Em fevereiro a publicação de uma proposta de programa para o PSDB às eleições de 2002, encomendada pelo Presidente do partido, deputado José Aníbal, aos professores Luis Carlos Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano, causou impacto na mídia e nos meios políticos e acadêmicos. Sua proposta de retomada imediata do crescimento e, especialmente, sua crítica original e contundente às elevadas taxas de juros mantidas pelo governo FHC, aliada à defesa de basear nosso desenvolvimento na poupança interna e não nos investimentos estrangeiros, causou boa acolhida na sociedade, até nas oposições; e uma reação negativa de Pedro Malan, de sua equipe econômica e de economistas filiados ao seu pensamento. Mas por trás da tese de retomada do desenvolvimento nacional com base nas exportações, financiando o déficit em conta corrente com crescentes saldos comerciais, esconde-se a proposição de uma nova política que, na sua essência, retoma a velha estratégia de esforço exportador que sempre sucede, ciclicamente, em nossa história, as fases de expansão da economia e de endividamento externo. A última estratégia de “esforço exportador” que vivemos teve por causa a crise da dívida de 1982, estendendo-se até a primeira metade dos anos 90, deixando uma marca de estagnação, arruinamento do Estado e crise hiper-inflacionária.

Deixando de lado sua provocadora tese de que as elevadas taxas de juros atuais são desnecessárias, analisaremos neste texto a essência de sua tese, o desenvolvimento tendo por eixo o esforço exportador, para mostrar como tal estratégia se identifica com fases passadas de nossa história e se adapta melhor à nova realidade dos mercados internacionais e aos objetivos de nossas elites. Revela também que a política do Plano Real de buscar no capital externo a principal fonte financiadora de nosso crescimento está morta, tendo sido ultrapassada pelos fatos. Neste sentido, a proposta Bresser-Nakano e a da Fiesp, apresentada um pouco antes, em janeiro, apresentam, não por coincidência, uma matriz política semelhante.

O cerne da proposta Bresser-Nakano reside no diagnóstico de que a retomada e a manutenção de altas taxas de desenvolvimento dependem da redução da chamada vulnerabilidade externa, o que significa redução do papel dos fluxos de capitais externos e a diminuição drástica e rápida do déficit em conta corrente por meio de um superávit comercial (exportações de bens, serviços menos importações). Essa redução do déficit em conta corrente é defendida pelo incremento das exportações (o principal) e pela substituição de importações; sendo esta última alcançada por meio de incentivos à produtividade interna ou pela imposição de barreiras de proteção para o caso de práticas comerciais deletérias. Para Bresser-Nakano a consecução do superávit comercial se apresenta como eixo principal da estratégia de desenvolvimento e não apenas como uma de suas condições.

Essa política de busca de superávits comerciais, sem uma solução concomitante e soberana (mas não necessariamente unilateral) para a redução dos fluxos de renda do passivo externo ou mesmo a redução do estoque da dívida externa, que assume papel central na economia nacional, se assemelha a estratégias conservadoras adotadas no passado, comumente denominadas como de “esforço exportador”. A última dessas estratégias aconteceu por ocasião da crise da dívida de 1982, e estendeu-se do final da década de 70 até o início dos anos 90. Por outro lado, a partir da flexão dada pelo Plano Real com a desvalorização e a adoção do câmbio flutuante em 1999, esse mesmo objetivo passou também a ser perseguido e assumido pelo próprio governo FHC.

O que nos preocupa é que algumas forças oposicionistas aplaudam essa estratégia – e até as incluam em suas próprias propostas – sem uma crítica ao seu papel no passado, inclusive recente, não reconhecendo nela o próprio cerne da proposta conservadora que, por injunções conjunturais externas, deverá prevalecer no futuro imediato da nação. O esforço exportador é a proposta de caminho das classes dominantes para o Brasil, não para resolver nossa “vulnerabilidade externa”, mas para contorná-la e garantir a continuidade de nossa dependência.

