Os dados sobre o desempenho brasileiro no século XX, apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na publicação Estatísticas do século XX (1), mostram um país dinâmico e – como já se disse – com vocação para o crescimento. São dados surpreendentes e que ilustram a relação entre economia, política e forma de organização da sociedade, e que condicionam positiva ou negativamente o crescimento econômico.

As mudanças foram demográficas, políticas, econômicas e socais. A população brasileira passou, naquele intervalo de cem anos, de 17,4 milhões para 169,8 milhões de habitantes. Isto é, cresceu quase 10 vezes. O país ficou mais democrático: na eleição presidencial de 1910, existiam 1,1 milhão de eleitores (6% da população). Em 2002, eram 115 milhões de eleitores, (56% da população). O PIB (que é a soma do valor de todos os bens e serviços produzidos durante um ano) brasileiro era de 9 bilhões de reais; em 2000, alcançou 1 trilhão, sendo 110 vezes maior. Em 1900, pouco mais de 11,6% do PIB eram industriais; a agropecuária tinha a maior fatia do PIB, com 44,6%, e o setor de serviços tinha 43,8%. O PIB industrial cresceu; alcançou 34,4% do total em 1980, e hoje recuou para 27,7%. A agricultura caiu para 11,1% do total, e o setor de serviços tem, hoje, 61,2%. O PIB per capita em 1901 era de 516 reais, e em 2000 foi de 6.056 reais (12 vezes mais).

Houve melhoras grandes também na área social. A taxa de analfabetismo era de 65%, e hoje é de 17%, um número ainda muito alto para os padrões modernos. A mortalidade infantil era arrazadora em 1930: 162 por mil. Isto é, 16% das crianças nascidas vivas morriam antes de completar um ano de idade. Em 2000, foi de 30 por mil. Em 1900, a expectativa de vida ao nascer era de apenas 34 anos; em 2000, dobou: foi de 67 anos. Durante a primeira metade do século passado, a imensa maioria dos brasileiros morava no campo. Em 1940, ainda eram 69%. Em 2000, a situação mudou radicalmente, e o Brasil tinha se tornado um país urbano, com apenas 19% dos brasileiros vivendo no campo, e 81% nas cidades.

O país cresceu, enriqueceu e se sofisticou. Esteve, ao logo do século XX, entre os campeões mundiais de crescimento – segundo um estudo do IEDI (Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento Industrial), cresceu uma média de 4,3% ao ano, atrás apenas de Formosa (5%) e da Coréia do Sul (4,5%). O velho e rotineiro país agrário e semicolonial de cem anos atrás tornou-se hoje uma das maiores potências industriais do planeta, embora a dependência externa continue um traço forte de sua constituição.

E a riqueza permaneceu fortemente concentrada. Em 1960, os 10% do topo da pirâmide eram 34 vezes mais ricos do que os 10% da base. Essa concentração aumentou nos anos seguintes e, em 1991, os mais ricos tinham 60 vezes mais do que os mais pobres. Desde então a situação melhorou um pouco sem contudo modificar substancialmente o quadro e, em 2000, os mais ricos continuavam com 47 vezes mais riqueza do que os mais pobres. No final do século, o Brasil continuava “na mesma posição relativa do início do século XX”, diz Marcelo de Paiva Abreu no ensaio “O Brasil no século XX: a economia”, que faz parte do livro do IBGE. “Em 1900”, diz ele, “a renda per capita brasileira era da ordem de 24% da renda média ponderada das 17 economias mais avançadas (Europa Ocidental, ‘economias de colonização recente’ e Japão), enquanto no fim do século estava em torno de 26%”.

São números gigantes, que permitem algumas conclusões. Uma delas confirma a tese marxista de que, num certo momento de seu desenvolvimento, as relações de produção detêm o avanço das forças produtivas, impondo-se a necessidade da substituição das velhas relações de produção por outras capazes de promover o progresso material.

