Trinta anos depois de um 11 de Setembro, do qual os latino-americanos sempre se recordarão, devemos nos perguntar que lições podemos tirar da experiência chilena (1).
Enquanto o movimento guerrilheiro rural se enfraquecia em vários países – cujo golpe mais duro foi a prisão e morte de Che Guevara na Bolívia – e as experiências guerrilheiras urbanas conheciam o seu auge no Uruguai e na Argentina, ocorria no Chile, em setembro de 1970 (2), um fato que comoveu a esquerda latino-americana e mundial: o triunfo eleitoral de Salvador Allende.
Pela primeira vez na história do mundo ocidental um candidato marxista chegava, pelas urnas, à presidência da República.

O triunfo de Salvador Allende colocou às forças de oposição a seguinte alternativa: ou respeitar a maioria simples, como tradicionalmente se fazia no Chile, ou tratar de impedir a qualquer custo que o candidato marxista assumisse o governo. Esta última foi a saída colocada em prática pelas forças mais conservadoras. Num primeiro momento, se esforçaram para conseguir que o Congresso elegesse seu candidato, Jorge Alessandri, que havia obtido a segunda maior votação relativa. Para obter esse objetivo não escassearam meios: corrida bancária, saída de dólares, campanha de terror, falência de empresas etc etc.

O setor freísta – o mais conservador da Democracia Cristã (DC) (3) – esteve muito propenso a seguir esse caminho; sem embargo, setores majoritários desse partido inclinaram-se por respeitar a primeira maior votação relativa. Eles perceberam, com grande lucidez, que quebrar essa tradição levaria o país ao caos, à guerra civil. Votar em Alessandri no Congresso Pleno “seria o mesmo que dizer a um terço dos chilenos que a via democrática e a via eleitoral haviam se fechado para eles e, além disso, que deveriam pensar na violência e na derrota da insurreição” (4).

Contudo, o seu apoio à Unidade Popular (UP) (5) não podia ser gratuito. O seu preço foi o governo ter aceito o Estatuto de Garantias Constitucionais, pelo qual se comprometia a não mexer nas forças armadas, na educação e nos meios de comunicação (6).

Enquanto se tentava entrar em acordo, um setor da ultradireita dedicou suas energias a preparar um complô, que interessava a setores dos diversos partidos políticos da oposição, elementos das forças armadas e do governo (saliente). A fracassada tentativa de assassinato do comandante em chefe do Exército, general René Schneider, constitucionalista, foi como um avisou à UP, permitindo a esta realizar uma campanha nacional sobre o caráter constitucionalista das forças armadas, determinando em grande medida o fracasso de tal alternativa.

A ofensiva da Unidade Popular

Allende finalmente assume o comando, com apoio da Democracia Cristã, em 4 de novembro de 1970, iniciando assim um novo período na história do país. O novo governo inicia de imediato a sua ofensiva.

Para realizar as transformações estruturais que deseja, o seu programa conta com alguns instrumentos legais importantes: a Lei de Reforma Agrária aprovada durante o governo de Frei que – embora tenha uma série de limitações – lhe permite avançar rapidamente na expropriação de grandes latifúndios.

Os primeiros passos em direção à constituição da área da propriedade social se dão “usando procedimentos legais que, sem questionar a jurisdição do sistema vigente, representavam um caminho dividido” para evitar que a oposição mutilasse o programa através do poder legislativo. Para isso, foi utilizado “um decreto-lei, ainda vigente, promulgado em agosto de 1932, durante a chamada República Socialista” (7). No dia 2 de dezembro é anunciada a expropriação da primeira indústria, a fábrica têxtil Bellavista de Tomé. Em 27 de janeiro do ano seguinte é a vez de Lanera Austral; em 11 de março da indústria FIAP-Tomé; e em 26 desse mesmo mês da Fabrilana.

Tão logo aprovada – por unanimidade – a Reforma Constitucional que permite estatizar o cobre e outras riquezas básicas, as grandes companhias estrangeiras são expropriadas sem o pagamento de indenizações, devido ao excesso de lucros obtidos na gestão interior. Em outra frente, a intenção de reestruturar o sistema judiciário propondo um projeto de tribunais vicinais provoca a primeira grande reação da direita. A UP decide retirá-lo e ele permanece arquivado para sempre.

