O destaque à importância da questão nacional para a luta por um Brasil progressista está ligado, antes de tudo à visão marxista, teórica e histórica, do desenvolvimento da humanidade nos últimos cem anos. Foi na passagem do século XIX ao século XX que o mundo assistiu ao advento do imperialismo que surgia como uma nova etapa do desenvolvimento do capitalismo. Isto transformou profundamente a relação entre as nações, tanto entre os países de capitalismo desenvolvido quanto entre estes e os países menos desenvolvidos.

O gigantesco nível de acumulação capitalista alcançado em alguns países, quando os monopólios dominaram a livre concorrência e quando os bancos dominaram a indústria, colocou a necessidade de que o capital transpusesse as fronteiras nacionais em busca de outras plagas onde se valorizasse. A possibilidade de que isto acontecesse estava posta pela existência de uma série de países que poderiam receber os chamados capitais sobrantes, incorporados à circulação do capitalismo mundial e com as condições para que os capitais neles investidos ali se valorizassem.

Lênin, o grande teórico do imperialismo, notadamente das novas condições políticas colocadas à luta do proletariado, analisou em muitas obras as novas bases do relacionamento entre as nações, procurando destacar as particularidades em relação ao período anterior, do capitalismo da concorrência. Em suas Notas críticas sobre o problema nacional, por exemplo, escreveu: “O capitalismo em desenvolvimento conhece duas tendências históricas no problema nacional. A primeira é o despertar da vida nacional e dos movimentos nacionais, a luta contra toda opressão nacional e a criação dos Estados nacionais. A segunda é o desenvolvimento e a multiplicação das relações de todo o tipo entre as nações, a derrubada das barreiras nacionais, a formação da unidade internacional do capital, da vida econômica em geral, da política, da ciência etc. Ambas as tendências são uma lei universal do capitalismo. A primeira predomina nos albores do desenvolvimento do capitalismo; a segunda é característica do capitalismo maduro(…)”1, que, nas relações entre Estados, dava origem a um sistema geral de “elos da cadeia de operações do capital financeiro mundial”.2

Lênin chamava a atenção para que “o capital financeiro e a correspondente política internacional, que se traduz na lutas das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, originam abundantes formas transitórias de dependência estatal. Para esta época são típicos não só os dois grupos fundamentais de países – os que possuem colônias e as colônias –, mas também as formas variadas de países dependentes que, de um ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática.”3

O que Lênin constatava com propriedade é que o mundo encontrava-se diante de uma nova situação histórica na qual o problema nacional adquiria uma nova dimensão e um novo conteúdo. Dizia que: “O imperialismo significa que o capital ultrapassou o marco dos Estados nacionais, que a opressão nacional se amplia e se agrava sobre uma nova base histórica. Disto se deduz exatamente… que devemos vincular a luta revolucionária pelo socialismo com um programa revolucionário quanto ao problema nacional”4. Por isso, a luta pela soberania não se confunde com o nacionalismo burguês e tem caráter internacionalista.

A nova ordem

Passaram-se quase 100 anos da formulação destas idéias. O mundo assistiu a duas grandes guerras mundiais e crises econômicas de tal monta que pareciam não ter saídas; o socialismo começou a ser construído em uma série de países e a bipolaridade funcionava como uma espécie de equilíbrio de forças. Em meio a contradições, turbulências, atrasos relativos e desigualdades o capitalismo continuou sua marcha. Após a II Guerra Mundial, sob plena hegemonia norte-americana no mundo capitalista, a exportação de capitais ganhou um novo impulso – sob a forma de investimentos diretos ou de empréstimos, entre os países de capitalismo desenvolvido ou entre estes e os países em desenvolvimento – o que, sem dúvida acentuou a tendência apontada por Lênin de que: “A exportação de capitais repercute-se no desenvolvimento do capitalismo dentro dos países em que são investidos, acelerando-o extraordinariamente.”5 Isto, aliado a fatores internos, sobretudo à ação dos Estados nacionais, já em um quadro de certa acumulação interna de capitais, fez com que em algumas partes da Ásia e da América Latina alguns países começassem a se destacar, alcançando um nível médio de desenvolvimento capitalista e formando algo como um grupo especial entre os países dependentes. Com uma nova divisão internacional do trabalho a reprodução ampliada do capital torna-se ainda mais internacionalizada e complexa, de tal forma que instituições multilaterais como o FMI, Bird e GATT (agora OMC) passam a jogar papel fundamental para gerir e preservar os interesses da oligarquia financeira internacional nas relações entre as nações.

