 2004. Até agora, passados sete anos da assinatura do acordo, 80% das cotas ainda estão vigendo. De 757 cotas, os EUA aboliram até agora apenas 56, a UE apenas 52 de 219, e o Canadá não mais que 54 de 295.(3)

Os países que dominam o comércio internacional e comandam o acesso aos principais mercados promovem uma abertura seletiva de seus mercados. Baixam ou mesmo eliminam tarifas e barreiras não tarifárias para produtos com os quais os países em desenvolvimento não têm condições de competir; que seus países não tenham interesse ou condições de produzir, principalmente matérias-primas e insumos intensivos no uso de energia; ou que exijam processos de produção altamente poluidores. Impõem, contudo, barreiras elevadas para produtos mais elaborados que possam concorrer com sua produção local, principalmente nos setores politicamente mais sensíveis, como a agricultura, nas indústrias decadentes e pouco competitivas, mas com grande força política, como a siderúrgica, ou ainda naqueles segmentos que utilizam intensivamente mão-de-obra, como o setor têxtil.(4)

A evolução das exportações brasileiras no complexo da soja revela de forma exemplar a degradação da nossa pauta de exportações em função da escalada tributária, processo pelo qual os países ricos taxam com alíquotas mais elevadas os produtos de maior valor agregado enquanto liberam seus mercados para importação de matérias-primas que não produzem.

Brasil já foi o principal exportador mundial de óleo e de farelo de soja, superando os EUA, principal produtor e consumidor mundial. Há cinco anos tínhamos capacidade de esmagamento de 33 milhões de toneladas/ano de soja em grão e industrializávamos 21,6 milhões de toneladas, diante de uma safra de 26 milhões de toneladas. Mesmo com um crescimento da safra de soja da ordem de 46% nesse período, a capacidade de esmagamento caiu em 15% e continuamos esmagando os mesmos 21,6 milhões de toneladas, evidenciando um retrocesso na agroindústria.(5) A causa está no fato de que enquanto a soja em grão paga taxas de importação relativamente modestas, os derivados da soja de maior valor agregado pagam taxas muito superiores à média.

O caso do café é exemplar. O Brasil exporta principalmente café em grão verde, que é processado nos países de destino. Em 2000, das 18 milhões de sacas exportadas, 16 milhões foram dessa variedade. A Alemanha, por exemplo, apesar de não plantar um único pé de café já é o terceiro exportador mundial do produto. Para conseguir tal façanha, libera a importação de grãos, que não produz e, por meio de tarifas e outras barreiras não-tarifárias dificulta a importação do café solúvel, de maior valor agregado.

Desta forma, uma saca de café verde, importada a US$ 35 pode gerar para a economia local uma renda dezenas de vezes superior. Segundo o economista inglês Jan Kregel, enquanto o Brasil ganha US$ 1 por quilo de café, a Alemanha, ao beneficiá-lo e vendê-lo no mercado europeu ganha US$ 12 por quilo.(6) Considerando-se toda a cadeia produtiva, do pé ao consumidor final, uma saca de café exportada a US$ 35 pode gerar uma renda final de US$ 10.000, se considerarmos que nas principais capitais da Europa e dos Estados Unidos, uma xícara de café chega a custar algo em torno de dois a três dólares.(7)

O que ocorre com o couro não é muito diferente. O Brasil é grande produtor mundial de couro bovino, uma matéria-prima muito valorizada no mercado internacional. Cada animal abatido fornece uma peça de couro suficiente para a produção de aproximadamente 25 pares de sapatos. É mais interessante e lucrativo exportar couro acabado ou calçado do que exportar couro cru ou semi-acabado. Para se ter uma idéia das diferenças, basta saber que uma peça de couro cru custa cerca de US$ 10 no mercado internacional. Enquanto isso, a peça de "wet blue ", um couro semi-elaborado, sai por US$ 30. A peça do "crust ", um pouco mais elaborado, custa US$ 60 e a do couro acabado, US$ 70. Já os 25 pares de calçados que podem ser feitos com essa peça de couro valem US$ 350, em média. Acontece que, nos últimos tempos, tem aumentado muito a exportação brasileira do "wet blue ", fazendo com que em vez de se exportar calçados que renderiam US$ 350 por boi abatido e gerariam milhares de empregos no Brasil, exportamos cada vez mais o couro semi-elaborado, a US$ 30 por peça. Isso ocorre porque a União Européia aplica uma taxa de importação de 17% sobre os calçados importados e de 6,5% sobre o couro acabado. O "wet blue ", porém, entra na comunidade européia sem nenhuma taxação. Estima-se que o Brasil estaria deixando de receber divisas de pelo menos US$ 400 milhões anuais por causa dessa exportação de couro semi-acabado no lugar do produto acabado.(8)

