Socialismo e forças produtivas na China
A delegação do PCdoB foi recebida pelo membro do Birô Político do Comitê Central do PCCh e presidente da Academia de Ciências Sociais Liu Tianyng, com quem manteve uma proveitosa conversação sobre assuntos de interesse comum. A delegação do PCdoB esteve também com o ministro Dai Bingguo, diretor do Departamento de Relações Internacionais do PCCh, com o vice-ministro Cai Wu e os responsáveis pela América Latina, Li Lianpu e Wang Hua.
A delegação comunista brasileira visitou ainda a escola superior do PCCh, onde manteve conversações com sua direção geral; as províncias de Taiyuang e Xi-Ian; e a cidade de Xangai, último trecho da visita.
Ambas as partes consideram a presença de uma delegação do PCdoB na China como um importante fato no quadro do aprofundamento das relações de amizade e cooperação entre os dois Partidos e um reforço das relações entre os povos brasileiro e chinês.
Sobre a visita e os temas discutidos, o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, falou à equipe de Princípios.
Depois de duas visitas à China no espaço de dois anos, qual seu entendimento sobre a construção do “socialismo com peculiaridades chinesas”?
Renato Rabelo – A China realiza hoje um grande empreendimento transformador do ponto de vista econômico e social, o que tem despertado muito interesse em todo o mundo. O PCCh, artífice desse empreendimento, tem hoje um pensamento estruturado em todos os campos: econômico, político, científico e tecnológico, educacional, cultural, militar e diplomático. Tem estratégia bem definida de estruturação do país até meados deste século.
A China à época da revolução em 1949 era um país atrasado, que contava até mesmo com sobrevivências feudais. Como construir o socialismo nessas condições? Não caberiam receitas nem fórmulas dogmáticas. Nesse contexto ganha força a idéia de que sem um amplo desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, de uma ampla base material para a edificação de uma sociedade mais avançada, seria impossível construir o socialismo naquele país.
Porém, como liberar forças produtivas em um país muito atrasado, aquém até mesmo das condições de um capitalismo de desenvolvimento médio? À certa altura do enfrentamento dos problemas concretos e de avanço no entendimento de questões complexas, desenvolve-se o conceito de “socialismo de mercado” – ou seja de um mercado conduzido pelo poder democrático e popular. Em tal situação vai se desenvolver uma série de componentes econômicos diferenciados. Assim, durante um período relativamente longo, a sociedade vai conviver com diversas formas de propriedade: a estatal, outras formas de propriedade pública socialista, a mista e a capitalista. O objetivo da co-existência dessas distintas maneiras de propriedade é impulsionar o desenvolvimento econômico, elevar a condição de vida da população e incrementar o poderio nacional em uma sociedade ainda relativamente atrasada.
Portanto, o socialismo “com peculiaridades chinesas” procura exatamente enfrentar e buscar saídas para a realidade concreta de seu país e de seu povo. Constitui, assim, o caminho encontrado para o desenvolvimento necessário das forças produtivas e elevação do nível de vida do povo em um país que adveio de relações pré-capitalistas. Marx não previa a conquista do socialismo que não fosse nas sociedades capitalistas mais avançadas e no conjunto delas – logicamente onde as forças produtivas e o proletariado eram mais desenvolvidos. Historicamente tal previsão não se concretizou. Por isso a busca de caminhos específicos para a construção socialista – em sociedades relativamente atrasadas do ponto de vista capitalista – veio se impondo, sobretudo considerando-se as primeiras experiências do século passado.
Em que momento se encontra a construção do socialismo na China?
Renato Rabelo – Ao refletir sobre a característica do desenvolvimento das forças produtivas, a compreensão dos dirigentes chineses é de que a atual etapa é ainda a do socialismo primário – que compreende o atual empreendimento e que envolve diversas formas de propriedade, tendo como centro do processo a propriedade estatal socialista e as outras formas de propriedade pública. Esta etapa deve levar em torno de cem anos, na previsão dos condutores do planejamento socialista com peculiaridade chinesa, considerados a partir da proclamação da República Popular da China em 1949 – há, portanto, ainda mais 50 anos para se completar a atual fase do socialismo primário.