Com a globalização na virada do século XX para o século XXI, coincidente com a débâcle do socialismo, tudo parecia dar razão aos ideólogos que vendiam a idéia de um mundo mais integrado, mais unido, onde haveria surgido uma nova relação entre os países ricos e os demais cujo conteúdo estaria mais na complementariedade do que na dependência. É interessante porém, a opinião de Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge publicada em livro 6 sobre o qual o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) divulgou um comentário intitulado Como os ricos tornaram-se ricos? Chang passa em revista as experiências dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Suécia e Japão, este último de industrialização tardia em comparação com os Estados Unidos e países da Europa Continental. “Até o final do século XIX e início do século XX, quando se tornaram economias desenvolvidas, a ampla maioria dos países desenvolvidos usou de forma ativa políticas comerciais, industriais e tecnológicas – como proteção da indústria nascente, subsídios às exportações e controle de transferência de conhecimento –, ou seja, práticas hoje consideradas “más” e, portanto, devem ser evitadas, quando não formalmente proibidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).” 7 Os respectivos Estados destes países é que tiveram o papel central na aplicação destas políticas. No caso da Alemanha um papel direto na promoção da industrialização, nos EUA com a proteção tarifária e assim por diante. Não seriam o que são hoje se houvessem adotado estas políticas no passado. Após terem se enriquecido e exatamente pela necessidade de manter este status todos eles se tornaram e são até hoje defensores do livre comércio, da liberalização financeira, das marcas, patentes e direito de propriedade intelectual e, sobre esta base estabelecem relações com os demais países.

Quanto às formas modernas das relações de dependência as coisas sofisticaram-se, mas não mudaram muito. Hélio Jaguaribe, por exemplo, referindo-se especificamente ao domínio norte-americano diz: “O campo de predominância dos Estados Unidos se caracteriza pelo fato de compreender um amplo conjunto de países que, embora conservando sua soberania formal – hino, bandeira, exércitos de parada, eleição de seus dirigentes, quando democráticos – estão submetidos a um conjunto de poderosos constrangimentos – econômicos, financeiros, tecnológicos, culturais e políticos – de tal sorte que seus dirigentes são compelidos… a seguir uma orientação compatível com a que lhes prescrevam os principais interesses americanos. Estes, no topo do processo, se exprimem por injunções do governo americano.

Correntemente, exprimem os interesses do capital financeiro e das multinacionais, exercidos no âmbito do processo de globalização mas, efetiva e predominantemente, representando os interesses corporativos americanos (…) [que] podem ser reduzidos a duas exigências: 1) preservação, por parte dos EUA, de seu monopólio atômico e incontrastável predomínio militar e 2) livre acesso das empresas americanas aos mercados (…) Como recurso extremo, os Estados Unidos se reservam, unilateralmente, a faculdade de intervir militarmente onde lhes pareça necessário (…) “ 8

Em síntese, à globalização (quando a superacumulação de capitais elevou a um novo patamar a concentração dos monopólios, a financeirização e a exportação de capitais 9) correspondem o neoliberalismo enquanto estratégia política, econômica e diplomática, a reafirmação da hegemonia norte-americana – única superpotência – e a derrota estratégica do socialismo. Um mundo mais dividido, mais desigual, mais antagônico em que as relações de dominação e dependência entre nações se aprofundam não só pela via econômica e diplomática mas, cada vez mais freqüentemente pela guerra. Neste contexto o problema nacional se coloca ainda mais fortemente com o sentido estratégico pela formação de uma grande frente em defesa da soberania das nações, por um mundo contra-hegemônico, multipolar.