resultado desse desequilíbrio no comércio mundial para a economia brasileira é a fragilidade e vulnerabilidade crescentes do país em uma conjuntura internacional cada vez mais volátil. As desigualdades existentes nas relações internacionais de troca do Brasil com o resto do mundo são decorrência do desenvolvimento desigual do capitalismo mundial onde os que estão sentados à mesa tentam a todo custo impedir a chegada de novos comensais, quando muito lhes atirando algumas migalhas. E o fato concreto é que a OMC pouco ou nada fez até agora para alterar esse status quo. Ao contrário, sua ação mais parece orientar-se no sentido de mantê-lo ad infinitum. E o mesmo nos parece ser o caminho que os Estados Unidos tentam imprimir à futura Alca, caso não encontrem maiores resistências.

A prova de que tal suspeita tem fundamento está na quase total incapacidade da OMC de impedir que as economias dos países ricos tomem as mais variadas medidas protecionistas para defender seus mercados e, em sentido contrário, na presteza com que age contra os supostos desvios dos países em desenvolvimento quando estes supostamente fogem das regras acordadas. Ou ainda na tentativa de impor como padrão mundial normas acordadas no âmbito da OCDE, que congrega apenas os países desenvolvidos; como ocorreu recentemente em relação às regras de financiamento às exportações, que obrigou o Brasil a modificar as normas do Proex – principal mecanismo de financiamento que a Embraer vinha utilizando para exportar aviões – e adaptá-las aos padrões dos países desenvolvidos quando se sabe que as condições de disponibilidade de capitais são totalmente diferentes aqui e acolá.

Isso tudo é exemplarmente evidenciado no relatório anual sobre “Barreiras aos Produtos e Serviços Brasileiros no Mercado Norte-Americano”, preparado pela embaixada brasileira em Washington. Conforme observou em editorial recente o jornal O Estado de S. Paulo, a respeito do referido relatório, “a afirmação, exaustivamente repetida, de que a economia norte-americana é uma das mais abertas do mundo, com tarifas muito baixas, não serve para descrever o comércio com o Brasil. A média tarifária, ou de equivalente tarifário, imposta aos 15 principais produtos brasileiros, é de 45,6%, segundo levantamento da embaixada. Quando se consideram os produtos de maior peso na pauta, a economia brasileira é de fato mais aberta: a tarifa média aplicada no Brasil aos 15 principais produtos norte-americanos é de 14,3%, segundo o mesmo estudo”.(9)

Note-se, ainda, que tais barreiras, no caso norte-americano tanto valem para produtos agrícolas como para produtos industrializados. A área siderúrgica, por exemplo, é uma das mais afetadas. De um consumo total de 119 milhões de toneladas/ano de produtos siderúrgicos, os EUA importam 18 milhões de toneladas, o que equivale a 15% do consumo total. Do Brasil, os Estados Unidos importam apenas 3 milhões de toneladas/ano ou 2,5% do seu consumo. Essa participação limitada da produção brasileira no mercado norte-americano, em que pese a alta competitividade da nossa siderurgia, deve-se ao protecionismo crescente do governo dos Estados Unidos, que se traduz em acusações infundadas de dumping e na recorrente aplicação de penalidades cujo único objetivo é proteger a indústria norte-americana do aço. Diante de novas demandas de proteção por parte da indústria norte-americana o governo Bush demandou ao International Trade Comission (ITC), comissão encarregada de analisar questões comerciais, um novo estudo sobre eventuais danos causados ao setor por concorrentes estrangeiros. Baseado em análise divulgada em outubro de 2001, a qual concluía que 12 dos 33 produtos siderúrgicos que o país compra do resto do mundo são subsidiados devendo sofrer novas sobretaxas nos próximos meses,(10) o presidente dos Estados Unidos George W. Bush decidiu impor tarifas que vão de 8% a 30% sobre as importações de aço durante os próximos três anos. O Brasil foi diretamente atingido, pois as tarifas acabam por fechar ainda mais o já protegido mercado norte-americano de produtos siderúrgicos para os aços brasileiros de maior valor agregado e limitam a expansão de exportações de semi-acabados.(11) A decisão dos EUA de ampliar o protecionismo à indústria do aço provocou a ira de países exportadores em todo o mundo uma vez que se sabe que o seu único objetivo é proteger uma indústria sucateada e sem condições de competir com empresas mais modernas e competitivas localizadas não só no Brasil, como em outros países. Cada tonelada de bobinas laminadas a quente produzida pelas siderúrgicas norte-americanas tem um custo médio de US$ 260, enquanto o custo médio internacional é de US$ 180.(12)