O esforço exportador nas propostas Bresser-Nakano e Fiesp

As propostas da Fiesp e de Bresser-Nakano, embora possam ter fontes de inspiração distintas, apresentam uma grande convergência nas estratégias e soluções defendidas. Sendo a da Fiesp mais limitada ao campo macroeconômico, a de Bresser-Nakano, por sua maior profundidade e teor crítico, pode melhor representar o pensamento dessa matriz social.

Para Bresser-Nakano o esforço exportador deve concentrar o esforço principal do próximo governo, viabilizando investimentos produtivos acima de 25% do Produto Interno Bruto e crescimento das exportações de pelo menos 15% ao ano. Estas são as metas hegemônicas da “nova política econômica”. A centralidade do esforço exportador deve-se ao diagnóstico de que a tendência à estagnação dos últimos anos (ou seja, do Plano Real) resulta do aumento desproporcional das importações e do re-direcionamento das exportações, também para o mercado interno, todas as vezes que a economia começa a crescer. Daí, então, a solução do crescimento é o “aumento da nossa capacidade exportadora”.

Para a Fiesp a tarefa central também é a “redução rápida e incisiva do elevado déficit externo em transações correntes, que tornou a economia brasileira altamente vulnerável a choques exógenos”. Segundo a entidade, “a saída – é consenso – reside na obtenção e sustentação de um superávit comercial expressivo ao longo dos próximos anos, o que requer exportações crescendo a pelo menos 10% ao ano, bem como uma sensível moderação da expansão das importações nesta fase”.

A proposta da Fiesp resume a necessidade de apoio do Estado, com a “imprescindibilidade de políticas industrial, e de comércio exterior, coesas e bem articuladas”; não bastando “ao país suas vantagens comparativas, sendo necessário buscar vantagens competitivas, que são as que efetivamente se sustentam”. Para a entidade, deve se estabelecer, dentre outras coisas, a “criação [de] mecanismos de capitalização empresarial e de crédito ao investimento produtivo, com custos de capital internacionalmente competitivos” (grifo nosso) e uma “reforma trabalhista, para remover custos contraproducentes e reestruturar o funding (financiamento) da seguridade social”.

Bresser-Nakano defende a necessidade de redução da taxa de juros, a manutenção do câmbio flutuante, conservando o Real “relativamente desvalorizado”, e a adoção de políticas de reestruturação industrial, de comércio externo e de investimento “para promover exportações e substituição de importações”. Os investimentos devem ser dirigidos prioritariamente “para ampliação da capacidade produtiva voltada para o mercado externo”.

Como se constata, toda a política econômica ficará voltada ao estímulo às exportações e à substituição de importações para diminuir o déficit em conta corrente e “estabilizar a relação dívida externa/PIB”: a taxa de juros será rebaixada (e ainda subsidiada para o exportador, como veremos em seguida); a moeda permanecerá sempre relativamente desvalorizada, o que significa uma taxa de desvalorização sempre acima da soma da inflação interna e a do próprio dólar (ou mesmo o suficiente para conseguir vender mais barato em dólares); o esforço de investimento será dirigido para o setor exportador. Só quando houver uma estabilização da relação dívida externa/PIB, o esforço exportador “poderá ceder espaço para um maior crescimento do consumo (interno), desde que o investimento tenha atingido uma proporção de mais do que 25% do PIB” (p. 14).

Para deixar clara a intenção da proposta Bresser-Nakano quanto à manutenção de uma “moeda relativamente desvalorizada”, e de como ela se vincula à política de esforço exportador da década de 80, a proposta sugere que a taxa de câmbio deverá depreciar-se até o valor prevalecido “entre 1984 e 1993, quando o país realizou substanciais superávits comerciais”, o que equivaleria hoje a uma taxa cambial “entre 2,60 e 3 reais, por dólar”.

A “política de reestruturação industrial” traçada por Bresser-Nakano é, na verdade, apenas uma política de incentivo ao setor exportador. Segundo tal proposta, “em função das restrições externas este programa (de investimento) terá que, de início, vincular o aumento de exportações ao aumento de investimentos”; ou seja, o acesso aos mecanismos de investimento estará vinculado à exportação. E como esse programa de investimento “será executado pelo setor privado, o governo terá que criar incentivos e propiciar acesso a recursos produtivos no território nacional, nas mesmas condições que as empresas que têm acesso ao mercado global” (grifo nosso). Isso significa, necessariamente, subsídio interno de taxa de juros (equalização com as taxas internacionais) e benefícios fiscais (equalização à carga tributária de outros países), além de isenção tarifária das importações necessárias.

Essas isenções e subsídios, por suposto, são custos fiscais a serem assumidos pelos governos e contribuintes. Como ambas as propostas defendem no fundamental a manutenção da atual política fiscal de obtenção de superávits primários, e não havendo, segundo elas, espaço para aumentar a carga tributária, tais custos deverão se dar às expensas do gasto público. Não há também nas propostas preocupação com a estimativa do montante do custo fiscal do “esforço exportador” e com o seu financiamento. Na prática, as duas propostas assumem, em relação a esses custos, um sucedâneo da fórmula farmacêutica do q.s.p: o custo fiscal será a quantidade suficiente para obter-se os resultados almejados, não importando o ônus. Embora se mude a origem do ônus fiscal, que hoje advém da política monetária e cambial, a política fiscal continuará sendo passiva, servindo de variável de ajuste para a política econômica.

Em resumo, é centro das propostas Bresser-Nakano e Fiesp a volta ao esforço exportador; uma política historicamente recorrente no Brasil, sempre sucedendo às fases de expansão do endividamento externo.

A dependência e os ciclos de endividamento e de esforço exportador

As fases de expansão e retração do capitalismo mundial comandam historicamente ciclos de endividamento e de esforço exportador em países dependentes como o Brasil. Diferentemente de países cujas moedas têm curso internacional, o país dependente necessita obter divisas para transacionar com o resto do mundo, sendo esta, aliás, uma característica definidora da situação de dependência de uma nação. Daí por que, para essas economias, a capacidade de gerar ou atrair divisas e a disponibilidade de crédito internacional assumem uma importância tão fundamental no seu desenvolvimento. É a chamada “restrição externa”. (1)

A experiência histórica mostra que a disponibilidade de crédito internacional se comporta em ciclos de expansão – quando a oferta é abundante e os juros baratos – e de retração. A esses ciclos do crédito correspondem, também, ciclos nas economias dependentes. Na experiência brasileira, esses ciclos comportam três fases:

a) uma expansão da dívida (quando a oferta de crédito é abundante e pouco seletiva), que financia um crescente déficit em conta corrente;

b) uma fase de crise de pagamento, quando a expansão do crédito externo chega ao fim, com elevação da taxa de juros e escassez ou seletividade na oferta de crédito, trazendo dificuldades crescentes nas condições de financiamento e refinanciamento; nesta fase cria-se a impossibilidade de manter-se o déficit, dificultando também a manutenção do serviço da dívida; aqui se inicia a pressão pela consecução de superávits comerciais; e

c) a fase anterior pode evoluir para uma crise cambial aguda, quando o crédito externo passa a inexistir ou ficar restrito ao refinanciamento parcial do serviço da dívida; a economia entra em estagnação, mobilizando-se em um grande esforço exportador, a única forma de gerar divisas para honrar os compromissos externos e viabilizar importações essenciais.