Foi o que aconteceu com o Brasil na primeira metade do século XX. Em 1900, o país havia acabado de sair da mais profunda revolução de sua história, aquela que extinguiu o trabalho escravo, em 1888. Na área política,

Brasil, século XX: a marca da desigualdade

Carlos Pompe e José Carlos Ruy

As 543 páginas do livro e o CD-Rom com mais de 16 tabelas da publicação Estatísticas do Século XX registram os números da trajetória brasileira entre 1901 e 2000. E, com ela, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coroa um esforço de publicação de estatísticas históricas iniciado na década de 1980 e que resulta, agora, na mais completa radiografia da História do Brasil, mostrando a evolução do País em áreas como educação, saúde, economia e cultura. Em dois anos de trabalho, os técnicos recorreram a documentos históricos e outros registros para suprir a falta de estatísticas até 1936, ano em que o IBGE foi criado.

O esforço é tão grande quanto o país que descreve, pelo volume dos dados, e por sua dinâmica. O tamanho da população é um exemplo: ela passou de 17,4 milhões em 1901 para 170 milhões em 2000. Cresceu dez vezes. No mesmo intervalo de tempo, o Produto Interno Bruto (PIB é a soma de todas as mercadorias e serviços que um país produz em um ano) se multiplicou 110 vezes. O PIB per capita, em feito comparável ao desempenho de países como Japão, Finlândia, Noruega e Coréia, cresceu 12 vezes; a riqueza aumentou quase 21 vezes mais que a população. Contudo, não houve divisão – ao contrário, foram mantidos e agravados os padrões históricos de alta concentração. Em 1960, os 10% mais ricos do país ganhavam 34 vezes o que os 10% mais pobres recebiam. Nas décadas seguintes, a diferença cresceu ainda mais e chegou a 60 vezes em 1991, caindo para 47 vezes em 2001. Em conseqüência, na virada do século, os rendimentos somados do 1% mais rico equivaliam ao rendimento total de todos os 50% mais pobres, fazendo da desigualdade – de renda, racial, de gênero e regional – a marca nacional. Para corrigir essa distorção e diminuir a desigualdade de renda, diz o ministro do Planejamento, Guido Mantega, será necessário incorporar à sociedade os 70, 80, 90 milhões de brasileiros que não têm acesso à educação, saúde e consumo. E, diz ele, “isso só vai acontecer se ocorrer, primeiro, um dinamismo do crescimento e, segundo, se houver uma distribuição eqüitativa da renda”,

“O país cresceu, industrializou-se e ao mesmo tempo há uma massa tão grande de subempregados”, disse Celso Furtado na entrevista que abre o volume publicado pelo IBGE. O intenso crescimento econômico do século passado, um dos maiores do mundo, foi impulsionado pela industrialização. Hoje, mais de 70% da mão-de-obra estão nas cidades; 55% de trabalhadores estão sem direitos, na informalidade, e existem mais mulheres no mercado. O Instituto detectou uma mudança crucial no comportamento das empresas brasileiras. Até a década de 80, os postos de trabalho destruídos pelas crises eram recriados nos períodos de crescimento econômico. A partir dos anos 90, grande parte dos postos de trabalho eliminados só ressurgiu na informalidade, isto é, ocupados por trabalhadores sem carteira assinada.

A digestão do volume de dados publicados neste volume levará algum tempo, como o próprio IBGE reconhece. Ainda há muitos cruzamentos de dados e estudos específicos por serem feitos. Entre eles, um estudo mais acurado sobre o acesso dos trabalhadores à proteção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e sobre a evolução do sindicalismo.