O protecionismo norte-americano não se limita, contudo, ao aço. O açúcar – já mencionado acima – paga US$ 338,70 por tonelada extra-cota; o tabaco, 350%; o etanol, 2,5% mais US$ 0,52 por galão; o suco de laranja, US$ 0,785 por litro; e os têxteis 38% ad valorem, mais US$ 0,485 por quilo.(13) O governo norte-americano aumentou, na década de 1990, em quase 400% os subsídios concedidos aos produtores rurais dos Estados Unidos. Entre 1990 e 2000 a conta total de subsídios agrícolas nos Estados Unidos aumentou de US$ 6,5 bilhões para US$ 32,3 bilhões ao ano.(14)

A questão não se restringe, contudo, aos Estados Unidos. A própria OMC reconheceu no relatório divulgado no final de 2000 que as práticas protecionistas dos países desenvolvidos, especialmente na agricultura, estão aumentando. Segundo o relatório, a União Européia teria concedido 45% do total de subsídios aos agricultores, o Japão, 23% e os EUA, 21%.(15) Para o conjunto dos países industrializados os subsídios são da ordem de US$ 365 bilhões anuais.(16)

Estudo da própria OMC mostra que as cotas, outro mecanismo de restrição de acesso aos mercados dos países desenvolvidos, aumentaram, ao invés de diminuir, como se poderia esperar da liberalização, ainda que tímida, acertada na Rodada Uruguai. A União Européia (UE) pratica 85 cotas, seguida pelos Estados Unidos (54) e Canadá (21). O Brasil, em contrapartida, adota apenas uma, sobre ingresso de pêras e maçãs.(17) O protecionismo aparece ainda na aplicação discricionária da legislação antidumping, principalmente por parte dos Estados Unidos, para proteger sua indústria local, cujo caso mais recente é a nova investida do governo Bush para proteger a indústria local de aço.

Cabe ainda assinalar que um dos mais importantes acordos assinados por ocasião da criação da OMC, o Trips (sigla em inglês do Acordo de Propriedade Intelectual relacionada ao Comércio), beneficiou largamente os países desenvolvidos em detrimento dos países em desenvolvimento. O próprio Banco Mundial recomendou recentemente, no relatório Perspectivas da Economia Mundial em 2001, um novo equilíbrio no acordo para permitir aos países em desenvolvimento, principalmente os mais pobres, o acesso a preços competitivos a remédios e produtos essenciais ao bem-estar e ao desenvolvimento.(18)

O estudo afirma que, na situação atual, se os países em desenvolvimento tivessem que implementar totalmente o Acordo sobre Propriedade Intelectual – Trips, teriam de pagar US$ 20 bilhões a companhias no exterior por direitos de propriedade intelectual. Segundo o banco, a introdução desse tratado beneficiou principalmente os Estados Unidos que, como sede de numerosas companhias detentoras de patentes, obtiveram uma renda adicional líquida de US$ 19,1 bilhões por ano. A Alemanha teve um ganho de US$ 6,7 bilhões por ano. Do outro lado, a Coréia do Sul é o país com a maior transferência de recursos por causa da importação líquida de tecnologia a um custo de US$ 15,3 bilhões por ano. Outro país em desenvolvimento que paga alto pelo estoque de patentes é a China, com US$ 5,1 bilhões. O Brasil paga ao exterior US$ 530 milhões.(19)