Sem dúvida, a estratégia do governo popular se cumpre amplamente durante esse primeiro momento. Consegue-se uma redistribuição considerável de renda. É iniciada uma importante reativação da economia, com o conseqüente aumento da produção e do emprego. A disponibilidade do funcionalismo público – que havia chegado a níveis alarmantes – diminui a um nível inferior ao conseguido pelos governos anteriores. No terreno financeiro se avança menos: ali se conta com a resistência dos empregados bancários controlados pela DC, que dificultam a criação de um banco único.

É lançada também uma ofensiva em política internacional em que se restabelecem as relações com Cuba e são iniciadas, pela primeira vez, relações com China, Coréia do Norte, Vietnã do Norte, Alemanha Oriental e outros Estados socialistas. O novo governo obtém muito rapidamente o respeito e a simpatia da opinião internacional – situação que se mantém durante todo o mandato de Allende.
Nesse momento a esquerda européia buscava a transição ao socialismo pela via democrática. Se a revolução cubana havia fortalecido as posições partidárias da luta armada, o triunfo de Allende serviu de argumento para aqueles que defendiam a via pacífica.

Sem embargo, a experiência não durou muito tempo, algo em torno de três anos. Muitos se esqueceram que havia sido conquistado o governo, não o poder; que os poderes legislativo e judiciário estavam nas mãos das forças opositoras; e que o pilar fundamental do Estado burguês – o exército – se mantinha intacto, protegido pelo chamado Estatuto de Garantias Constitucionais.

A ofensiva do governo encontra uma oposição fracionada, debilitada politicamente por sua derrota eleitoral de setembro e a sua frustrada tentativa de golpe de outubro. Não lhe resta outra alternativa senão procurar derrubá-lo novamente ou desgastá-lo paulatinamente para chegar às eleições presidenciais de 1976 com um candidato próprio vencedor.

Enquanto a direita se debate em torno de diferentes estratégicas, a força manifestada pelo governo nesse período e uma política de acentuada redistribuição de renda e de reativação da economia, conseguem aumentar o apoio popular e a gestão de Allende em um grau considerável.
As eleições de abril de 1971 (8) assim o demonstram. Em apenas cinco meses consegue-se passar de 39 para 49% da votação. Retrospectivamente, sem dúvida, este foi o momento mais propício para aprovar um referendum que permitisse chamar a uma Assembléia Constituinte para elaborar uma nova Constituição. Se se queria avançar pela via legal e pacífica, seria fundamental mudar as regras do jogo institucional.

O país vivia um clima revolucionário, de transformações profundas; um povo cheio de esperanças se sentia dono do seu destino. Era um exemplo demasiadamente perigoso não apenas para os poderosos do Chile, mas para todo o mundo. Era preciso acabar com esse paradigma.

A direita, sem nunca ter descartado o golpe militar, se colocou como objetivo estratégico desarticular por todos meios possíveis o bloco de forças políticas e sociais que lhe dava maioria parlamentar e podia permitir a ele governar transformadoramente através da legislação existente. A principal força política em disputa era o Partido Democrata-Cristão e sua base social de apoio, fundamentalmente as camadas médias e o setor dos trabalhadores e populações dos bairros marginais. O assassinato – em 8 de junho de 1971 – de Pérez Zujovic, ex-ministro do Interior do governo democrata-cristão de Frei e homem muito influente dentro da DC, realizado por ex-militantes de partidos da Unidade Popular (9), surge como uma luva para conquistar esse objetivo. Esse fato permite ao setor freísta da DC recuperar a liderança dentro do partido.

Contradições dentro do poder do Estado

Fazendo um balanço desse período, podemos dizer que – apesar dos consideráveis avanços realizados pelo governo –, os setores populares aparecem como meros espectadores e como apoio do processo. Os Comitês de Unidade Popular, em pleno auge durante o processo pré-eleitoral, em sua maioria desaparece logo em seu triunfo. Os partidos dedicam todos os seus quadros às novas tarefas de governo, abandonando significativamente o seu trabalho no movimento popular.