As primeiras estatísticas oficiais sobre sindicalismo, trabalho e emprego apareceram a partir de 1936. Continham dados sobre a emissão de Carteiras de Trabalho, sindicatos reconhecidos pelo governo, negociações e convenções trabalhistas registradas, além de colônias agrícolas subordinadas ao governo federal. Criada em 1939, a estrutura sindical brasileira só seria modificada significativamente com a Constituição de 1988. Durante os regimes autoritários, os sindicatos podem ter subestimado seu número de associados, ganhando, com isso, certa margem de manobra em sua contabilidade, sempre fiscalizada pelo governo federal. De fato, enquanto a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) de 1973 estimava em quase 37 milhões a população ocupada do país, o inquérito sindical reportava a existência de 3,2 milhões de trabalhadores sindicalizados, o que implica numa taxa de sindicalização de 9% – considerada baixa demais. Já no período democrático posterior a 1988, pode ter ocorrido o inverso: os sindicatos recenseados pelo IBGE informaram uma taxa de sindicalização superior a 35%, enquanto a PNAD, no mesmo período, detectou que, no máximo, 25% dos trabalhadores estavam filiados a sindicatos e associações de classe.

Estatísticas do século XX registra a expressiva melhoria na qualidade de vida dos brasileiros ao longo do século XX. A expectativa de vida pulou, naquele período, de pouco mais de 30 anos para cerca de 70. O país ficou mais velho, urbano, feminino, alfabetizado e industrializado. Por um lado, a mortalidade infantil caiu. Mas, por outro, 6,1% ainda morrem de infecções típicas do Terceiro Mundo. O país teve um acelerado aumento populacional, na primeira metade do século, e uma queda forte da natalidade, na segunda metade. Há mais pessoas na escola, mas a qualidade do ensino piorou. O crescimento populacional não foi acompanhado de melhorias na infra-estrutura das cidades. Isso gerou ocupação desordenada do solo e déficit habitacional. O Brasil não conseguiu eliminar doenças como tuberculose e malária, que herdara do século XIX, e incorporou males modernos como doenças crônicas e degenerativas. Doenças cerebrovasculares, circulatórias e cardíacas, juntas, respondem por 23% das mortes.

A violência foi a terceira maior causa de morte de brasileiros. O país ficou mais armado e violento. Em 1907, todos os presos na então capital federal (Rio de Janeiro) tinham sido condenados por delitos contra a pessoa. Entre os 2.833 sentenciados, 2.422 haviam cometido assassinato; 53, tentativa de homicídio; 223, lesão corporal; e 135, o que chamavam de violência carnal (estupro). Em 1985, havia 39.609 presos, 57,8% deles por crimes contra o patrimônio (que só aparecem nas estatísticas a partir de 1943), e 26,5% por crimes contra a pessoa. O tráfico de entorpecentes surge nos anuários somente a partir da década de 60 – e, assim mesmo, como crime contra a Saúde Pública. De 1965 a 1985, no entanto, o número de condenações por tráfico triplicou. Em 1939, foram registrados apenas 324 homicídios com armas de fogo no Rio de Janeiro. A partir dos anos 60, o uso de arma de fogo deixou de ser contabilizado, por ter se disseminado pelos mais variados crimes.

Outro aspecto crucial da vida brasileira, ali registrado, é a evolução econômica cuja marca foi, ao longo do século, a inflação. A alta dos preços acumulada mostra que, se um produto custasse R$ 1 em 1901, seria vendido no ano 2000 por R$ 11 quatrilhões (o zero seguido de quinze zeros, antes da vírgula!). As taxas inflacionárias entraram em curva descendente na última década, assim como a renda do trabalhador. A inflação dobrou como média anual entre os anos 30 e os anos 40. A partir daí, cada década foi pior que a anterior. De 90 a 95, a média anual de inflação foi de 764%; nos últimos cinco anos do século, essa média caiu para 8,6%. A inflação anual média no século foi de 45,2%. A inflação alta levou o país a conviver, ao longo do século, com nove moedas diferentes, sem contar os cortes de zero: réis, a que durou mais, de 1889 a 1942; depois foi adotado o cruzeiro, que também teve uma vida relativamente longa, de 1942 a 1967; foi substituído pelo cruzeiro novo, que durou de 1967 a 1970), voltando a ser denominado cruzeiro (1970 a 1986); começou então uma série de unidades monetárias efêmeras, resultado da inflação desenfreada e dos esforços para controlá-la: cruzado, de 1986 a 1989; cruzado novo, de 1989 a 1990; outra vez cruzeiro, de 1990 a 1993; cruzeiro real, de 1993 a 1994; e real, a moeda atual, desde 1994.

