Em outubro deste ano o povo uruguaio estará em condições de concretizar os sonhos, aspirações e combates de gerações de lutadores e organizações sociais, conquistando o governo nacional.
Tais condições – que fomos capazes de criar – se materializarão na medida em que trabalharmos de modo ousado, inteligente e abnegado para conquistar o objetivo desta etapa. Insistiremos obstinadamente nessa conquista porque temos muito claro que nunca ninguém deu nada de graça aos povos e, como afirmava nosso eminente José Artigas, “não podemos esperar algo a não ser de nós mesmos”.

Chegamos a este momento decisivo na vida do país porque antes de nós houve quem soube perscrutar o caminho, trabalhando planejadamente para construir os instrumentos de unidade, sem os quais seria impossível a forja de uma perspectiva transformadora. Portanto, aqueles primeiros sindicatos formados por trabalhadores emigrantes – em sua maioria homens, que chegaram no Uruguai no final do século XIX com idéias de forte estampa anarquista – foram sendo consolidados, superando em meio às lutas reivindicativas e ao debate ideológico permanente a desunião e os enfrentamentos, a pelegagem sindical. Em meados dos anos 1960, eles organizaram a Convenção Nacional dos Trabalhadores (CNT).

A consigna Unidade, Solidariedade e Luta – lema que define a Central Única – foi se desenvolvendo no seio do povo, num marco de alianças com os movimentos estudantis e as classes médias até conseguir, hoje, juntar – em torno de uma plataforma de soluções para o país – empresários da agroindústria, da agropecuária, do pequeno, médio e grande comércio nacional agredidos duramente pela estratégia neoliberal, aplicada de modo brutal pelos governos de turno.

Nosso Partido Comunista, impulsionador de primeira linha desse processo – conformação, desenvolvimento e defesa da unidade da classe operária, dos assalariados e dos trabalhadores em geral –, bem como, nesta etapa, da construção de acordos e alianças com a chamada Concertação para o Crescimento – que agrupa diversas agremiações dos setores empresariais da cidade e do campo acima mencionados – soube descrever a perspectiva da unidade política.

Em meados dos anos 1950 convoca a unidade de ação socialista-comunista que, se não se realiza ao menos concretiza as duas primeiras experiências unitárias no país: a União Popular, constituída pelo PS e seus aliados; e a Frente Esquerda de Libertação, Lista 1001, na qual, nós, comunistas, entramos em acordo em torno de um programa estratégico com setores e personalidades desligados dos chamados partidos tradicionais. Nossa experiência unitária – da 1001, como é conhecida popularmente – teve um importante avanço, demonstrando no plano eleitoral de então que a unidade devia ocorrer sem exclusões. De modo mais explícito: a unidade com os comunistas não amedrontava a não ser que progredisse até um instrumento maior.

Fomos capazes de compreender – e fazer compreender – a necessidade de alcançar no plano político a unidade que se formou nas ruas, nas lutas por liberdades, democracia, reivindicações trabalhistas; em defesa da escola pública e da universidade da República; no enfrentamento aos prolegômenos da ditadura que, sob o governo de uma personagem de triste memória – Jorge Pacheco Areco –, implantou medidas se segurança, prendeu dirigentes sindicais e assassinou estudantes.

Para nosso Partido, o golpe de Estado de 27 de junho de 1973 é típico de uma ditadura fascista, isto é, ditadura do capital financeiro que, para alcançar seus objetivos, arrasa a ferro e fogo tudo o que seja movimento popular organizado. Diferentemente das tentativas de esconder a memória histórica, por parte do bloco dominante no poder, e, lamentavelmente, de certos setores da esquerda, não foi uma “guerra” entre a guerrilha (liquidada no momento do golpe), de um lado, e as Forças Armadas, de outro. Tratava-se de um enfrentamento entre o monopólio do capital financeiro e o imperialismo ianque, impulsionador das ditaduras do Cone Sul.

O povo uruguaio, com sua Central de Trabalhadores (CNT) à frente, responde ao golpe com uma greve geral de 15 dias que paralisou o país e, determinando que a ditadura já nascesse ferida de morte – conforme análise do nosso Partido – por não poder contar em nenhum momento com o respaldo popular. Do nosso ponto de vista, ao caracterizá-la como fascista – questão que em seu momento atravessou o próprio Movimento Comunista – afirmamos que, pelo menos no Uruguai, o traço com que nos distinguiam como um partido de massas que a respaldava, foi protagonizado pelas Forças Armadas.

Essa caracterização determinou as tarefas do momento: unir, fazer convergir todos(as) os(as)  uruguaios(as) democráticos(as) contra a ditadura. Tratava-se de alcançar a maior amplitude possível para derrotar o fascismo e, depois, chegar às condições para uma autêntica saída democrática de modo que até mesmo os “espinhos envenenados do fascismo” (definição do PCU), cravados nesse processo de saída democrática, fossem totalmente destruídos. Nesse marco se inscreve a derrota da direita no plebiscito organizado pelos ditadores, em 1980, o chamado “rio de liberdade” – manifestação que atravessou as ruas da capital, unindo os mais amplos setores sociais e políticos.

Mesmo com milhares de assassinados sob tortura, desaparecidos e aprisionados a Central de Trabalhadores foi capaz de permanecer unida, ligando o Plenário Intersindical de Trabalhadores – com jovens sindicalistas – o PIT, ao velho e combativo tronco da CNT. Assim, o atual PIT-CNT continua sendo a única central que – em outras condições de desemprego aberto, ou camuflado, pelo trabalho “informal”; fragmentação dos setores de atividade; desaparecimento das grandes concentrações de trabalhadores – continua o processo de lutas por salário e emprego, saúde, educação, moradia, em defesa das leis trabalhistas conquistadas e hoje violadas sistematicamente. E elabora um programa para propor, a partir de agora, o possível futuro governo da Frente Ampla, com seus aliados do Encontro Progressista e do Novo Espaço (setor público recentemente definido por nosso projeto).

A Frente Ampla, proscrita, com seus principais dirigentes presos, clandestinos ou exilados, sofreu, além disso, um embate ideológico por parte daqueles que sustentavam que esta deveria desaparecer para serem formadas aglutinações que, quiçá poderiam ser mais amplas perdendo a profundidade de seu programa e princípios constitutivos de 1971. A FA, peculiar criação do nosso povo, se caracteriza, entre outras coisas, por ser ao mesmo tempo uma coalizão de partidos e setores políticos diferentes e um movimento – com comitês de base em cada bairro, povoado, localidade.

Os frenteamplistas fundam suas raízes na realidade concreta, com veios comunicantes e ao mesmo tempo – apesar de a recriarem – portadores da estratégia geral da Frente. Essa característica não é perfeita nem irremovível, depende do debate ideológico permanente, de suas correlações internas, de concepções que compreendem a condução apenas em nível de acordo de partidos, ou daqueles que, a partir de uma base democratista renegam as mal-chamadas “cúpulas”, sem perceber – uns e outros – que a FA, coalizão e movimento, movimento e coalizão, é uma das chaves de seu crescimento e desenvolvimento, onde estes dois elementos se corrigem e enriquecem um ao outro.

A Frente Ampla é a unidade na diversidade. Nasceu como uma necessidade das lutas do povo, agrupando diferentes princípios políticos, ideológicos, religiosos e vários níveis de objetivos estratégicos; tudo isso, todavia, sobre a base de um programa comum, traços políticos comuns – aos quais se chega em debates democráticos – e de complexas estruturas de decisão, de difícil compreensão para um leitor alheio a seu funcionamento. Mas, funciona. Discutimos ardorosamente, nos enfrentamos em temas de fundo, mas resolvemos democraticamente e, como parte das regras e muito mais do espírito frenteamplista, vamos (também com dificuldades) à luta.

Isto acontece assim há 33 anos. Em grossa análise da grande história podemos dizer que soubemos cumprir as tarefas que nos propusemos. Conquistamos o governo da capital, Montevidéu, já em três oportunidades. E cada vez mais, para os que sustentam que a esquerda é incapaz de governar, obtemos apoio popular, avançamos (não sem dificuldades e nem tão profundamente como gostaríamos) no processo de descentralização política – eixo de nosso governo –, que abre caminho para uma verdadeira participação popular. Devido às peculiaridades macrocefálicas de nosso pequeno país, estamos governando com – e para – a metade dos uruguaios há aproximadamente 15 anos.
Lutamos para defender o patrimônio nacional, as empresas públicas, estratégicas, impedindo em 2003 a venda de nossa refinadora de combustíveis, com um formidável pronunciamento popular. Obtivemos isso porque – para que a lei de entrega pudesse passar por plebiscito – rastreamos o país, pessoa por pessoa, para conseguir 700 mil assinaturas. Depois, na eleição obrigatória, aproximadamente 60% dos cidadãos votaram SIM à alteração da lei.

Dessa forma concebemos a conquista do governo. Este é um ano de duras batalhas, conflitos trabalhistas diversos, fome que alcança dimensões nunca antes conhecidas no Uruguai. