Victor Marie Hugo era um jovem contestador que no período de 1828 a 1834 adorava tiradas antiburguesas. Mas ganhou a amizade da duquesa e do duque de Orléans e aproximou-se das posições políticas conservadoras e dos interesses da corte. Louis Philippe fê-lo par de França em 1845. Todavia, os acontecimentos de 1848 (revolução do proletariado parisiense) – e até 1851 –, obrigaram-no a uma séria reflexão. Sentiu-se torturado pela grande questão da miséria. E concluiu que à bancada parlamentar direitista, em que se incluía, apenas interessava o reforço das medidas policiais e repressivas em geral, contra os trabalhadores e os pobres.

Em 9 de janeiro de 1852, por ter se colocado a favor da resistência ao golpe de Estado bonapartista, o seu nome foi feito entrar no rol dos proscritos. A ditadura forçou-o ao exílio enquanto Louis Napoleão Bonaparte (Napoleão III) estivesse no poder. Este fora proclamado imperador dos franceses. Victor Hugo, assim, conheceu 18 anos de vida no exílio (ilhas de Jersey e Guernesey, no Canal da Mancha). Mas regressou a Paris quando a República foi re-implantada e o império bonapartista conheceu o colapso.

Da Comuna de Paris (18/3/1871) disse ter sido “uma boa coisa, mas mal feita”, posto que as suas reservas quanto ao movimento operário e de libertação dos trabalhadores não seriam facilmente feitas desaparecer. Victor Hugo nunca se afastaria, totalmente, dos condicionantes nascidos com a sua origem de classe. No entanto, durante a semana sangrenta em que a Comuna foi destruída e os seus defensores assassinados em circunstâncias terríveis, mostrou-se à altura da sua própria grandeza dando a cara a favor dos “communards”. Quando o chamado “partido da ordem”, chefiado por Thiers e apoiado pelos alemães, iniciou a semana sangrenta (de 21 a 28 de maio de 1871) que enlutou a França democrática e manchou o nome do país, Victor Hugo deu concretas provas do seu indesmentível humanismo. Colocou a sua casa de Bruxelas à disposição de refugiados “communards” vencidos. Por isso, foi expulso da cidade pelo governo belga. Então, o ódio da imprensa reacionária francesa contra o homem de coração que Victor Hugo era, atingiu a mais inadmissível expressão.

A terceira República, surgida após a Comuna com Thiers na chefia do Executivo, permitiu-lhe o regresso a Paris, mas Victor Hugo – ainda que dele não se pudesse dizer que tivesse abraçado a causa do socialismo – não era já o homem que havia encarado com passividade a chamada ordem das coisas segundo os interesses estabelecidos. Ficaria na História da Literatura como um dos seus mais raros vultos, como o mestre do romantismo francês, aquele que amou os simples, que os compreendeu e sempre defendeu. Victor Hugo, assim, abraçou as causas do homem angustiado do seu tempo e fez campanhas vibrantes tanto na literatura como no campo parlamentar e fora dele – essas causas foram, principalmente, as da educação e da melhoria das condições que se exigiam ao sexo feminino, da liberdade de expressão, da República laica, tolerante e solidária; simultaneamente, manifestou-se sem vacilações contra a exploração das crianças, contra a arma do exílio político e pela abolição da pena de morte.

Falava, freqüentemente, dos direitos da criança e dos sofrimentos das mulheres. As suas lutas, em grande parte, são as nossas, de agora, quando o século XXI já está em marcha – o que demonstra o quanto o progresso social tem sido lento e sendo atrasado constantemente pelos interesses que continuam a tirar benefícios da exploração.

História

Um homem como Victor Hugo não poderia escrever a sua obra ou sequer viver se não estivesse de olhos bem abertos sobre a cena histórica do seu tempo. O panfleto “Napoléon, le petit”, para além de acentuar o caráter minúsculo do visado Napoleão III, engrandecia a memória do outro, o único Napoleão que, na realidade, existiu e cuja sombra se espalhava, ainda, sobre a realidade francesa da época do autor de O Homem que ri.

Ao descrever a batalha de Waterloo em algumas dezenas das suas mais memoráveis páginas (Os Miseráveis), Victor Hugo demonstra, magistralmente, a sua compreensão dos fatos que decidiram aquele histórico conflito, o que nem sempre tem acontecido com alguns dos mais reputados historiadores.

Waterloo, com efeito, aparece registrada na História como a grande vitória da Inglaterra cujo exército era comandado por Sir Arthur Wellesley (duque de Wellington), o vencedor da Guerra Peninsular, que, em grande parte e nos seus mais decisivos momentos, fora travada no empapado (de sangue e lágrimas) solo português. Mas, a verdade é que às seis horas da tarde, Wellington olhava o relógio, ansiosamente, e admitia ter a batalha perdida. Do outro lado, Napoleão considerava que a situação parecia mostrar-se-lhe favorável. Mas o destino traria Blücher àquelas paragens já no cair da tarde.

Evidentemente, sempre havíamos gostado de sublinhar que os ingleses venceram em Waterloo. Até o dia em que lemos Os Miseráveis e nos vimos forçados a aceitar a descrição inesquecível que Victor Hugo nos deixou. Não foi por acaso que os ingleses ofereceram a Blücher uma das mais espetaculares recepções jamais vista em Londres. A verdade é que, ao dar-lhes a vitória em Waterloo, o general prussiano entregou-lhes o domínio do mundo.