Em que medida a China tem alcançado êxitos na luta pela modernização do país?
Renato Rabelo – O que chama a atenção é que o atual caminho adotado, em um país que era muito atrasado, tem conseguido grandes êxitos no esforço pelo desenvolvimento e modernização do país.
O fato mais importante a delinear é que a modernização se faz de forma constante e acelerada. Dentre os países do mundo a China é o que se desenvolve de forma mais veloz: a média do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) chinês na década de 1990 foi da ordem de 9% ao ano; e o país continuou se desenvolvendo (num nível de mais de 7% do PIB/ano) mesmo durante a recente fase de recessão mundial e de dificuldades da economia asiática.
Esse desenvolvimento tem propiciado mudanças importantes no país. Há dois anos – quando estivemos lá – sentimos muita diferença ao visitarmos quatro cidades. Em duas mais importantes (Pequim e Xangai) já se observa uma nova leva de grandes construções e empreendimentos, e um desenvolvimento tecnológico bastante acentuado. Nas cidades do interior e da região central da China, que era a mais atrasada, visitamos duas cidades (em Taiyuang e Xi-Ian) em que esse desenvolvimento se dá também com grande ímpeto, inclusive com a formação de zonas para a pesquisa e produção de produtos de alta tecnologia.
O processo de modernização do país tem se dado de forma acelerada em especial se considerarmos o desenvolvimento científico e tecnológico. A China possui hoje 56 zonas vinculadas ao desenvolvimento de alta tecnologia e já conseguiu significante progresso no desenvolvimento de softwares, da microeletrônica, da biotecnologia e de novos materiais. E houve um grande incremento do poder de compra das massas que vivem no campo (a maioria do povo), – antes da década de 80, ainda bastante limitado.
A China atravessa, portanto, um período de grande modernização.
E quanto à elevação do bem-estar do povo e à defesa e promoção dos direitos humanos?
Renato Rabelo – O alcance do desenvolvimento econômico acelerado em mais de vinte anos consecutivos produziu também uma elevação ampla do bem-estar do povo. De uma situação difícil – feudal como já nos referimos –, os chineses já resolveram o problema da alimentação e do vestuário. Isso é notável se levarmos em conta que é para toda a população – o que compreende mais de 1,3 bilhão de pessoas. Não há camadas passando fome nesse país. Os chineses ainda pretendem nos próximos vinte anos alcançar a situação de “uma vida relativamente acomodada” para todo o seu povo, ou seja, garantir um estado satisfatório de bem-estar e condições de vida de nível médio para todos os habitantes do país.
Vimos na China uma constante preocupação dos dirigentes do Estado e do Partido de esforço e procura por uma sintonia próxima com os trabalhadores e o povo. Há um lema máximo do Partido Comunista Chinês – o centro dirigente desse grande empreendimento – que é servir ao povo. A compreensão deles é a de que o Partido Comunista e o governo não podem estar separados do povo e dos trabalhadores. O êxito alcançado até aqui procura responder a essa preocupação central e há um grande apoio da população chinesa ao caminho adotado e às formas encontradas para o desenvolvimento.
Agora, no 1º de Maio, em que todo o povo goza de um feriado de sete dias, vimos os preparativos de todos para realizar viagens e passeios. Para isso, os trens têm suas composições triplicadas – todas as províncias chinesas estão interligadas por via ferroviária (exceto o Tibete, mas já está em andamento a construção de uma grande ferrovia, que contará com muitos túneis para superar a região montanhosa). Além desse feriado prolongado, os chineses têm mais dois feriados de sete dias no ano – no 1º de Outubro (data da proclamação da Republica Popular) e na data da primavera.
