Que importância tem o lazer na vida das pessoas de uma cidade? E esta cidade, como responde ao desafio de atender à demanda de lazer dos seus cidadãos? Estas são questões que vêm ganhando interesse crescente no debate sobre políticas públicas no âmbito das gestões municipais. E nem poderia ser diferente, já que é na cidade que homens e mulheres procuram organizar sua vida cotidiana, definindo seu local de moradia e emprego, buscando os serviços de educação, saúde e lazer.

O foco sobre a questão do lazer, entretanto, é relativamente recente no Brasil. Seja porque o fenômeno de urbanização acelerada pelo qual o país passou nas últimas décadas trouxe à população e aos poderes públicos questões tidas como mais urgentes (direito à moradia, acesso à escola e creches, transporte, saneamento e atendimento à saúde), seja porque tradicionalmente o lazer era em geral pensado e concebido como um bem acessível mediante aquisição privada. Ir ao cinema, teatro ou show musical, freqüentar um clube, nadar em uma piscina era uma questão de poder pagar por um ingresso ou pagar um título e uma mensalidade de sócio. Aos mais pobres, estava reservado o campinho de futebol, o encontro familiar e as atividades comunitárias festivas.

Vários fatores vieram alterar esse enfoque restritivo, levando cada vez mais a sociedade a encarar o lazer – e o que ele significa de acesso à cultura, ao esporte, às atividades físicas e lúdicas, de usufruir o tempo livre – como uma necessidade de todos, um direito de cidadania, um dever do poder público. Podemos citar alguns:

1 Em 60 anos, a população que mora nas cidades saltou de 31,20% (em 1940) para 81,25% (em 2000). Formaram-se enormes áreas conurbadas em torno das metrópoles, em geral das capitais. A migração acelerada criou enorme pressão por moradia e explodiram as ocupações, as favelas e os loteamentos clandestinos. Nestas áreas, superocupadas por moradias precárias, pequenas e praticamente coladas umas às outras, os espaços comuns e públicos que restaram foram utilizados para construção de escolas e postos de saúde, prioridade social para a população. Para o lazer, quando muito, a própria população preservou o terreno do campinho de futebol.
Mesmo nos conjuntos habitacionais populares, a realidade era semelhante, conforme aponta documento da Cohab (1) de São Paulo:

“Quem já teve oportunidade de morar ou visitar algum dos conjuntos habitacionais da Cohab, certamente sentiu impacto ao se deparar com uma estética opressiva, constituída por blocos de apartamentos, sem tratamento paisagístico agradável, com carência de áreas verdes, agravada pela precária infra-estrutura e insuficiente oferta de equipamentos públicos. Essa estética opressiva adotada pela Cohab, devido à política habitacional em vigor na época da criação da Companhia, em 1965, foi pautada pela produção em massa, em detrimento da qualidade do espaço produzido. São típicas deste período as desapropriações de grandes áreas ermas para edificação de grandes conjuntos, com blocos de apartamento que se repetem um após outro”.

A partir de 79, com o estabelecimento da lei nacional de parcelamento do solo, o loteador passou a ter obrigação de entregar os lotes em conjunto com outros benefícios, entre eles praças e áreas livres e verdes, consideradas como “áreas comuns do povo”.

Ou seja, depois de ter ocorrido verdadeira voragem pela ocupação habitacional nas cidades, surge a consciência da necessidade do planejamento urbano que leve em conta a permanência ou criação de áreas livres e de lazer. A própria população, mesmo a mais carente, demanda de forma organizada a instalação de praças, parques infantis, quadras esportivas e pistas de skate nos poucos terrenos que ainda restam.