O último desses esforços exportadores ocorreu na década de 80, após a fase de expansão do endividamento do “milagre brasileiro”. A política do esforço exportador iniciou-se um pouco antes, em 1979, quando a mudança unilateral da política norte-americana em relação ao crédito internacional praticamente inviabilizou o refinanciamento do passivo externo brasileiro (e latino-americano). O governo Figueiredo, comandado por Delfim Netto, ao mesmo tempo em que jogava as estatais na busca de dólares – por meio de créditos a qualquer custo – para saldar os compromissos externos, redirecionava rapidamente a economia, diminuindo o crescimento econômico e levantando barreiras cambiais e tarifárias às importações ao tempo em que iniciava um grande programa de concessões de benefícios fiscais, creditícios e cambiais aos exportadores (a primeira das grandes desvalorizações cambiais, a “maxidesvalorização”, se deu em dezembro de 1979). O lema do governo na época mudou do “pra frente Brasil” para o “exportar é a solução”.

Essa mudança, infelizmente, apesar de ter invertido o sentido do saldo comercial externo, não conseguiu evitar que a situação cambial e creditícia se deteriorasse rapidamente, sobrevindo o colapso cambial de setembro de 1982, o “setembro negro”.

O grande problema enfrentado pela ditadura, em 1979, foi criar um pacto político que sustentasse o esforço exportador de forma a ter suficiente força para impor seus custos à sociedade. Para sustentar o esforço exportador com subsídios e desvalorização cambial, seria preciso fazer com que a economia parasse de crescer ou pelo menos diminuísse o ritmo dos dez anos anteriores (9% ao ano em média); deprimir a demanda interna (diminuindo as oportunidades de negócios e desempregando); cortar gastos públicos e reduzir o custo do trabalho, principalmente evitando o repasse da desvalorização para os salários e preços internos. Isso não foi possível. A resistência popular foi enorme e as próprias classes dominantes se dividiram. A ditadura caiu e os governos que se seguiram, até o início dos anos 90, não conseguiram reconstruir, com sucesso, a unidade das classes dominantes em torno de um projeto para enfrentar a crise da dívida ou, pelo menos, que impusesse seus custos.

Mas enquanto a sociedade resistia à continuidade do pagamento da dívida externa e setores das classes dominantes se recusavam a pagar sua parte da conta, os setores econômicos hegemônicos (e o setor exportador) continuaram a implementar o esforço exportador. O Estado foi obrigado a estatizar a maior parte da dívida externa privada e, como não foi possível evitar os seguidos reajustes salariais e a iniciativa de parcelas do empresariado de repassar seus custos, a inflação começou a competir com a taxa de desvalorização cambial, enquanto a situação fiscal se deteriorava e a economia se instabilizava, crescendo intermitentemente. Foi esse processo que levou o país à espiral inflacionária, com repetidos episódios hiper-inflacionários, e à destruição do equilíbrio financeiro do Estado.

Um novo consenso das classes dominantes só começou a ser construído após a queda de Collor e se materializou no projeto do Real ao final de 1993 e no pacto político que elegeu Fernando Henrique em 1994. Esse projeto conquistou a maioria do povo, que viu no fim da inflação um ganho imediato e significativo e acreditou na volta da prosperidade perdida do “milagre”. Nessa época, o esforço exportador de 15 anos – embora tendo sido uma tragédia para a nação – tinha cumprido sua missão, mantendo o fluxo de pagamento dos encargos do passivo externo, garantindo as importações mínimas necessárias e estabilizando o estoque da dívida externa.

Em um ambiente de nova expansão da oferta de crédito internacional, agora sob a égide do neoliberalismo, ingressamos em um novo ciclo de endividamento e suposto crescimento: o Plano Real. Ao contrário de exportar, o objetivo passou a ser propiciar acesso à poupança externa, fosse sob a forma de investimentos ou de novos empréstimos. A lógica era aproveitar esses dólares para financiar importações que modernizassem a estrutura produtiva, tornando-a – pela exposição à concorrência internacional – competitiva, revelando assim as atividades que assumiriam nossas exportações futuras (quem se modernizasse poderia enfrentar a competição e exportar) para pagar o serviço da dívida contraída. Advogava-se, também, que desta vez, a oferta de crédito seria estável e crescente, desde – é claro –, que o país seguisse as boas políticas econômicas de crescimento sustentável, austeridade fiscal e mantivesse um ambiente favorável aos investidores externos, à livre iniciativa, além de proporcionar oportunidades de negócios (privatizações).

O novo ciclo logo se revelou na inversão do saldo comercial e no rápido crescimento do déficit em conta corrente e no endividamento externo. Essa mudança nas contas externas foi resultado deliberado, e coerente, da nova estratégia que adequava o projeto nacional ao novo quadro internacional.

Os custos do novo projeto também foram enormes, tanto para o povo como para setores das próprias classes dominantes. Os subsídios à exportação, à agricultura e ao consumo foram retirados, o crédito se manteve caro e escasso para a maioria das empresas, parte das estatais foram vendidas e esquemas de financiamento e favorecimentos regionais foram parcialmente desmantelados, prejudicando as oligarquias e burguesias locais; a agricultura sofreu uma forte erosão de renda, engrossando o contingente dos sem-terra, mas também diminuindo o poder econômico e político dos proprietários rurais. A abertura comercial destruiu muitos negócios e ramos inteiros da indústria foram reduzidos, industriais quebraram ou mudaram de negócio. O Estado perdeu capacidade reguladora e de intervenção direta na demanda agregada. O povo perdeu postos de emprego, direitos trabalhistas, serviços públicos e capacidade de consumo. Em troca, houve estabilidade monetária, acesso a bens importados e tecnológicos; modernizou-se parte da infra-estrutura; várias atividades elevaram sua eficiência e produtividade ao nível internacional; e foram feitas muitas promessas de prosperidade para um futuro próximo.

Sem um consenso das elites – consenso que desarticulou os projetos nacionais alternativos do movimento popular – teria sido impossível submeter as demais reivindicações setoriais ou regionais e impor tantos custos em troca de ganhos reduzidos e tão mal distribuídos.

Mas o final da década de 90 trouxe, ao que parece, o fim da oferta de crédito fácil – que até então era considerada ilimitada – para financiar nossas contas externas, que registram um déficit em conta corrente semelhante ao da década de 70, mas com um fluxo de rendas do capital e um passivo externo que quase duplicaram no decorrer da “fase de expansão” dos anos 90.

O fluxo de investimentos de portfólio e de empréstimos novos praticamente cessou, mantendo-se, deste último, apenas o suficiente para o refinanciamento, tendo sido substituído pelo investimento direto, que cresceu à custa da venda de ativos nacionais. Mesmo esse fluxo de divisas só se sustentou devido ao país ter sido obrigado a manter um acordo com o FMI de monitoramento e auditagem.

A nova realidade foi percebida inclusive pelo governo FHC que, a partir da desvalorização do Real em 1999, fez uma grande flexão na política econômica, priorizando agora – premido pela realidade adversa – não mais a tomada de capitais externos, mas, de novo, a redução do déficit em conta corrente e a estabilização da relação dívida externa/PIB, com base na conquista de superávits comerciais.

Mas, até agora, as medidas tomadas não se mostraram suficientes para dar a essa política uma verdadeira característica de esforço exportador que subordinasse tudo o mais a seu desiderato. O Banco Central teima em seguir uma política cambial e monetária de controle da inflação e não de incentivo permanente às exportações. O crédito do BNDES, que se multiplicou nos últimos anos, é insuficiente. As isenções e subsídios fiscais são insuficientes. É necessário muito mais do Estado para um esforço exportador efetivo. Ainda mais que o déficit externo a ser coberto é gigantesco, e nas atuais circunstâncias de restrição internacional (dificuldade de acesso aos grandes mercados centrais e restrição à elevação de barreiras protetoras contra importações) e no novo quadro regulatório da OMC, o objetivo torna-se particularmente difícil, embora não impossível.

