Quando tomou posse, o governo Lula era minoria no Senado e também na Câmara dos Deputados, onde você assumiu a liderança do governo. Como foi, nos primeiros meses, ser líder de um governo com minoria parlamentar?

Aldo Rebelo – A base do governo Lula vivia, por essa situação, um ambiente de certa insegurança e incerteza quanto às possibilidades, em primeiro lugar, de assegurar a governabilidade – a confiança de que o novo governo seria capaz de conduzir seu projeto político, econômico e social – e, em segundo, quanto à aprovação das chamadas reformas constitucionais. Só adiante, com a formalização do ingresso do PMDB e do PP na sua base parlamentar, o governo iniciou o processo de formação da maioria.

Na época, você afirmou – em artigo exclusivo para Princípios – que nenhuma força política tem condições de empreender, sozinha, as reformas mínimas de que o Brasil precisa sem entendimentos demorados e complexos com o Legislativo. A esta aliança – comum aos grandes momentos da História do Brasil – chamou de “maiorias heterogêneas”. Essa tese foi comprovada pela experiência até aqui empreendida?

Aldo Rebelo – A vida respondeu de forma construtiva a essa tese. Ela mostrou-se válida e atual. A experiência brasileira, de percorrer rupturas políticas e sociais sempre foi pelo caminho da constituição de maiorias heterogêneas – o que funcionou na expulsão dos holandeses, na Independência, na Abolição, na República, em 1930 e até recentemente na luta pelo fim do regime militar.
O caminho para a retomada do crescimento, do desenvolvimento do nosso país, para a ruptura com o atraso social e econômico que nós vivemos, configura a possibilidade da reunião de amplas forças sociais, políticas e econômicas em torno destes objetivos.
E julgo que o governo do presidente Lula vai construindo não só maioria política para isso, maioria parlamentar, mas também uma base social que lhe dê condições para percorrer esse caminho. Vejamos, por exemplo, o caso do Partido Progressista (PP), que é um partido com uma grande representatividade no setor de agronegócios e que tem, naturalmente, conflitos, mas no fundamental respalda a política de retomada do crescimento da economia e o esforço exportador que o governo tem feito.

A necessidade de o governo aglutinar forças tão amplas, na sua denominação maioria heterogênea, de alguma maneira se choca com certa cultura de parte da esquerda brasileira – que tem dificuldade para lidar com políticas de aliança. Como tem sido esse aprendizado no quotidiano da Câmara Federal? Há choque entre essa cultura anterior ou a esquerda tem amadurecido, em particular o partido hegemônico da base do governo que é o PT?

Aldo Rebelo – Por essa razão digo que a maioria necessária ao governo ainda está em construção. E a construção dessa maioria exige não apenas o acordo em torno de programas, plataformas e objetivos. Exige também um certo treinamento porque a aliança e a unidade pressupõem um ambiente de solidariedade, de lealdade, de sentimento de pertencer a um mesmo campo, de comungar objetivos comuns.
É como num time de futebol ou num corpo militar. O exercício dessa atividade estabelece os parâmetros que estão além do programa e da plataforma. Tal solidariedade e lealdade dentro da base de apoio ao governo exigem um grande esforço. E isso tem sido construído.

Para se forjar maioria política sempre negociações e concessões se colocam, evidentemente. No caso concreto, como isso se deu?

Aldo Rebelo – O eixo da unidade construída reside em torno da centralidade da questão nacional. Essa questão se traduz pela necessidade de o país crescer, gerar empregos, distribuir renda e elevar o padrão de vida material e espiritual dos trabalhadores. Ela se materializa também no fato de o país ter uma política independente. Este projeto só se viabiliza se o povo brasileiro assumir o papel de protagonista de sua história.
Não há como construir uma nação forte, rica, justa e independente se esse esforço não se apoiar principalmente no povo brasileiro e se em torno dessa convicção não se estabelecerem as alianças políticas, alianças de classe, para que esse objetivo seja alcançado.
Penso que pelo menos numa parcela das correntes mais avançadas e das correntes de esquerda não se tem muita clareza acerca da centralidade da questão nacional. E isso gera uma dificuldade, pois cria atritos pelo caminho que precisam ser superados. Mas, na minha opinião, essa convicção forma-se, aos poucos, dentro das correntes de esquerda e também em outros amplos setores da sociedade brasileira.

Mesmo conhecendo sua modéstia, qual foi o papel da Liderança do governo na engenharia de construção do que era um grande desafio em janeiro de 2002 e hoje se tornou realidade – a maioria parlamentar do governo na Câmara?

Aldo Rebelo – O papel da Liderança do governo era dizer ao presidente da República que ele precisava dessa maioria para garantir a governabilidade, para ampliar sua base política – e também sua base social.
O PMDB, por exemplo, não pode ser compreendido apenas pelos seus 70 parlamentares que compõem a sua bancada. É também um partido que tem um grande número de governadores e o maior número de prefeitos e vereadores do Brasil. Portanto, além de uma base parlamentar, a presença desse partido constitui ampliação de base política e social importante.
Da mesma forma, no caso do PP. Também fizemos um esforço para que ele integrasse formalmente a base de sustentação do governo.
Procuramos, no exercício da Liderança dentro da Câmara dos Deputados, estabelecer mecanismos de discussão, debate, relacionamento e valorização desses partidos, dando a eles a convicção de que valia a pena integrar o esforço de sustentar o governo do presidente Lula.

As relações que seu partido, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cultivou ao longo do tempo com amplas forças no campo democrático brasileiro ajudaram na montagem da atual frente?

Aldo Rebelo – Penso que essa foi a chave do relativo êxito que a Liderança do governo obteve na construção dessa base na Câmara dos Deputados.
O PCdoB é um partido que baseia sua doutrina e sua ideologia em princípios que são universais, mas do ponto de vista da cultura política é um partido genuinamente brasileiro. Um partido que ao longo de sua atividade teceu relações políticas e laços políticos importantes com criatividade e amplitude, e isso deu à Liderança do governo – no caso a minha experiência pela vida partidária – luzes sobre os caminhos que poderiam ser percorridos para tecer a construção dessa unidade da base que, hoje, na Câmara, dá sustentação ao governo do presidente Lula.

Em 2004, as eleições municipais tendem a gerar grande repercussão no alinhamento de forças político-partidárias no Congresso e na sociedade. Fica mais difícil manter uma base heterogênea unida nesse contexto de disputa eleitoral?

Aldo Rebelo – Creio que não. Podemos fazer o esforço da unidade da base do governo na disputa das eleições municipais e administrar as diferenças, porque pode haver disputa entre partidos dessa própria base. Mas isso pode ser plenamente administrado desde que haja, a partir do governo federal, uma atitude de equilíbrio e isenção em relação aos partidos que integram sua base.

Que avaliação se pode fazer da experiência de um comunista nesta função? Que benefícios e dificuldades tal exercício causa ao seu partido?

Aldo Rebelo – Considero que isso não gera dificuldades. Exige, sim, um esforço de criatividade, imaginação e flexibilidade. O Partido sempre teve a clareza de que o programa da frente é uma coisa e o programa do Partido, outra. O Partido luta para influenciar no programa da frente em tudo aquilo que a correlação de forças permitir.
Temos conseguido êxito porque a luta dentro da frente é a luta de idéias e opiniões, e obedece a correlação de força dentro da própria frente. Mas como o PCdoB é um partido habituado a dirigir entidades de massa e participar de movimentos de frente heterogêneos e amplos, não só em prefeituras que já dirige – como Olinda – e entidades como a UNE ou entidades sindicais, essa experiência nos facilita a ação dentro da frente, bem como a compreensão de que o líder do governo tem um papel e o líder da bancada tem outro. A frente tem um papel e o Partido tem outra função.

Como nos aproximamos do primeiro ano do governo Lula, quais suas primeiras reflexões para um balanço até aqui?

Aldo Rebelo – Considero o governo vitorioso. Além da mudança na correlação de forças, com a eleição de um candidato apoiado fundamentalmente pelas forças de extração popular, de origem de esquerda, e que chega à Presidência da República. Pela primeira vez na História do Brasil temos um operário presidindo a Câmara dos Deputados – um metalúrgico de Osasco/SP, o deputado João Paulo Cunha. Temos também pela primeira vez em nossa história um parlamentar do Partido Comunista na Liderança do governo. Temos ainda os partidos de esquerda como protagonistas de importantes ações na esfera da vida política e institucional do país – basta dizer que os dois projetos mais importantes em tramitação na Câmara dos Deputados no presente momento têm como relatores deputados do Partido Comunista do Brasil (deputado Jamil Murad como relator da Medida Provisória da Cofins; e eu como relator da Lei de Biosssegurança – chamada “lei dos transgênicos”).
Tudo isso demonstra que foi um ano de grandes avanços para o nosso povo e para o país.
O governo promoveu o mais ousado programa social da nossa história, o programa de combate à fome, procurando atingir uma população de trinta milhões de pessoas – quase a população da Argentina.
Foi feito também o grande esforço para superar o impasse econômico que paralisou o desenvolvimento nacional pelo menos nos últimos dez anos – e que o governo tem consciência de que precisa superar essa situação e fazer com que o país volte a crescer para gerar emprego e distribuir renda.
Chamaria atenção ainda para a ação do governo na política externa. O Brasil, na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), constrói paulatinamente alianças amplas e sólidas para enfrentar uma correlação de forças muito injusta e desigual no mundo.

Que questões poderiam ser assinaladas sob um ponto de vista crítico neste balanço preliminar?
Aldo Rebelo – A principal questão a superar ainda é a necessidade da retomada do crescimento da economia; envolvendo o esforço para diminuir a taxa de juros; e esforço para liberar o país das limitações impostas pelo FMI.
Mas aí é preciso fazer um reparo na afirmação de que é “o governo da esquerda que está levando o Brasil para o FMI”. Isso não é verdade, pois o Brasil já estava no FMI! Quando o governo assumiu, encontramos o país signatário de um acordo muito restritivo e limitador ao extremo, e que tem recebido críticas do próprio presidente da República. O esforço é exatamente para sair deste acordo e permitir ao país voltar a crescer. Como sair do acordo depende da vontade política do governo e também da correlação de forças.
Outra questão que preocupa é o desemprego – que está relacionado com o desafio do desenvolvimento e também com o problema da segurança pública. Esta última questão se tornou um drama pungente. Se as medidas adequadas não forem adotadas, pode se tornar um problema de segurança nacional, dado à ação do crime organizado em atividade no nosso país.

A Liderança do governo foi – e tem sido – a tarefa política mais difícil que você recebeu?
Aldo Rebelo – Não. A tarefa mais difícil que recebi foi presidir a União Nacional dos Estudantes – em um ambiente de mobilização de nossa juventude, mas ainda de pouca experiência. A Liderança é uma tarefa muito importante, mas acho que, à época, a direção da UNE exigiu mais.

Adalberto Monteiro é jornalista e Editor de Princípios.

EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 19, 20, 21, 22