2 Está bastante demonstrado que os bairros e distritos das cidades onde se registra maior índice de violência e criminalidade são também aqueles que contam com o menor número de espaços, instalações e alternativas de lazer. Como em geral também estão presentes nessas regiões outros indicadores sociais como alta taxa de desemprego, de evasão escolar, de analfabetismo, impõe-se aos governos de todas as esferas a execução de políticas públicas de inclusão social que contemplem programas de geração de renda e trabalho, atendimento universal de educação e saúde, e programas culturais, esportivos, recreativos e de lazer, sobretudo voltados a jovens e crianças, como fator de proteção ou recuperação da infância e da adolescência em situação de risco. Crescentemente este desafio é compartilhado por ONGs, universidades, igrejas, setor privado e instituições diversas.

3 As condições materiais de vida nas grandes e médias cidades e o padrão de trabalho e comportamento ditado pelas sociedades capitalistas transformam o dia-a-dia do cidadão em uma maratona fatigante para cumprir horários e obrigações no trabalho, na escola, nas atividades domésticas, permeadas por horas e horas necessárias ao deslocamento em automóveis ou transporte coletivo. De tal modo que tanto o estresse como o sedentarismo atingem hoje milhões de pessoas, com grande impacto na saúde física e mental e na qualidade de vida em geral. Ao se aperceberem disso, é cada vez maior o número de pessoas que procuram as academias, os centros esportivos, os clubes e os parques, para praticar algum tipo de atividade física e esporte ou simplesmente para passear e espairecer.

Esses e outros fatores que a eles se ligam vêm transformando o tema do lazer em uma questão da maior atualidade, que exige elaboração e implementação de políticas públicas próprias, no âmbito da gestão e do desenvolvimento de cidades mais humanas.
São Paulo, cidade-desafio

A cidade de São Paulo, com seus 10,5 milhões de habitantes, é, no contexto brasileiro, o maior desafio para o atendimento das demandas de lazer da sua população. É uma cidade sem praias, e os rios que a cortam, e que no passado integraram a vida esportiva da população, ou foram canalizados ou se encontram em longo e complexo processo de recuperação. As áreas verdes são escassas e mal distribuídas. É uma cidade que continua, incessantemente, se construindo. No período de 1991 a 2000, a área construída cresceu em todos os distritos do município em mais de 95 milhões de m2, um acréscimo de 32,84%. Destes, o maior incremento foi o da área residencial construída – aproximadamente 59 milhões de m2, sendo 33 milhões deles verticalizados (2).

Neste mesmo período, a área construída quanto ao uso escola + especial (hotel, hospital) + coletivo (cinema, teatro, clube, templo), teve crescimento de apenas 2,52% do total.
A desigualdade social da população de São Paulo pode ser medida por meio do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pela ONU, que compõe quatro aspectos da vida social (esperança de vida ao nascer, taxa de alfabetização dos adultos, taxa de matrícula por nível de ensino e renda per capita). Dos 96 distritos da capital paulista, 38 estão situados na região de muito baixo desenvolvimento humano3.

Ao longo da década de 90, a região com baixo desenvolvimento humano teve sua população acrescida em 4% e aquela com IDH muito baixo alcançou 22% de crescimento populacional. Também neste período, aumentou em 20% o número de chefes de família abaixo da linha da pobreza. Estima-se ainda que 309 mil famílias residentes no município de São Paulo (correspondente a 10,1% do total) têm crianças e adolescentes entre zero e 14 anos de idade e renda de até três salários mínimos mensais. São Paulo tem mais de um milhão de crianças matriculadas apenas na rede pública municipal (da creche ao ensino fundamental).

É interessante também conhecer as indicações apontadas pelo Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), criado pela Fundação Seade, que considera seis variáveis: taxa de crescimento populacional, concentração de jovens entre 15 e 19 anos, taxa de homicídio por 100 mil habitantes, mães com idade entre 14 e 17 anos, valor do rendimento do chefe de família e quantidade de adolescentes que não freqüentam a escola. Através dele foi possível estimar que 336 mil adolescentes na cidade de São Paulo estão cotidianamente expostos a situações que facilitam o contágio pela violência. E nos dois grupos de bairros onde foi considerado que os jovens estão mais vulneráveis são exatamente aqueles onde vivem 65% dos jovens entre 15 e 19 anos (3).