Era Vargas

O capitalismo brasileiro deu seus passos iniciais a partir da última década do século XIX, baseado na acumulação cafeeira, no grande comércio do café com o exterior (dominado pelo capital estrangeiro), expandiu-se para a indústria têxtil e alimentícia, localizada sobretudo em São Paulo. Um processo fundamental de acumulação interna no qual o capital estrangeiro, inglês principalmente, participou com empréstimos e investimentos. A força de trabalho necessária veio dos quase cinco milhões de imigrantes europeus que para cá se deslocaram das duas últimas décadas do século XIX às três primeiras do século XX.10

A partir de 1930 inicia-se a “era Vargas”, que vai até meados da década de 80 cuja resultante é a revolução burguesa brasileira, provavelmente a de maior alcance, entre os países periféricos. O Brasil passou por um período de industrialização restringida entre 1933 e 195511 que completou-se com a industrialização pesada de bens de produção iniciada no segundo governo de Vargas e terminada no governo Geisel, 30 anos depois, chegando ao patamar que J. M. Cardoso de Mello chama de “autodeterminação do capital”. Ao lado disto diversificou-se a indústria leve, os produtos industriais passaram a ter o maior peso na pauta de exportações (hoje se destacam inclusive os aviões). O capitalismo penetrou e transformou o campo de uma situação de monocultura para a grande e diversificada produção agrícola e pecuária, com alta produtividade à base da larga utilização de máquinas, implementos e outros insumos agrícolas. Agricultura e serviços industrializaram-se. Foi o que constituiu a base da formação das grandes cidades, da diminuição relativa da população rural, do grande crescimento do número e da influência política do proletariado urbano e rural e à passagem de uma economia agrário-exportadora para uma economia industrial diversificada. As taxas médias de crescimento do PIB brasileiro foram as maiores do mundo durante praticamente os três primeiros quartos do século XX, (Gráfico 1). O país chegou a ter o 10º maior parque industrial e a ser a 8ª maior economia do mundo podendo ser caracterizado como um país de capitalismo medianamente e tardiamente desenvolvido, dependente. O Estado nacional, fortalecido a partir do pacto federativo que subordinou as oligarquias regionais, jogou papel central em todo este processo12, participando diretamente nos empreendimentos de mineração e siderurgia pesada, na infra-estrutura – petróleo, energia hidráulica, portos, rodovias, telecomunicações –, organizando um sistema financeiro estatal para dar suporte a estas atividades e às operações de financiamento da indústria (BNDES, BB, bancos regionais e estaduais), criando agências de fomento e instituições de pesquisa científica voltadas ao desenvolvimento, elaborando a política econômica e os planos econômicos de desenvolvimento.

Formando o tripé ao lado do Estado e do capital privado nacional, o capital estrangeiro esteve presente em todo o período através de investimentos diretos, isolados ou associados, e empréstimos para o financiamento do governo, bancos e empresas, muitas destas filiais de companhias transnacionais. A dívida externa ao longo do século XX mostrou sempre uma tendência ao crescimento, em ciclos e em saltos em alguns momentos. Teve que ser reestruturada várias vezes diante das dificuldades do país.13 O investimento direto durante a primeira metade do século XX esteve voltado para a infraestrutura mas, depois da metade dos anos 50 penetrou crescentemente na indústria de transformação na qual se destaca pela importância econômica o setor automotivo.

Ao fim do processo a burguesia industrial14 é a força política dominante, hegemônica no Estado nacional que conduziu este processo em aliança e também com alguns atritos com o capital e governos externos. Como constata Conceição Tavares: “Evidentemente, no período de 1937 até 1954, a associação é menos visível e o perfil de dominação estrangeira mais atenuado do que a partir de 1956/57.”15

Na contraposição entre os EUA e a URSS que marcou a cena internacional durante boa parte do século XX as classes dominantes brasileiras se alinharam quase que permanentemente, política e diplomaticamente, ao bloco ocidental hegemonizado pelos norte-americanos. A estratégia de defesa e segurança nacionais das Forças Armadas foi muito influenciada por essa dicotomia neste período. O governo dos EUA teve ingerência destacada nos acontecimentos que levaram ao suicídio de Vargas em 1954, assim como na deflagração do golpe militar de 1964.

Algumas lições interessantes

As lutas e posturas políticas entre as classes e seus partidos, assim como as mediações entre a política e a economia durante a “era Vargas” foram variadas e originais. Prevaleceram durante décadas formas de dominação ditatoriais, onde os comunistas e as organizações populares foram profundamente atingidos. As transformações econômicas mais importantes só foram acontecer no segundo governo de Vargas, 20 anos após a revolução de 30. Mas vale a pena fechar o foco sobre o início da década de 50, pelas lições que oferece.