Sem acompanhar a alta da inflação, os salários tiveram uma perda real enorme desde a criação do salário mínimo, em julho de 1940. Comparados com os valores de 1959, quando o valor do salário mínimo alcançou seu ponto mais alto, a perda foi de 50% no Rio de Janeiro e em São Paulo.
O valor do salário mínimo não acompanhou também o intenso crescimento do PIB que, ao longo no século, teve uma variação anual média de 4,8%, correspondendo a uma elevação do PIB per capita de 2,5% ao ano. A pior crise de crescimento ocorreu entre 1981 e 1984, quando o PIB per capita recuou 12%. Mas, segundo o IBGE, a crise mais prolongada, no século, foi a de 1988 a 1994.

“Para financiar o crescimento de suas despesas, o governo brasileiro realizou, durante o século XX, diversas reformas tributárias (em 1934,1946,1967 e 1988)”, diz o IBGE, indicando que o Estado aumentou despesas e elevou a carga tributária. De 1920 a 1958, ela subiu de 7% a 19% do PIB; hoje está em torno de 37%. O financiamento de longo prazo do Brasil vem basicamente do Estado; na última metade, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os bancos privados sempre foram acanhados no financiamento do investimento.

A participação do Brasil nas vendas externas mundiais oscilou entre 1,5% a 2% no período. De 1971 a 1980 e entre 1995 e 2000 foram registrados déficits (importações maiores que exportações) substanciais na balança comercial.

Até 1960, as vendas externas concentravam-se em café (principalmente), borracha e algodão – isto é, alimentos e matérias primas, de baixo valor agregado. Foi entre 1940 e 1945 que os produtos industrializados passaram a ter participação expressiva nas exportações, com média de 44% do total exportado no período. E o principal mercado para nossos produtos continuavam a ser Estados Unidos. Nos primeiros 30 anos do século, esse mercado era formado por apenas oito países, que compravam mais de 90% das exportações brasileiras. Com a Segunda Guerra (1939-1945) teve início a diversificação das exportações para os países da América Latina. O crescimento foi tão grande que permitiu ao governo Vargas equacionar, em 1943/1944, o problema da dívida externa, que levara o país a decretar a moratória em 1937.

Nos 100 anos retratados em Estatísticas do Século XX, o Brasil deu um salto. Era um país de “vocação agrícola”, recém-saído da escravidão, com uma industrialização incipiente e limitada, e com a imensa maioria da população morando no campo ou dependendo da economia agrária. No final do século, estava entre as 10 maiores economias do planeta; tornou-se país industrial e urbano, no qual convivem contraditoriamente alguns traços da modernidade mais avançada com situações de atraso e miséria muito profundas. Um país agudamente desigual, que viveu uma transformação econômica profunda, que lutou ao longo do século para alcançar liberdades democráticas hoje vigentes. Mas que ainda precisa transformar estas conquistas em uma mudança social igualmente profunda, que incorpore todos os brasileiros aos benefícios do progresso. E que deixe para trás a nefasta marca da desigualdade que o Brasil ainda mantinha como sua característica no final do século XX. essa mudança correspondeu à substituição do Império pela República, um ano depois. Foi uma mudança que abriu possibilidades de enorme renovação em nosso país. Foram criadas assim as condições institucionais para o crescimento capitalista, introduzindo alterações legais que permitiram e garantiram o investimento capitalista e introduziram o mercado de trabalho regulado por uma draconiana lei de locação de mão de obra. O crescimento vertiginoso do Brasil naquele século resultou daquela reorganização da vida nacional, e refletiu seu ritmo, numa revolução a “fogo lento” que se desdobrou por algumas décadas. Apesar da mudança na forma de organização do trabalho e no sistema político, a disputa entre setores progressistas, nacionalistas e democráticos contra a velha oligarquia agroexportadora e financeira, que havia dominado no Império, foi vencida por estas forças do atraso que, desde os governos de Prudente de Morais e Campos Salles impuseram ao país uma política liberal que subordinava a economia aos interesses do imperialismo, criava obstáculos para sua industrialização, preconizava o afastamento do Estado das atividades econômicas e impedia o desenvolvimento maior do país.