Há também em curso no país uma política de promoção dos direitos humanos. A imprensa capitalista – em especial a serviço dos interesses geopolíticos norte-americanos – tem procurado deturpar, mas na realidade a China procura considerar os direitos universais básicos de toda a população chinesa. Desenvolve um crescente esforço nesse sentido e, para exemplificar, estende direitos humanos básicos como saúde e educação gratuitamente para 1,3 bilhão de pessoas e moradias a preços bastante acessíveis, compatíveis com a média salarial dos trabalhadores.
Ao atrair o capital estrangeiro em larga escala, e ao fomentar a “economia socialista de mercado”, não surgem também contradições sócio-econômicas e a independência do país não se torna vulnerável?
Renato Rabelo – É evidente que esse tipo de desenvolvimento numa economia plural pode gerar desigualdade social. Por se constituir num caminho novo, indagações e dúvidas continuarão existindo. Mas isso é considerado permanentemente pelos dirigentes chineses – que estão atentos aos fenômenos decorrentes.
Aqui surgem questões importantes a serem entendidas para se compreender a política desenvolvida por eles: 1) por onde estivemos em nossa visita, tanto em empresas de médio quanto nas de grande porte, a diferença salarial não passa de quatro vezes (entre o maior e o menor salário); 2) entre a ação individual e a coletiva a diretriz é que deva prevalecer a ação coletiva; 3) entre os diversos componentes econômicos, o fator dirigente é o das empresas estatais socialistas; 4) e existe um planejamento aplicado há mais de dez anos tendo em vista vencer as desigualdades regionais – as regiões mais avançadas contribuem para o desenvolvimento das mais atrasadas, e o governo realiza grandes obras de estrutura. Tais fatores tentam impedir a elevação da desigualdade social e buscam uma sincronização regional mais harmônica com o desenvolvimento em curso, tendo em vista a construção constante da superação da fase primária e transição para a fase plena do socialismo.
Na questão da soberania e independência do país os dirigentes chineses são muito ciosos. O capital estrangeiro tem um papel complementar no projeto econômico de desenvolvimento daquele grande país. A atuação do capital estrangeiro se faz dentro de determinadas condições estabelecidas e áreas demarcadas por um planejamento antecipado (Zonas Econômicas Especiais). Deve-se mencionar que 70% desse capital de fora provêm de chineses de Taiwan, Hong Kong e Macau. Com isso procura-se aproveitar a contribuição dessa força – que tenderia a ser contrária aos interesses nacionais – para aproximar o desenvolvimento tecnológico do país com os centros mais avançados; para a atuação em certas áreas de produção que podem servir à exportação, facilitando o superávit comercial da China com o exterior, o crescimento de suas reservas internacionais e a estabilidade de sua moeda (a China já possui a segunda maior reserva monetária do mundo: 180 bilhões de dólares). A prova do seu êxito é que mesmo diante da crise asiática, que atingiu todos os países desse continente, a moeda chinesa manteve o seu valor constante.
Portanto o capital estrangeiro se subordina ao projeto de desenvolvimento da China – e não o contrário. Essa é uma orientação básica do desenvolvimento chinês.
O regime político sofre abalos, instabilidade ou se encontra sob alguma ameaça devido às mudanças econômicas?
Renato Rabelo – Nesta segunda viagem que fizemos à China, constatamos ainda mais a estabilidade do regime político dirigido pelo Partido Comunista – e que conta com o apoio de outros agrupamentos políticos desde 1949.
Existe um grande apoio da população às medidas econômicas que vêm sendo colocadas em desenvolvimento. Os chineses procuram desenvolver a superestrutura política e se esforçam para aprimorar a legalidade socialista, o Estado de direito, e dar conformação às instituições políticas – garantindo a elas um respaldo jurídico adequado à ampliação da democracia socialista. Isso não quer dizer que irão adotar as formas clássicas liberal-burguesas. Eles fazem esforços para a democratização do país, aprimorando o sistema das assembléias populares e aperfeiçoando as instituições surgidas desde a luta revolucionária – como a Conferencia Consultiva Política do Povo Chinês, que congrega as diversas tendências políticas e étnicas existentes na China.