Apesar das mobilizações de apoio ao governo, os únicos movimentos importantes desse período são os produzidos nas zonas mapuche, especialmente em Cautín e Valdívia: as chamadas “corridas de cerco” para recuperar suas terras expropriadas em épocas passadas – encabeçadas pelo MIR (10).

A decisão do governo popular de não usar repressão contra os trabalhadores – anunciada publicamente –, estimula ainda mais esse tipo de ações. Elas afetam principalmente pequenos e médios setores de camponeses e, de fato, rompem com a estratégia agrária da UP, que pretendia atacar num primeiro momento apenas aos grandes latifundiários usando a legislação vigente.

A ultradireita enaltece essas ações aproveitando-as para iniciar sua campanha de ilegitimidade do governo e para derrubar importantes setores das camadas médias – não somente do campo como também da cidade – contra o governo da UP, apresentando-o como destruidor da propriedade privada.
Por outro lado, ao colocar em prática a primeira iniciativa importante para incorporar setores do povo ao processo – a criação dos Conselhor Comunais Camponeses, aprovada em dezembro de 1970 –, surgem as primeiras divergências sérias dentro da UP.

Um setor concebia esses Conselhos como a organização camponesa em nível territorial que havia agrupado as diversas organizações camponesas existentes: os sindicatos, as cooperativas e os assentamentos. Porém, esse planejamento tinha alguns inconvenientes: deixava à margem da organização os pequenos proprietários independentes e os outros setores, ainda que não organizados, do campo e dava a supremacia à DC, devido a que este partido controlava dois das três federações sindicais camponesas e a federação de assentamentos. A esquerda, especialmente o PC, controlava uma federação sindical.

Outro setor, coincidindo com o MIR, insistia na formação dos Conselhos Comunais pela base, que permitiria, em princípio, incorporar a todo o campesinato, ainda não organizado, e quebrar a dominação DC nas organizações camponesas. Os inconvenientes desse planejamento eram: primeiro, a dificuldade para fazer eleições verdadeiramente democratas pela base sem que ela fosse manipulada politicamente pelos partidos e, segundo – o mais sério –, a divisão do campesinato ao marginalizar de fato aos setores no UP.

Depois de vários meses de discussão chegou-se a um acordo em nível da direção da UP; todavia, na prática, o caráter tomado por tais Conselhos dependeu da orientação que cada partido lhes imprimiu. Isso contribui para dividir o campesinato mais proletarizado – o que, junto com a perda de apoio de um setor importante de pequenos e médios proprietários, impede a UP de conseguir massivamente o apoio do campesinato nesse processo. O aliado principal da classe operária não é ganho na magnitude prevista, apesar dos notáveis avanços no terreno da reforma agrária.

Por outro lado, durante esse período de ofensiva das forças revolucionárias aparecem claramente os limites do Estado burguês chileno e de sua legalidade. O excesso de centralismo impede de se tomar iniciativas e decisões em nível regional. Sem recursos econômicos, todas as iniciativas locais não saem do papel. O aparato burocrático e os diferentes organismos de Estado contam com um corpo de funcionários que, em sua maior parte, não participa dos novos objetivos estabelecidos pelo governo. Allende conta apenas com quadros de confiança nos níveis superiores.

Levando em conta a Constituição vigente, a Controladoria rechaça a primeira tentativa de criar centros de poder mais além dessa estrutura, devolvendo o decreto que criava os Conselhos Comunais Camponeses. Ela somente aprova um projeto que reduz o seu papel a organismos meramente assessores dos organismos do agro. Esse mesmo fato volta a ocorrer mais adiante com o decreto sobre as Juntas de Abastecimento e Preços, criadas para lutar contra o mercado negro e a inflação.

A esses mesmos limites do Estado burguês foi agregado o problema do “sistema de cotas político”: cada partido exigia dispor de uma certa quantidade de cargos para seus militantes na administração pública. Em cada ministério, em cada organismo do Estado, havia a pretensão de reproduzir a representação de todos os partidos da UP, com o seguro objetivo de obter ali uma direção integrada. Sem embargo, para que isso funcionasse bem era necessária uma direção única do processo. E como só existia acordo no grosso das linhas do programa, à medida que este teve que se ir concretizando, foram surgindo contradições cada vez mais marcantes entre os diversos partidos, sendo que cada um deles fazia sua política dentro do organismo em que estava representava. A ineficiência do Estado burguês viu-se, assim, acentuada pela inexistência de um critério único de ação em cada ministério, em cada organismo, onde cada partido aplica uma política diferente.