Getúlio Vargas que havia governado o país de 1930 a 1945 tomou posse no início de 1951 como presidente eleito pelo PTB, em sintonia com as aspirações do povo e da nação de um caminho diferente do adotado pelo então presidente general Eurico Gaspar Dutra e derrotando o candidato da direita udenista, brigadeiro Eduardo Gomes. Para vencer Vargas teve que se aliar a um setor de forças ligado a Ademar de Barros (PSP), então governador de São Paulo que indicou o candidato a vice-presidente, Café Filho. Contou igualmente com o apoio de parte significativa do PSD. Empossado, procurou compor um ministério amplo que lhe permitisse governar. Havia no país um clima de certa liberdade política e de ascenso do movimento popular.

Na economia, assessorado por uma equipe de técnicos progressistas, elaborou um plano para concretizar seu programa de campanha que teve como centro a questão nacional. Segundo Mônica Medrado da Costa: “A questão nacional aparece, sobretudo, nos debates em torno da criação da Companhia Vale do Rio Doce, da Fábrica Nacional de Motores e da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, entendidos por Getúlio como os três grandes marcos na luta pela independência econômica do país. Também o tema da nacionalização dos recursos naturais e das riquezas do subsolo constitui… um ponto essencial do chamado projeto político nacionalista de Vargas.”16 Assim surgiu o monopólio estatal do petróleo através da Petrobras, indo ao encontro de ampla campanha popular pelo petróleo dirigida pelo Partido Comunista e de grandes debates havidos no Congresso Nacional. Surgiram também o BNDE e o Banco do Nordeste; a CSN entrou em funcionamento efetivo. Vargas propôs a criação da Eletrobrás 17 e fomentou uma série de planos e instituições para o desenvolvimento; encaminhou a Lei da Remessa de Lucros. Por tudo isto enfrentou desde o início pesada oposição da direita articulada em torno da UDN (da qual um dos maiores expoentes era Carlos Lacerda), apoiada por um setor das forças armadas (da Aeronáutica e do Exército) e pelos representantes do capital estrangeiro, que desencadeou uma ampla e radical campanha através da mídia (Tribuna da Imprensa, O Globo, revista O Cruzeiro) exigindo a renúncia de Vargas, apesar do jornal Última Hora de lhes tentava fazer contraponto.

Vargas procurava ganhar tempo manobrando com reformulações ministeriais, mas foi se isolando e sendo obrigado a ceder às pressões da direita num quadro em contínua radicalização política em que se “aguçam, mais uma vez, as contradições entre a corrente representada por Vargas e as forças mais reacionárias.”18 Os ademaristas que haviam sido neutralizados no princípio, passaram a fazer coro com Lacerda pela renúncia de Vargas. O tom elevou-se quando os republicanos ganharam as eleições nos EUA. Por fim, as pressões sobre Vargas tornaram-se insuportáveis depois que elementos de sua segurança pessoal perpetraram um atentado contra a vida de Lacerda.

Sob a influência sectária do Manifesto de Agosto de 1950 o Partido Comunista se absteve de participar do processo eleitoral propondo o voto em branco. Iniciado o governo: “Sem levar em conta a situação real, adota atitude rígida de combate sistemático a Vargas, que obtivera expressiva votação popular e representa, em certo grau, setores progressistas da nação”19. De um lado, o Partido defendia os interesses sociais imediatos dos trabalhadores tendo conduzido a famosa greve de 53 em São Paulo por melhores salários; de outra parte protagonizava importantes batalhas pelo petróleo ou contra o envio de tropas brasileiras para lutar na guerra da Coréia do lado norte-americano. No entanto, colocava-se erradamente na cena política opondo-se ao governo, desconhecendo a prática da luta pela soberania nacional e não vendo as contradições que se expressavam no governo, a campanha da direita e de como os interesses nacionais pelo desenvolvimento se vinculavam com as reivindicações dos trabalhadores. Acossado pela direita e pela esquerda, Vargas foi deposto pelas Forças Armadas e suicidou-se em agosto de 54, deixando uma carta-testamento que é um manifesto de luta contra o imperialismo 20. As massas populares chocadas com a morte de Vargas quebraram as instalações da imprensa reacionária, atacaram a embaixada e consulados dos EUA e condenaram a postura então adotada pelos comunistas.