As resistências no seio das próprias elites a um projeto cujas características e reivindicações se assemelham tanto ao agora detestado passado patrimonialista e estatal da década de 80 são muito grandes; até por parte dos setores financeiros hegemônicos. Além do mais, muitos ainda esperam que logo sobrevenha novo ciclo de expansão do crédito internacional, adiando a necessidade de superávits comerciais de grande dimensão. Esta esperança é alimentada pela recente e drástica redução das taxas de juros pelo FED.

Parte dessa esperança advém recentemente de um certo movimento no contexto internacional. Desde o final de 2001 voltou a ocorrer investimento de portfólio na Bovespa e o indicador EMBI+, do J.P. Morgan, que mede o risco de 18 países emergentes, já caiu 25,9% neste primeiro trimestre (o melhor número desde a crise russa), demonstrando o interesse dos investidores nos “países emergentes”. Isso se deve, em boa parte, “ao aumento da liquidez do mercado internacional decorrente do abalo sofrido pelo bônus corporativo após a quebra da Enron”(2), e, é claro, da queda espetacular das taxas norte-americanas no segundo semestre de 2001. O que mostra o papel ativo da oferta de crédito na determinação do risco-país da periferia do sistema: se há dinheiro sobrando e baixo retorno, os países emergentes passam a oferecer menor risco.

Os defensores da proposta Bresser-Nakano (e para a Fiesp) podem argüir ser essa ilusão nefasta e que nada resolverá, pois é possível sustentar que o dinheiro que chega agora é de péssima qualidade, o hot money, e que um breve retorno do movimento de alta da taxa de juros norte-americana nos colocará de novo em dificuldades ainda mais graves. Assim, necessário se faz construir um novo consenso das elites em torno do esforço exportador que unifique as classes dominantes e convença o povo que os novos sacrifícios valem a pena. E o projeto desse novo consenso deverá ser apresentado ao povo agora, no programa das eleições de 2002, para ser executado durante o próximo governo, aprofundando a política já iniciada por FHC.

Construir um novo consenso: o objetivo político do programa conservador

Esse parece ser o principal embate político a se travar durante a campanha eleitoral de 2002. À tentativa de se impor à nação mais um projeto conservador, que pretende resolver a restrição externa apenas para perpetuar a dependência, a oposição deve contrapor um projeto alternativo de caráter nacional, democrático e popular, que enfrente o problema da vulnerabilidade e da restrição externa, construindo um caminho autônomo para a nação brasileira.

O “novo” projeto conservador do esforço exportador precisa ser “vendido” à sociedade – e às próprias classes dominantes – com base em três argumentos: a) conquistada a estabilidade monetária, o déficit externo é o principal problema a superar; b) ele é lógico, natural, é o único caminho a seguir para enfrentar o déficit externo; c) ele também garantirá a volta do crescimento e da prosperidade. Pela inevitabilidade da solução e para usufruir a volta da prosperidade, torna-se necessário que todas as demais aspirações e reivindicações (populares, setoriais ou regionais) sejam subordinadas ao projeto, ou adiadas, e seus custos sejam suportados. O primeiro argumento é verdadeiro; o segundo, uma falácia; e o terceiro duvidoso.

De fato, a restrição externa é o principal problema a ser enfrentado. Sem enfrentá-lo, não será possível assegurar o fluxo adequado e confiável de importações necessárias ao funcionamento da economia, sua expansão e modernização. Mas para as classes dominantes ela é mais do que isso, o funcionamento das contas externas representa sua ligação com o sistema capitalista mundial, o acesso a seus benefícios materiais e culturais, sua garantia de funcionamento e legitimação política. Para elas, o esforço exportador é uma forma de contornar a restrição externa apenas para assegurar a continuidade da dependência.