Por outro lado, os partidos, para preencher suas cotas às vezes nomeavam pessoas não preparadas, ineficientes, oportunistas – que haviam ingressado recentemente em algum dos partidos da UP – enquanto se colocava à deriva de seus cargos uma série de pessoas independentes; mas, eficientes e com experiência.

A impossibilidade de que fossem implementadas iniciativas e decisões em nível local, porque se carecia de poder e recursos para tanto, dava à mobilização de massas um caráter de mera pressão frente aos organismos centrais do Estado, contribuindo para acentuar ainda mais a tendência, própria do povo chileno, de esperar que todas as soluções venham de cima.

A isso é preciso acrescentar que os incorretos métodos de direção praticados pelos militantes dos próprios partidos da UP, formados em organizações muito centralistas, reduziam sua capacidade de realizar tarefas concretas que permitissem incorporar as pessoas no nível local.

Há um outro aspecto que nos parece importante de ser assinalado aqui: a estratégia política da UP em relação aos setores populares esteve centrada fundamentalmente no proletariado dos grandes centros industriais e mineiros e do campo, isto é, num setor que, em certa medida, era privilegiado por seu nível de organização e de conquistas sociais alcançadas, em relação com o restante dos trabalhadores das pequenas indústrias e pequenas propriedades agrícolas e com todo o imenso setor de pequenos trabalhadores autônomos, setores verdadeiramente marginais da cidade e do campo. Esse acentuamento especial sobre os setores organizados do proletariado industrial urbanos se refletia na grande preocupação em organizar os setores da população. O interesse por começar a andar os comitês de produção nas grandes indústrias e pela não-implementação dos comitês de vigilância nas médias e pequenas indústrias. A política de redistribuição com base no salário, que não chegava aos setores não-assalariados das populações da periferia. Nesse sentido, há que se reconhecer que a DC teve uma política muito mais inteligente nesse terreno, preocupando-se especialmente com a organização desses “setores marginais”.

Por último, apesar de aparecer insistentemente em todos documentos da UP, a questão da importância da incorporação das massas no processo, não havia o hábito de estabelecer tarefas concretas que permitissem que cada vez mais pessoas se sentissem parte do mesmo, ampliando, assim, a base de apoio do governo. As tarefas tendiam a ser realizadas dentro das estruturas dos partidos.

A contra-ofensiva da ultradireita

Como vimos anteriormente, o assassinato de Pérez Zújovic fortaleceu o esforço levado adiante pelos setores ultraconservadores de unificar a oposição. Sua estratégia estava orientada por seis grandes objetivos:

Primeiro, tentar dividir a coalizão governante: a Unidade Popular. Essa tarefa se realizou estimulando uma suposta linha divisória entre partidos “marxistas” e partidos “democráticos”. Recorreram também ao desgastado truque do anticomunismo, tratando de isolar esse partido dentro da UP, acusando-o de tentar “apoderar-se de todo o governo”, de “sectarismo incondicional em relação a Moscou” etc.
Segundo, manter a todo custo o controle dos meios de comunicação. Nesse momento, a oposição controlava 70% da imprensa escrita e 11,5% das rádios do país, entre as quais as cadeias mais potentes.

Terceiro, defender a propriedade privada. Usou todos os mecanismos legais e meios de pressão a seu alcance para dilatar a formação da área de propriedade social: o exemplo mais claro foi o projeto de Reforma Constitucional apresentado pela Democracia-Cristã para impedir a expropriação de um maior número de empresas.

Quarto, a criação de uma consciência anti-Unidade Popular nas Forças Armadas. Para isso explorou habilmente tudo aquilo que pudesse dar a visão de um país “caótico”, “anárquico”, de “desgoverno e vazio de poder” com tendências “totalitárias e antidemocráticas”. E, sem dúvida, o ponto central de sua campanha foi a denúncia da existência de grupos armados em (detrimento) das únicas forças armadas que deviam existir no país.