Era Vargas esgotada e o neoliberalismo fracassado

No governo Sarney a “era Vargas” já dava visíveis sinais de esgotamento. Para que pudesse continuar a se desenvolver, nas novas condições do mundo globalizado e hegemonizado por uma superpotência belicista, seria necessário que o país se firmasse como uma potência mediana, abrindo lugar soberanamente no concerto das nações; mas os setores até então dominantes (elites industriais) não reuniam condições para executar com sucesso uma empreitada de tal envergadura. A vida política nacional foi então polarizada pela discussão de que caminhos o país deveria trilhar. Começou a se esboçar um novo projeto originado nos partidos de esquerda em torno da candidatura de Luiz Inácio da Silva, em 1989.

Na crítica à “era Vargas”, sobretudo ao papel até então desempenhado pelo Estado nacional na estratégia do desenvolvimnto, venceu nos primeiros embates o neoliberalismo, primeiro com Collor de Melo e depois com Fernando Henrique Cardoso. Mas a tentativa de que uma nova fração dominante da burguesia, do capital financeiro, rentista, pudesse promover o desenvolvimento ou “modernizar o país colocando-o no primeiro mundo”, conforme prometeram, fracassou.

A estratégia neoliberal de um Estado mínimo, da liberalização comercial e sobretudo financeira, de busca da poupança externa a qualquer preço, de privatizações, de “flexibilização” das relações trabalhistas etc. levou a que o Brasil se transformasse em um país mais dependente, mais desigual e praticamente estagnado do ponto de vista do desenvolvimento econômico. Nesse processo o Brasil perdeu posições e atrasou-se relativamente, tanto que, nos últimos 20 anos passou a deter o 93º lugar na média de crescimento anual do PIB, (Gráfico 2), com taxas comparadas muito inferiores a de outros países “em desenvolvimento”, (Gráfico 3).

Depois de mais de uma década de neoliberalismo a dependência adquiriu novas formas e atingiu um patamar mais elevado. O volume do passivo externo brasileiro – soma da dívida externa com o estoque de investimentos estrangeiros – atinge cerca de US$ 450 bilhões 21 e diferencia o país de outros assemelhados (Gráficos 4 e 5). Isto gera obrigações de amortizações, pagamento de juros, remessa de lucros e dividendos da ordem de US$ 52 bilhões por ano ou US$ 1 bilhão por semana; por isso, se coloca como o constrangimento central a ser enfrentado para que o país volte a se desenvolver, (Tabela). Os investimentos diretos feitos neste período também têm uma particularidade, estiveram muito voltados às privatizações e às aquisições de empresas nacionais, na indústria, infra-estrutura, comércio e sistema financeiro o que elevou o índice de desnacionalização. Como o país não suporta a carga do passivo externo e já com as reservas internacionais exauridas tem que recorrer aos empréstimos do FMI que vêm acompanhados de pesadas condicionalidades sob a forma de orientações obrigatórias de política monetária, metas de inflação/taxas de juros, metas fiscais de superávit primário, BC independente, privatizações, agendas de reformas e muitas outras.

Exaurido pelas contas externas o Estado busca se financiar internamente com a emissão de títulos públicos pelos quais paga elevados juros além de aumentar a arrecadação de impostos e fazer cortes nas rubricas sociais do Orçamento público. Dessa forma o Estado brasileiro se transformou em mero repassador de renda ao sistema financeiro nacional e internacional. Como se isso fosse pouco surge a proposta da ALCA feita pelos EUA, algo que coroaria todo o esquema, anexando a economia do Brasil à dos EUA. O desemprego e a concentração de renda, de um lado, e o lucro dos banqueiros, de outro, batem um recorde atrás do outro.