O segundo argumento -– a inevitabilidade do caminho – é uma falácia porque restringe a solução apenas ao esforço de garantir a capacidade importadora, mantendo, ao mesmo tempo, o atual estoque da dívida externa e os termos em que foi contratada, ou seja, o fluxo de serviço (juros e amortizações). Sem a diminuição do peso do serviço da dívida, bem como da remessa das demais rendas de capital (lucros, dividendos e royalties), não só o esforço exportador (e seu custo) assume proporções maiores, como os laços de dependência e o poder político, desproporcional, dos credores e investidores externos tendem a se manter. A recusa em introduzir no projeto exportador uma significativa diminuição no fluxo de receitas de capital e de amortização da dívida resulta em que, como antes, será a economia brasileira que deverá se adequar às necessidades de seus compromissos externos.

Também devemos ser favoráveis à obtenção de superávits comerciais duradouros. No entanto, devemos distinguir nosso projeto do conservador em duas questões.

Primeiramente, devemos dar maior ênfase na substituição de importações do que na promoção de exportações. A substituição de importações deve se dar não só onde temos condições competitivas imediatas, mas em todos os setores possíveis, visando ao objetivo estratégico de recuperar a diversidade de nossa estrutura produtiva, vocação natural de uma economia continental como a nossa. Isso é possível mesmo com o novo quadro de restrições à proteção tarifária introduzido pela OMC a partir de 1994. E segundo, o enfrentamento da restrição externa deve estar conectado a uma necessária diminuição do serviço da dívida e das remessas das demais rendas de capital, visando a adequar os compromissos externos à capacidade de nossa economia e não o inverso. Se essa diminuição será negociada ou unilateral, apenas a correlação de forças poderá sugerir. Isso não significa a recusa em receber capitais ou não buscar financiamento externo, mas sim em optar por tê-los como fator secundário de nosso desenvolvimento; admitindo, como afirma a proposta de Ciro Gomes, que o capital externo é tão mais útil quanto menos precisarmos dele.

Por fim, o terceiro argumento conservador – de que o esforço exportador trará de volta o crescimento – é duvidoso, porque dependerá do custo que ele imporá à economia e ao Estado. Mesmo que admitamos um novo pacto político que submeta tudo o mais a esse desiderato, nada nos assegura que a restrição ao consumo interno e o inevitável corte nos gastos públicos não voltem a nos impor, como nos últimos anos, uma estagnação econômica, mais escassos e piores serviços públicos, mais exclusão e maior concentração de renda, e até, no limite, a volta de um processo inflacionário originário da desvalorização da moeda.

Esses riscos do projeto serão tanto maiores quanto maior for o déficit externo a cobrir, mais acirrada a concorrência mundial por superávits comerciais e mais difícil o acesso às economias centrais (EUA e União Européia). E, exceto a primeira das variáveis – que pode ser alterada pela renegociação do serviço da dívida – as demais estarão sempre fora de nosso controle.

Ademais, a experiência histórica sempre foi contrária a qualquer otimismo. Todas as vezes que o Brasil se submeteu a projetos de esforço exportador como o da década de 80, em todos eles o país tendeu à estagnação e ao agravamento das condições sociais e até políticas.

Em resumo, é preciso denunciar a imposição de mais um projeto conservador ao país que, sob a
roupagem de advogar um caminho lógico, natural e inatacável, como foi no passado recente a “estabilidade monetária”, tenta manter as condições para perpetuar a velha dependência. Por outro lado, ao adotarmos uma solução para nossa vulnerabilidade e restrição externas, não podemos deixar de nos diferenciar, seja pela ênfase na substituição de importações, seja pela nossa intenção de renegociar os atuais termos dos nossos compromissos externos.

Lecio Morais é economista e assessor da bancada do PCdoB na Câmara Federal.

Notas
(1) Este tema está mais desenvolvido em meu artigo “Dependência e dívida externa: a questão recorrente da moratória”. Revista de Conjuntura, ano II, nº 8 – out/dez 2001, pp. 9-16. Brasília: Conselho Regional de Economia do Distrito Federal.
(2) Ver editorial do jornal Valor, de 18 de março de 2002

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58