Quinto, conquistar as camadas médias para acioná-las contra o governo: apoiaram supervisores que boicotavam a produção nas minas de cobre, trataram de mobilizar os colégios profissionais, utilizaram as universidades para experimentar suas linhas estratégicas.

Contudo, o objetivo fundamental – que lhe permitiria realizar vários desses anteriores –, quase poderíamos dizer por acréscimo, foi provocar o fracasso econômico do governo popular. As medidas começam a ser aplicadas imediatamente após o triunfo eleitoral com a corrida bancária, o contrabando de dólares, a paralisação de algumas indústrias, o cessamento de importação de matérias primas e repostos necessários para o funcionamento das indústrias etc. As classes dominantes não apenas bloqueiam todas as tentativas do governo de modificar a injusta estrutura tributária usando para isso sua maioria parlamentar, como também, ao mesmo tempo, negam-lhe os recursos pressupostários para levar adiante seus planos de caráter social: distribuição de leite, planos de saúde, de moradia e obras públicas. Desse modo, buscavam impedir que a UP pudesse melhorar o nível de vida dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, criar temor nos inversionistas estrangeiros e empresários nativos, provocando em médio prazo um estancamento produtivo.

Esse objetivo foi plenamente compartilhado pelo governo Nixon e os consórcios multinacionais, que realizaram uma operação de cerco econômico expressa em: redução de créditos, obstaculização da renegociação da dívida externa, embargo de bens por parte das companhias expropriadas, divulgação internacional da imagem de um país em bancarrota para cercá-lo mais do ponto de vista financeiro. O governo popular, que não queria afetar a capacidade de negociação dos trabalhadores, não teve outra alternativa senão ampliar a quantidade de dinheiro circulante, sabendo que isso teria que se traduzir em fortes pressões inflacionárias. Ao mesmo tempo, a ofensiva do governo norte-americano o impediu de manter um volume de importações alimentícias em acordo com a maior capacidade aquisitiva alcançada pelos setores populares. Os problemas de abastecimento se aumentaram dia a dia. Sobre essa base objetiva, os esforços da reação se encaminharam a agravar a situação econômica através da especulação, o monopólio e o fomento do mercado negro; enquanto a imprensa por ela controlada produzia uma campanha sistemática com o fim de proclamar o desabastecimento e de torná-lo o centro de seus ataques.

Dessa forma, à medida que o governo foi avançando, foi sendo criada uma verdadeira situação contra-revolucionária. Os primeiros sintomas já eram patentes quando Fidel visitou o Chile em novembro de 1971. Setores sociais da direita, e seus aliados, foram cada vez mais participando em política: em panelaços, manifestações, greves de transporte, no cobre, manifestações contra os militares. Enquanto as forças opositoras aplicavam conseqüentemente sua estratégia, as forças da Unidade Popular não conseguiam entrar em acordo com relação ao que fazer.

A situação se agravava dia a dia. Finalmente, Allende decide definir a situação convocando um Plebiscito. A mensagem presidencial estava prevista para as 11 horas do dia 11 de setembro. A essa hora as balas reduziram ao silêncio o heróico e conseqüente mandatário chileno.

O golpe militar

Esse golpe militar foi possível graças ao êxito da contra-ofensiva conservadora. Enquanto esta última se ia tornado mais forte e as contradições no seio das forças de esquerda que levantaram a candidatura de Allende se iam enfraquecendo, uma parte importante dos setores médios, que havia apoiado inicialmente o projeto popular, se foi distanciando – com isso se preparou o terreno social e político para o golpe militar. Concordo com Jorge Arrate, dirigente socialista chileno, em que o projeto de Allende era demasiado heterodoxo para o caráter ortodoxo de nossa esquerda (12), cujos planejamentos não correspondiam aos novos desafios que o país estava vivendo: quando Allende falava do trânsito democrático ao socialismo, setores da esquerda pichavam os muros com “Viva a ditadura do proletariado!”; quando Allende falava de ganhar setores da burguesia para seu projeto, uma parte importante da esquerda reafirmava que o nosso inimigo era toda a burguesia; quando o presidente socialista lutava por conseguir uma condução única do processo, os partidos mais fortes – o Socialista e o Comunista – tornavam públicas suas divergências; enquanto Allende queria consolidar o avançado no plano econômico – a estatização das grandes empresas estratégicas, tendo muito claros os limites de poder com que contava – setores da esquerda tomavam para si pequenas empresas e pediam sua estatização, exigindo mais radicalidade de Allende.