Elementos do novo projeto de soberania 22

Na luta política que se seguiu, após 12 anos da primeira tentativa, forças políticas nucleadas pela esquerda, comprometidas com a mudança de rumos do país, ganharam as eleições com Lula presidente. Começa a se esboçar um novo projeto, de um lado, na crítica ao projeto da “era Vargas” procurando incorporar seus aspetos positivos e, de outro lado, na negação do projeto neoliberal. É outro projeto de nação, histórico e estratégico, democrático, nacional-desenvolvimentista com a dimensão de reconstrução nacional, recomposição do Estado e, um novo modelo econômico: desenvolvimento sustentado, baseado no mercado interno, voltado para a geração de emprego e valorização do trabalho.
Entre os vários aspectos integrantes deste conjunto se destaca o relativo à afirmação da soberania para enfrentar a principal restrição ao desenvolvimento, a dependência e a vulnerabilidade externas. Para os comunistas particularmente, esta é uma dimensão da luta pelo socialismo. Poderiam ser colocados como aspectos fundamentais (econômicos, políticos, militares e culturais) da luta pela soberania nacional hoje:

1 – recuperação do Estado nacional
4 garantindo a autonomia da formulação da política econômica e retomando os critérios e capacidade do investimento público;
4mantendo e ampliando o controle público sobre o Banco Central, como elemento garantidor da moeda nacional e partícipe do esforço do desenvolvimento e do avanço social;
4recuperando as Forças Armadas para garantir a integralidade territorial do país;
2 – equacionamento do endividamento externo visando a redução e o aumento das reservas internacionais;
3 – novo relacionamento com os organismos financeiros e comerciais multilaterais (FMI, OMC etc.) com base nos interesses nacionais;
4 – controle seletivo sobre a movimentação de capitais (entrada e saída) a fim de evitar as atividades especulativas;
5 – prioridade para relações comerciais e diplomáticas de benefício mútuo com o Mercosul, América Latina e países similares (Índia, China e África do Sul);
6 – desenvolvimento da ciência e tecnologia nacionais; 7 – afirmação da cultura e identidade nacionais.

As condições atuais para um projeto de novo tipo

Há na situação presente a convergência de seis fatores fundamentais, que formam um tipo de oportunidade histórica – em que nada tomado como absoluto (ou seja, em cada um deles há contradições) –, que possibilitam a formação de uma grande frente para a consecução de um projeto democrático, nacional-desenvolvimentista, voltado para os interesses do povo, que possa enfrentar os constrangimentos impostos pela dependência:

1 – governo progressista, comprometido com mudanças. Este é o fator principal. Todo o esforço deve ser feito para que se consolide um núcleo de convicção para um projeto deste tipo, dentro do governo, neutralizando e isolando as forças atrasadas que dele participam;
2 – forças políticas de natureza democrática e popular que nunca haviam governado o país entre as quais estão os comunistas, pela primeira vez participando do governo central;
3 – classes dominantes divididas – setor de capital produtivo (embora com nuances) e de capital a juros – entre a continuidade e a mudança da política econômica;
4 – Forças Armadas que passaram a ver o problema da estratégia de defesa e segurança nacionais a partir das ameaças da hegemonia norte-americana. Esta é visão nova, formada depois da experiência de 64, depois do fim da bipolaridade e, por isso, pode jogar um importante papel;
5 – proletariado com nível maior de consciência que sustentou desde o início as candidaturas de Lula e que hoje pelas suas organizações pode unir o povo e “puxar” um grande movimento nacional de massas pelo desenvolvimento soberano;
6 – interesses convergentes de vários países da América do Sul nos quais se destacam Argentina, Paraguai, Equador, Venezuela. Este elemento é também fundamental para enfrentar uma correlação de forças desfavorável, fazendo uma contraposição à ALCA tal como foi proposta pelos EUA e desenhando um novo bloco de países da América do Sul, na perspectiva de um mundo multilateral.

Há que se considerar ainda as grandes dificuldades internas relativas tanto à herança maldita do neoliberalismo quanto à correlação de forças onde os defensores do antigo projeto foram derrotados mas não liquidados e continuam a deter influência política e econômica significativas. Mas a situação externa também não é fácil, economicamente os países de capitalismo desenvolvido vivem uma crise crônica, politicamente as guerras e ameaças de guerra vindas, sobretudo dos EUA se tornaram uma coisa rotineira. É nesse contexto, em que as forças do socialismo ainda não se recompuseram do golpe recebido é que se movem as coisas.