Finalmente, mas não menos importante, é preciso levar em conta que uma eventual adesão sem maiores cuidados do Brasil à Alca poderia significar a liquidação de grande parte do parque industrial brasileiro. Estudo recente da Fiesp mostra que, com exceção de aviação, siderurgia e químicos, as demais cadeias de produção têm defasagem em relação às dos EUA em aspectos fundamentais e que empresas nacionais de inúmeros setores teriam dificuldades para brigar no livre comércio.(20) Se levarmos em conta que atualmente o que seria a futura Alca representa, para o Brasil, 70% das exportações de manufaturados, uma adesão precipitada poderia significar a degradação definitiva de nossa pauta de exportações.

Muitos vêem na aprovação no Congresso norte-americano da chamada “via rápida” (fast-track ou TPA – Trade Promotion Authority) um sinal de avanço na posição norte-americana quanto à predisposição de negociar um acordo em bases mais equânimes. Quando se observa, entretanto, os termos em que a referida autorização foi aprovada fica evidente que o discurso norte-americano em favor do livre comércio é apenas da boca para fora. Melhor dizendo, ela defende o livre comércio quando se trata de espalhar sua produção pelo resto do mundo, mas é contra quando esse mesmo livre comércio ameaça suas próprias empresas.

A autorização dada a Bush pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos é para negociar acordos que aumentem as garantias dos investidores norte-americanos em outros países, reforçando os mecanismos de proteção à propriedade intelectual (lei de patentes), que reduzam ou eliminem qualquer tipo de exigência de desempenho, transferência forçada de tecnologia e exigências de conteúdo nacional nos investimentos diretos realizados por empresas norte-americanas em outros países. Proíbe, no entanto, acordos que criem algum tipo de embaraço à aplicação das leis norte-americanas de comércio e permitem através de vários mecanismos (principalmente o famigerado antidumping) barrar importações em prejuízo das empresas dos EUA, como ocorre atualmente com os produtos siderúrgicos brasileiros.

É na questão da agricultura, porém, que tal autorização é mais restritiva. Além de impor que qualquer tipo de liberalização do comércio de produtos agrícolas preveja "períodos razoáveis de ajustamento", veta acordos que dificultem a preservação dos programas de subsídios à agricultura e simplesmente retira os cítricos e o açúcar, dois produtos do maior interesse do Brasil, sujeitos a enormes barreiras tarifárias e não-tarifárias no mercado norte-americano, da autorização para negociar acordos comerciais.

Essa situação pode se agravar ainda mais no Senado norte-americano. No dia 13 de dezembro, o Comitê de Finanças do Senado dos EUA aprovou sua versão para o projeto de lei da "via rápida" (ou fast track), ainda mais dura. Acrescenta novas restrições às já aprovadas na Câmara: antes de ingressar numa negociação comercial o presidente Bush fica obrigado a enviar ao Congresso um relatório sobre o histórico trabalhista dos países que são parceiros comerciais dos Estados Unidos; impede que empresas de outros países questionem restrições comerciais dos Estados Unidos disfarçadas de regras ambientais e proíbe o presidente norte-americano de enfraquecer as atuais leis antidumping dos Estados Unidos, um dos seus principais mecanismos protecionistas. O conteúdo protecionista da autorização é tão evidente que até o ultraliberal jornal inglês Financial Times qualificou-a, em editorial, de "documento protecionista, não um instrumento para liberalizar o comércio".

A adesão do Brasil ao projeto da Alca nos termos em que está atualmente posto pelos Estado Unidos não interessa ao Brasil. O processo de integração hemisférica não pode ser conduzido apenas pela lógica das relações de comércio, por mais importantes que elas sejam. Limitar a política externa do país à atividade de promoção comercial, e o nosso corpo diplomático a agentes do comércio exterior, é um reducionismo sem medida. O nosso projeto de integração deve ser conduzido por imperativos internos e macroeconômicos e não externos e microeconômicos. Conforme afirma Mangabeira Unger, “Rio Branco fundou a tradição de nossa política externa sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade”.(21)