Por outro lado – ainda que a direção da Unidade Popular e o próprio presidente Allende tivessem muito claro que só poderiam consolidar o processo chileno se contasse com o apoio dos militares e, coerentemente com isso se tenha feito todo um esforço para ganhá-los à causa popular –, confiou-se excessivamente na tradição constitucionalista das forças armadas chilenas e não se trabalhou suficientemente na criação de uma força material própria.

Todavia, há outra coisa ainda que só foi vista depois, a partir das últimas experiências vividas pelo socialismo: esse tipo de transição “pacífica” do capitalismo ao socialismo – usando os recursos e possibilidades de poder dentro de um sistema de democracia representativa – não era um caminho viável para realizar o projeto socialista tal como havia sido aplicado até então no mundo e que, portanto, era necessário repensar o socialismo que se queria construir elaborando outro projeto mais adequado à realidade chilena. Isso era o que Allende parecia intuir ao usar sua folclórica metáfora de socialismo “vinho tinto com empadas”, que apontava para a construção de uma sociedade socialista democrática enraizada nas tradições nacional-populares (13).
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Tradução Maria Lucília Ruy.

Notas
1. Este texto foi elaborado para a revista inglesa Historical Materialism: Research in Critical Marxist Theory, Vol. 11, nº 3, outubro-2003. Para elaborá-lo extrai informações de meu livro A esquerda no limiar do século XXI. Tornando possível o impossível. Século XXI Editores, Espanha, 1ª ed., 1999, e 3ª, 2000 e de um texto preparado para um livro sobre Patricio Guzmán, A batalha do Chile (1975), publicado parcialmente em vários números da revista chilena Encuentro XXI (1998), sob o título “A luta de um povo sem armas. Os três anos de governo popular”.
2. Em 4 de setembro de 1970, Salvador Allende venceu com 36% da votação. Obteve 30 mil votos mais que Jorge Alessandri, o segundo mais bem votado.
3. Em 4 de setembro de 1970 Salvador Allende venceu por 30 mil votos sobre Jorge Alessandri, com 36% dos provenientes de camadas populares.
4. Claudio Orrego, “A Eleição de 1970…”. In: Política e Espírito, nº 332, maio de 1972, p. 17.
5. Coalizão, ou frente política, formada por Partido Socialista (PS), Partido Comunista (PC), Partido Radical (PR), MAPU e Esquerda Cristã (IC) – estes dois últimos advindos da DC.
6. No Chile podia ser eleito presidente o candidato que obtivesse a maioria relativa dos votos sempre que o mesmo fosse ratificado pelo Parlamento. Embora fosse tradição ratificar sempre ao candidato com maioria relativa, pela excepcionalidade do caso de Allende não se descartava a possibilidade de essa situação poder variar.
7. Hogo Zemelman e Patrício Leon. O Comportamento da Burguesia chilena no primeiro ano do governo da Unidade Popular. Revista de Sociologia, nº 1, agosto de 1972, p. 4.
8. Eleições de deputados e senadores.
9. A ação, de duvidosa inspiração, é realizada por um comando da VOP (Vanguarda Organizada do Povo).
10. Movimento de Esquerda Revolucionária, uma organização político-militar de uma esquerda extraparlamentar, inspirada na revolução cubana. Não se enquadra à Unidade Popular.
11. Isso dificultava enormemente qualquer tentativa de armar o povo para defender o governo popular.
12. Jorge Arrate. A força democrática da idéia socialista. Ed. do Ornitorrinco, Santiago, Chile, novembro de 1985, p. 175.
13. Tomás Moulián. A Unidade Popular e o futuro. Revista Encontro XXI, nº 3, ano 1, Chile, 1995, p. 25.

EDIÇÃO 70, AGO/SET/OUT, 2003, PÁGINAS 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65