Da consciência de conjunto deste quadro as forças mais conseqüentes retiram sua linha de ação.
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Dilermando Toni é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas
1 Lênin, V. I. – Notas criticas sobre el problema nacional, dez. 1913, OC, T 24, pág. 136, Editorial Progresso, Moscou.
2 Lênin, V. I. – O imperialismo, fase superior do capitalismo, jun. 1916, OE, pág. 640, T 1, Editora Alfa-Omega.
3 Lênin, V. I. – O imperialismo, fase superior do capitalismo, jun. 1916, OE, T 1, pág. 639, Editora Alfa-Omega, (grifo de Lênin).
4 Lênin, V. I. – El proletariado revolucionario y el derecho de las naciones a la autodeterminacion, out. 1915, OC, T 27, págs. 64 e 65, Editorial Progresso, Moscou, (grifo de Lênin).
5 Lênin, V. I. – O imperialismo, fase superior do capitalismo, 1916, OE, T 1, pág. 623, Ed. Alfa-Omega
6 Chang, Ha-Joon, Kicking away the ladder: development strategy in historical perspective, 2002, Anterm Press, Londres
7 Carta IEDI, nº 65, 04/08/03, www.iedi.org.br
8 Jaguaribe, Hélio – Brasil, alternativas e saídas, out. 2002, págs.17 e 18, Ed. Paz e Terra.
9 Segundo o UNCTAD, em 2002, o estoque total de investimentos estrangeiros diretos alcançou US$ 7,1 trilhões, dez vezes mais que 1980 (2/3 entre os países desenvolvidos)
10 Silva, Sérgio – Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil, 1976, Ed. Alfa-Omega.
11 Mello, João Manuel – Capitalismo tardio e sociabilidade moderna, 1982, Brasiliense.
12 Tavares, Maria da Conceição – “Império, território e dinheiro”, 1999, em Estados e moedas no desenvolvimento da nações, Ed. Vozes.
13 Em 1898 o país fez seu primeiro funding loan, uma grande moratória de reescalonamento da dívida externa com os banqueiros ingleses. Sofrendo as conseqüências da crise mundial de 29/33, o governo já negociava um funding loan em março 1932 e em 1937 uma outra moratória reescalonando o pagamento de juros da dívida13. Em 1986 diante do aumento das taxas de juros internacionais, em um quadro também da crise mundial de 80/82, o governo brasileiro foi obrigado a declarar uma “moratória técnica”. Entre 1955 e 1960 a dívida externa cresceu 40% foi, entretanto, largamente incrementada durante os anos 70 na parceria que o Estado buscou para a consecução do II PND.
14 Como caracterizam Carlos Lessa e Sulamis Dain no artigo Desenvolvimento capitalista no Brasil, escrito em 1980: “[O Brasil] Uma economia periférica na qual, a partir de meados dos anos 50, se plasmou um novo padrão de acumulação sob inequívoca hegemonia do capital industrial.”
15 Tavares, Maria da Conceição – Acumulação de capital e industrialização no Brasil, 1985, pág. 147, Ed. Da Unicamp.
16 Citada por Paulo Brandi e Dora Flaksman do Cpdoc.
17 Naquela ocasião havia uma grande necessidade de que fosse aumentado o potencial de geração de energia para o desenvolvimento do país. A proposta de criação da Eletrobrás surgiu neste contexto mas gerou uma feroz resistência por parte das empresas estrangeiras que, apesar de serem concessionárias do ramo há 60 anos geravam uma quantidade de megawatts muito abaixo das necessidades. Com o suicídio de Vargas só em 1962, no governo Goulart, a Eletrobrás veio a ser instalada.
18 Partido Comunista do Brasil – Cinqüenta anos de luta, 1972, Edições Maria da Fonte
19 Partido Comunista do Brasil – Cinqüenta anos de luta, 1972, pág. 49, Edições Maria da Fonte
20 Neves, Léo de Almeida – Destino do Brasil: potência mundial, 1995, Graal
21 Segundo a UNCTAD, em 2002, o estoque de investimento estrangeiro direto atingiu US$ 236 bilhões. Se somar-se a isto o montante da dívida externa líquida divulgado pelo Banco Central, de US$ 213,42 bilhões, teremmos um passivo externo de US$ 449,4 bilhões.
22 Aqui se colocam ao debate apenas questões relativas ao seu aspecto nacional. Problemas relativos à ampliação da liberdade política, sociais ou de política econômica não são abordados

EDIÇÃO 70, AGO/SET/OUT, 2003, PÁGINAS 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41