A adesão do Brasil à Alca nos termos atualmente colocados é a negação de tudo isso. Não se trata de um desejo de auto-isolamento; muito menos de uma visão interesseira de querer preservar o espaço sul-americano como sua área de influência. O fato concreto é que se não resguardarmos esse espaço como elemento vital para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria como afirmado acima, nem nós, nem nenhum outro país latino-americano terá a mínima chance de romper as relações de vassalagem que os Estados Unidos tentam impor ao continente. A questão fundamental, na verdade, não é ser simplesmente contra a Alca, mas sim a favor do Mercosul e da Alcsa – Área de Livre Comércio Sul-Americana. Desde que o espaço sul-americano seja resguardado, poderemos negociar acordos de livre comércio não só com o Nafta, como também com a União Européia, com a China, com a Índia, com os países da Asean, do Oriente Médio e com nossos irmãos da África. O que não podemos aceitar é a simples anexação econômica do país por uma potência hegemônica que não nos respeita e com quem não temos nenhuma identidade política, econômica ou cultural.

Não esqueçamos da recomendação do texto da Constituição brasileira que estabelece o princípio da independência nacional nas relações internacionais do nosso país. No caso, cabe lembrar ainda a lição do libertador Simon Bolívar que recomendava uma aproximação conjunta e cautelosa dos países latino-americanos em relação ao vizinho arrogante e voraz do Norte.

Aldo Rebelo é jornalista, deputado federal por São Paulo pelo PCdoB, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e presidente da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência.

Notas
(1) Cf. LACERDA, A. C. de. “A nova dinâmica da economia global”. Gazeta Mercantil. 17/MAIO/2001. São Paulo.
(2) Cf. PAULINO, L. A. “Brasil, seus sócios e seus negócios”. Mimeo.
(3) Cf. MOREIRA, A. “Brasil quer acordo têxtil com a União Européia”. Gazeta Mercantil, 01/11/2001, p. A6.
(4) Cf. PAULINO, L. A. “Brasil, seus sócios e seus negócios”. Mimeo.
(5) Cf. MAGALHÃES, A. d’A. “Desindustrialização na agroindústria”. Gazeta Mercantil. 05/09/1991.
(6) STEINBRUCH, B. "Exportar ou morrer! É para valer?". Folha de São Paulo, 30/10/2001, p. B2.
(7) ROSSI, C. “De 35 a 10 mil”. Folha de S. Paulo, 21/10/2001, p. A2.
(8) STEINBRUCH, B. “Exportando grama”. Folha de São Paulo, 11/07/2000, p. B2.
(9) Cf. O Estado de S. Paulo. “Livre comércio só na conversa”. 05/10/2001, p. A3.
(10) Cf. VARGAS, L. “EUA vão ampliar protecionismo ao aço”. 23/10/2001, p. B4.
(11) Cf. LOBATO, P. “Bush taxa importação de aço em 30%”. Gazeta Mercantil, 06/03/2002, p. A4.
(12) STEINBRUCH, B. "Exportar ou morrer! É para valer?". Folha de S. Paulo, 30/10/2001, p. B2.
(13) NASSIF, L. “O protecionismo americano”. Folha de S. Paulo, 05/10/2001, p. B3.
(14) Cf. ROMERO, C. “Subsídios aumentam 400% nos EUA”. Valor, 23/05/2001, p. A12.
(15) ABBOTT, M. L. “OMC observa aumento de subsídios”. Gazeta Mercantil, 24/11/2000, p. A11.
(16) Gazeta Mercantil, “Distender o comércio internacional” . 23/05/2001, p. A2.
(17) Gazeta Mercantil, “Distender o comércio internacional” . 23/05/2001, p. A2.
(18) Cf. CHADE, J. “Relatório do Banco Mundial” sugere revisão da lei de patentes. O Estado de S. Paulo, 01/11/2001, p. A11.
(19) Cf. MOREIRA, A. “Bird sugere acesso mais fácil a produto essencial”. Gazeta Mercantil, 01/11/2001, p. A-6.
(20) PEREIRA, P. “Estudo define áreas de proteção no cenário da ALCA”. Gazeta Mercantil, 24/09/2001, p. A-8.
(21) UNGER, R. M. “Por que o Brasil não tem política exterior?”. Folha de S. Paulo, 12/03/2002, p. A2.

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37