Estamos, portanto, tratando de uma cidade com alta densidade populacional, com seu espaço intensivamente ocupado e construído, desproporcionalmente carente de áreas verdes e de áreas de uso livre e comum. Para a população de renda alta, média alta e média, são amplamente ofertados serviços privados e/ou associativos de lazer na área da cultura e entretenimento, da prática de atividade física e esportiva, passeios e viagens. Para a grande maioria da população, entretanto, é preciso dirigir os esforços públicos para garantir acesso e alternativas de programas e atividades de lazer gratuitas e diversificadas.

Pensando a cidade como um todo, uma estratégia de democratização do acesso ao lazer passa necessariamente pela manutenção, qualificação e ampliação dos espaços públicos destinados a este fim.

As ações de recuperação, conservação e qualificação dos espaços públicos destinados ao lazer da população permeiam toda a gestão municipal. Em primeiro lugar, preservar e defender as áreas já existentes. O Plano Diretor da cidade estabeleceu claramente todas as áreas de preservação ambiental e aquelas destinadas ao uso livre e comum.

Reservou ainda algumas áreas que não tinham definição clara de uso, para projetos esportivos, ambientais ou culturais. Mesmo em novos projetos urbanos (remoção de favelas, construção de piscinões, de escolas ou creches, por exemplo) que atingem áreas esportivas e de lazer, procura-se preservá-las ou realocá-las na mesma região.

Em segundo lugar, recuperar as áreas e instalações deterioradas pelo uso e por falta de manutenção e investimentos permanentes, fruto de descaso administrativo tão comum em várias gestões anteriores. Em São Paulo este desafio é sobretudo o de recuperar os 31 parques municipais, as praças públicas e os centros esportivos. No início de 2001, a cidade tinha mais da metade das suas 61 piscinas públicas fechadas e seis ginásios poliesportivos interditados. O compromisso de reformar estas instalações e “conquistar” a população para usá-las, objetivando atingir sua ocupação plena, é uma diretriz administrativa central.

Em terceiro lugar está a busca por qualificar os espaços e equipamentos existentes, permitindo novos usos e atendimento de públicos diferenciados. Melhorar as condições de iluminação e segurança aumenta não só a freqüência de usuários como também amplia o número de horas de funcionamento. Na recuperação das grandes piscinas públicas estão sendo incluídos atrativos de recreação como toboáguas e cascatas. Os parques estão inserindo mais espaços esportivos e programas de atividade física. O maior parque da cidade, o Ibirapuera, terá seu Planetário de volta, assim como o Parque do Carmo, o maior da zona leste, terá um novo Planetário. A recuperação e o embelezamento paisagístico das praças públicas estão sendo feitos por toda a cidade por meio da ação das subprefeituras e quase sempre incluem algo novo como espaço para apresentações culturais, quadras esportivas, pistas de skate ou parques infantis.

CEUs, inclusão social por meio de educação, cultura e esporte

Todas as ações anteriores apontadas têm enorme impacto para a melhoria do acesso da população ao lazer com reflexo na sua qualidade de vida. Revelam também bom senso e rigor administrativo: com recursos orçamentários escassos, prioridade para recuperar e otimizar as instalações já existentes. Entretanto, é flagrante que a dinâmica social da cidade impõe mais do que isso. Por um lado, pelo fato de que nos últimos dez anos a população vitimada pela crise social e pelo desemprego foi sendo obrigada a deslocar-se cada vez mais para a periferia da cidade à procura de habitação mais barata, onde é enorme a defasagem de infra-estrutura, de serviços públicos e principalmente de áreas e equipamentos de lazer. Essas regiões não podem esperar.