Foi só depois de 1930, com a derrota daquelas oligarquias e de sua política liberal, que as velhas relações de produção começaram a ser de fato destravadas e o país pôde manifestar sua vocação para o crescimento. E, neste ponto, fica nítida a importância do papel do Estado como promotor do desenvolvimento econômico. O Brasil cresceu aceleradamente justamente no período em que, mal ou bem, o Estado desempenhou esse papel. Nos dois outros, de predomínio liberal e “Estado mínimo” (de 1901 a 1930, e de 1980 a 2000), o crescimento foi medíocre.

Entre 1901 e 1930, o PIB cresceu 3 vezes; no meio século em que predominou aquilo que convencionalmente se chama de Era Vargas, o PIB cresceu 23 (vinte e três) vezes. Foi uma época em que, provavelmente, o Brasil foi campeão mundial de crescimento. Entre 1980 e 2000, período em que a política neoliberal comandou o Estado brasileiro, o crescimento foi menos que medíocre, e o PIB brasileiro cresceu apenas 1,5 vezes. Não chegou sequer a dobrar em 20 anos, quebrando pela primeira vez o ritmo de crescimento que havia marcado o século.

Dividindo o século em períodos de 20 anos, é possível notar a mesma tendência no PIB per capita, cujo crescimento médio anual cresceu, período a período, até 1980, quando teve uma queda brutal.
Outro aspecto do desenvolvimento brasileiro naqueles cem anos foi a persistente dependência externa do país, traduzida em números gigantescos. Em 1900, o endividamento externo podia ser considerado modesto, diz Marcelo de Paiva Abreu, e a relação entre dívida externa e exportações era inferior a 2,0.

Com a crise de 1928, essa relação, chegando a 3.0, cresceu ainda mais na grande depressão, alcançando 5,0 na grande depressão. “O primeiro longo ciclo de endividamento brasileiro foi concluído em 1943 com um acordo definitivo que cortou pela metade o valor nominal da dívida externa. Com o acesso ao mercado de capitais interrompido, a razão dívida-exportações caiu a 0,3 no início dos anos de 1950”. Mas, em 1960, voltou a crescer, alcançando outra vez 3,0. “Novo período de endividamento externo voluntário com o setor financeiro privado estendeu-se de 1967 até 1982, quando ocorreu nova crise sistêmica, levando a razão dívida bruta-exportações a mais de 4,0 no início dos anos de 1980 e a um pico de 5,0 em 1986. Houve uma nova reestruturação em 1993-1994 na qual foram abatidos cerca de 16% do valor nominal da dívida, correspondentes a valor de face a redução de juros. No final dos anos de 1990, a razão dívida bruta-exportações estava de novo acima de 4,5” (Marcelo de Abreu Paiva, idem, p. 336). Isto é, estava de novo em patamares semelhantes aos da crise de 1929. A dependência externa manifesta-se também no volume crescente dos investimentos estrangeiros. Em 1900, eles alcançavam US$ 200 milhões correntes, ou 120% das exportações. Em 1999, o valor era de US$ 116 bilhões, ou 2,4 vezes o valor das exportações (idem).

“O Brasil cresceu muito mas no essencial não se transformou”, diz o economista Celso Furtado na longa entrevista que abre o volume publicado pelo IBGE, onde ele – que, além de cientista, foi um protagonista e um observador agudo da história do país – faz uma avaliação em profundidade da evolução do país ao longo do século XX. E constata: o Brasil de hoje “é uma das dez maiores economias do mundo e tem um sistema industrial complexo”, mas a “parte da população que não participa dos benefícios do desenvolvimento é tão grande que este passa a ser um dos principais problemas, senão o prioritário, de quem governa o Brasil”. Por isso, diz, desenvolvimento no Brasil de hoje “é essencialmente solucionar o problema social. Este é o desenvolvimento sustentável. Não basta apenas aumentar o produto”. Um país “pode crescer muito, como o Brasil cresceu, e continuar subdesenvolvido”, diz. E uma das soluções é o aproveitamento de extensas áreas de terras que, hoje, ficam à margem da produção. Para isso, Furtado prega uma “política rural de outro tipo”, para atrair gente para trabalhar no campo, “com base em um modelo novo”: “O desafio será criar emprego no campo sem inviabilizar a produção nas grandes propriedades. É preciso criar uma agricultura variada: produção comercial e familiar”. Defendendo a intervenção ativa do Estado para promover o desenvolvimento, o decano dos economistas brasileiros não tem dúvidas: a situação de atraso do Brasil exige a ação do governo, pois não há como “sair dessa situação pelo mercado. Este não é suficiente, pois não fará as transformações estruturais necessárias. O mercado concentra renda e é preciso desconcentrar”. Ele também relativiza a apregoada necessidade de recursos externos para desenvolver o país. “Há uma abundância tão grande de recursos naturais, de mão-de-obra subempregada, de capacidade técnica, e mesmo científica! Então, por que não buscar um caminho próprio para se desenvolver? Entre a década de 30 e a de 70 o Brasil se desenvolveu fortemente, foi um dos países que mais cresceram no mundo”.

Isso já ocorreu no passado, como os dados coletados e publicados pelo IBGE demonstram. Numa época em que o Brasil sofreu as conseqüências de uma política internacional de redução de espaço, voltou-se para o mercado interno, deixou de crescer segundo a linha tradicional das exportações de produtos primários e das importações de manufaturas, e investiu na criação de um mercado interno. Aí descobriu o enorme potencial de seu mercado interno, graças também à política de incentivos. Nessa época, ainda se podia ter protecionismo, política cambial, etc.

Nos últimos dez ou vinte anos difundiu-se o dogma de que “mercado interno era coisa secundária, que não favorecia o avanço tecnológico”. Mas o “Brasil terá de voltar a pensar no seu mercado interno e abrir, assim, espaço para crescer”. “Qualquer política econômica, para ser eficaz, tem de levar em conta o consumo de massa, essencialmente, popular”, diz. Hoje, esse caminho pode ser mais difícil, pensa. “O Brasil avançou em muitos setores, mas perdeu em capacidade de autogoverno. Hoje tem dificuldade para se defender da grande vulnerabilidade do setor externo”. “O Brasil renunciou a tudo isso, renunciou à alavanca de poder. Hoje, o governo receia uma corrida contra o real.” “Mais grave, contudo, é a perda das alavancas de poder. Precisamos voltar a ter uma política cambial ativa. O FMI é um fantasma usado por nações poderosas para que as indefesas não tenham uma política própria.” E, para superar o subdesenvolvimento, não basta o crescimento – “hoje vemos isso com clareza”, reconhece. Só se consegue isso “mediante reformas estruturais importantes”. “O que antes era tachado de pessimismo, derrotismo, hoje revela um amadurecimento, uma consciência de que devemos transformar este País”.

Isto é, o país cresceu com as próprias forças. Esta é a principal lição daqueles números, reforçada pela análise de Celso Furtado, e que os brasileiros não podem esquecer, principalmente aqueles que têm responsabilidade de governo e podem influir na tomada de decisões para que os investimentos sejam destravados e o desenvolvimento volte: a ladainha neoliberal representa os interesses do atraso e dos setores cujos interesses estão ligados à manutenção da situação de dependência e subordinação do país. Contra aquela ladainha, os números mostram que o país só cumpriu sua vocação para o crescimento quando o Estado brasileiro patrocinou políticas de desenvolvimento.

José Carlos Ruy é jornalista e Editor de Princípios.

Nota
(1) IBGE. Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.

Legendas:
Primeira imagem.
Marcha pela paz (1951), de Carlos Scliar.

EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46