Há, portanto, uma consolidação do regime político dirigido pelo PCCh presente em todos os setores da atividade do país. Constatamos também um persistente esforço para modernizar o Partido Comunista, colocando-o à altura dos novos desafios na edificação desse grande empreendimento.
Como grande nação socialista qual o papel geopolítico da China no mundo contemporâneo e como se conduz na política externa – quando são conhecidos seus antagonismos de natureza política e ideológica com o mundo capitalista e em particular com o imperialismo norte-americano?
Renato Rabelo – A china desempenha um crescente papel geopolítico no mundo atual. O país desenvolve uma política externa independente e que – evidentemente – procura considerar com altivez os seus interesses. Ao mesmo tempo, defende uma política de não interferência nos assuntos de outros países e luta por um mundo de distensão e paz como questão fundamental para o desenvolvimento de todos os países.
A China, no atual contexto, se esforça para construir uma nova ordem – um mundo multipolar. Com seu crescimento econômico e seu papel cada vez mais significativo no mundo, a China vai se tornando um pólo importante na conformação desse mundo multipolar.
Com a manutenção das instituições políticas democrático-populares, a direção do Partido Comunista e a persistência dos objetivos de construção de uma sociedade socialista, há – evidentemente – uma estratégia antagônica à do imperialismo norte-americano. Mas, diante da atual correlação de forças existente, a luta da China é por neutralizar as investidas do imperialismo estadunidense. A política chinesa procura demonstrar que a ação intervencionista e belicista do imperialismo norte-americano gera uma resistência crescente entre os países e povos; e também que esse imperialismo vai – em certa medida – se tornando impotente para colocar em prática e sustentar os seus objetivos hegemonistas e de força. Ou seja, a própria base econômica e tecnológica do imperialismo não vai sendo suficiente para que este possa colocar em prática seus intentos de dominação sobre todo o mundo.
Que expectativas existem diante da próxima realização do 16º Congresso do Partido Comunista da China?
Renato Rabelo – O Congresso do PCCh é o primeiro deste partido a ser realizado no novo século e há uma grande expectativa envolvendo os seus resultados políticos e teóricos.
Os comunistas chineses esperam que o 16º Congresso dê continuidade ao desenvolvimento da teoria de construção do socialismo nas condições concretas da China; que resolva problemas da construção do Partido – sobretudo ao enfrentar questões relacionadas com a função do Partido no poder de uma grande nação; e que defina o papel da China para os próximos vinte anos no cenário mundial. Além disso, espera-se uma grande renovação na direção do Partido, com a substituição do seu dirigente principal, Jiang Zemin. O Partido Comunista da China estabeleceu limites de mandatos e idade para os seus dirigentes em todos os níveis.
Portanto, trata-se de um Congresso revestido de enorme importância para a China hoje – e também para o mundo, uma vez que este país empreende um grande projeto que contribui para o avanço civilizacional de toda a humanidade.
Depois dos entendimentos mantidos entre as direções dos dois Partidos, em que nível se encontram as relações entre o PCCh e o PCdoB – como essas relações podem contribuir para o desenvolvimento dos laços de cooperação e amizade entre a China e o Brasil e seus respectivos povos?
Renato Rabelo – Esta última viagem realizada à China contribuiu para elevar as relações entre os dois Partidos a um nível ainda mais avançado. Tais relações são, hoje, bastante próximas, com permanente entendimento e troca de opiniões. Há até mesmo a possibilidade da realização de Seminários entre os dois Partidos visando ao estudo e à pesquisa em conjunto sobre temas candentes. E a busca de meios e esforços para aprofundar a cooperação e a amizade entre a China e o Brasil.
Por isso consideramos que hoje a etapa atual de relação entre esses dois Partidos já é de grande aproximação, e isso pode contribuir para o desenvolvimento dos laços de cooperação e amizade entre os nossos dois povos, os quais têm interesses comuns no desenvolvimento pacífico e harmônico de toda a humanidade.
EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11