De outra parte, os graves problemas que ameaçam crianças e jovens desta mesma periferia exigem intervenção urgente e eficaz da sociedade e do poder público.

Por isso, a cidade precisava de uma estratégia de ampliação da oferta de alternativas de lazer nessas áreas. Isto está sendo feito por meio da criação dos Centros de Educação Unificada, os CEUs.
O CEU é um conjunto de equipamentos públicos integrando educação, cultura e esporte que busca atender aos objetivos de desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, desenvolvimento da comunidade onde está inserido e inovação de experiências educacionais. Deverá ser um pólo mobilizador e reorganizador das relações sociais do bairro, auxiliando na consolidação da identidade local e ampliando as possibilidades de lazer e vivência da população.

Os CEUs estão localizados na periferia da cidade, em áreas com alto grau de exclusão social, de grande densidade populacional e de forte demanda escolar. Durante o ano de 2003, a prefeitura construiu e pôs em funcionamento 21 CEUs.
Cada unidade tem área aproximada de 13 mil m2 onde são construídos um bloco didático, um cultural e um esportivo.

O bloco didático abriga uma creche, uma Escola de Educação Infantil, uma Escola de Ensino Fundamental e Escola de Jovens e Adultos (período noturno), totalizando uma oferta de 2.400 vagas.
O bloco cultural compreende teatro de 450 lugares para espetáculos e projeção de cinema, biblioteca, salas para música e dança, orquestra de cordas, big band e fanfarra, oficinas de fotografia e estúdios multimídia.

O bloco esportivo consta de três piscinas, sendo uma semi-olímpica aquecida, ginásio poliesportivo coberto, quadras poliesportivas externas, pista de skate e, em alguns, campo de futebol. Além disso, o complexo inclui um telecentro e um centro comunitário.

O CEU funciona durante toda a semana com atividades orientadas, nos três períodos, e nos finais de semana para o uso livre da comunidade, seja na área esportiva seja na cultural, com apresentação de teatro, dança, música e cinema.

Desta forma, o CEU, além de atender suas próprias crianças e jovens, também atende aqueles que estão matriculados nas escolas da região e a comunidade em geral. A gestão do equipamento é feita de modo integrado entre todos os segmentos de atividade, inclusive com representantes da comunidade.

Com esta iniciativa, a cidade de São Paulo ganhou enorme impulso no número de equipamentos destinados ao lazer. De sete teatros municipais saltou para 28, e ganhou mais 21 bibliotecas. O número de piscinas públicas cresceu em 100% e temos mais 21 ginásios cobertos. O mais importante é que todas estas instalações novas, de boa qualidade, encontram-se em áreas muito distantes do centro da cidade, onde atualmente se localiza a infra-estrutura cultural e esportiva da cidade, tornando a rede de lazer mais acessível à população de menor renda, bem próximo ao seu local de moradia.

O lazer possível

Este conjunto de ações de recuperação, conservação, qualificação e ampliação dos espaços e equipamentos públicos destinados ao lazer faz parte do programa de trabalho de toda a administração municipal de São Paulo. Permeia o esforço de todas as áreas com o objetivo de criar alternativas de melhoria da qualidade de vida na metrópole e, se somados às iniciativas de valorização dos recursos humanos necessários para desenvolver atividades recreativas e de lazer, bem como à melhoria e ao barateamento do transporte público, certamente resultarão em enormes benefícios para a população da cidade.

Nádia Campeão é Secretária Municipal de Esportes, Lazer e Recreação de São Paulo/SP.

Notas
(1) Caderno Viver Melhor, da Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo. São Paulo: 2001, pág. 7.
(2) Caderno O uso do solo segundo o Cadastro Territorial e Predial – Distritos Municipais de São Paulo, 1991-2000, da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo: 2002, pág. 7.
(3) Sobre estes dados, ver o livro Outra cidade é possível – alternativas de inclusão social em São Paulo, organizado por Marcio Pochmann. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 58, 59, 60, 61