Os Miseráveis: mensagem humanista

Em toda a obra literária de Victor Marie Hugo há uma mensagem de fundo humano, talvez única. No romance Os Miseráveis (começado a ser redigido em 1845 e só terminado em 1861; mas publicado logo no ano seguinte) o escritor eleva-se a um patamar raras vezes atingido por qualquer dos principais mestres das letras universais. Victor Hugo conduz-nos, como leitores, à situação social chocante da França que emergiu depois da derrota de Napoleão em Waterloo. Choca-nos, na sua descrição dos acontecimentos que expõem todas as facetas da alma humana, quando o conflito a incendeia. Em Os Miseráveis, o conflito é permanente.

Pegar neste romance é tirar um curso das mil facetas do sentir dos homens, é aprender a conhecê-los, na sua cobardia e na sua grandeza, na sua capacidade para sofrer, mas também para ferir, na sua ambição, na sua generosidade e na sua fraqueza perante valores materiais, na sua ignorância, na sua quase impossibilidade de fugir ao chamamento individualista que o martiriza desde o princípio da grande aventura no mundo.

O cadastrado Jean Valjean possuía qualidades que ele próprio desconhecia. Mas à saída do presídio ainda não passava de uma fera que o sistema prisional esperava que regressasse com novos crimes às costas. Entretanto, o bispo que recusa denunciá-lo pelo furto de dois candelabros de prata e acaba por oferecê-los para afugentar esforços policiais, surge-lhe no caminho como homem de Deus, dá-lhe uma lição de solidariedade e trata-o como filho. Logo aqui, Victor Hugo demonstra o seu apego ao que tem como grandes valores da alma humana – essencialmente, quando ela se reduz perante a superioridade de um gesto generoso e desinteressado.

Valjean, diminuído e engrandecido pela ação do bispo que o salvou, partiu para novas paragens onde acabaria por encontrar-se na situação de homem industrial que, evidentemente, não podia deixar de explorar os operários que o serviam. Também aqui, Victor Hugo foge ao conflito de classes e, fiel a si próprio, dá-nos a imagem bondosa e solidária de um bom patrão que, tendo sofrido, sabia avaliar as dores que vinham de fora, mas ignorava aquelas que se criavam no interior da sua própria fábrica. Porém, desolado perante o drama de uma das suas operárias que recorre à prostituição para tentar defender e sustentar a criança de que é mãe (Cosette), decide salvar essa criança, mas já não vai a tempo de impedir a morte da mãe.

A justiça, entretanto, persegue-o. Javert, o inflexível e persistente agente policial, desconfia daquele que é, agora, “Maire” da autarquia local. Para este, entretanto, tudo o que importa é a salvação de Cosette que a mãe confiara à guarda do casal Thenardier. Estes são simplesmente escroques que escravizam a pequenina e a forçam a trabalhos impróprios para a sua tenra idade. Possuem relíquias do campo de batalha de Waterloo onde se apropriaram de despojos e não hesitaram em saquear os bolsos dos soldados mortos. Apercebendo-se da “qualidade” dos Thenardier, o “Maire” resgata Cosette contra uma soma importante, mas cria novos inimigos. Decide, então, aproveitando a considerável fortuna que já possui, reentrar em fuga e iludir Javert que nunca deixa de persegui-lo.

Para Victor Hugo, o homem que decide fazer o bem quando outros não recuam no intuito de fazer-lhe mal, tem de ser uma figura poderosa. O verdadeiro Jean Valjean nunca seria capaz de arrostar com as trágicas situações que lhe surgiram se, efetivamente, não possuísse riqueza. Aqui, Victor Hugo mostra-se cativo da ambição que vive um pouco em todos nós – sermos poderosos para defendermos os que não podem fazê-lo por si próprios. Para criar Cosette e dela fazer uma “menina”, o ex-forçado recorre a novas identidades e a meios de fortuna sempre abundantes.

Mas Cosette descobriria o amor em Marius, um jovem oriundo de famílias aristocráticas que, entretanto, não era estranho aos meios revolucionários parisienses. Ao descobrir que o amor de Cosette não podia ser combatido, Valjean, apesar da presença de Javert, vai retirar Marius das barricadas e transporta-o, bastante ferido, através dos esgotos de Paris conseguindo, a grande custo, iludir o sempre inflexível agente. É nestas circunstâncias que surge a figura do pequeno parisiense, Gavroche, figura iniludível de rapaz das ruas que está com a revolução e por ela morre com um sorriso nos lábios. Na descrição de Gavroche e das condições em que existe, Victor Hugo demonstra com toda clareza e com rara imponência o seu amor à humanidade e à cidade de Paris.

Evidentemente, Javert acaba por convencer-se de que toda a sua perseguição de décadas não passa de um crime contra “um homem de Deus” e suicida-se. Jean Valjean morre com Marius e Cosette junto a si. Mas os candelabros sobrevivem a todo o drama.

Este artigo foi publicado originalmente no jornal Avante!, do Partido Comunista Português (PCP).

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 73, 74, 75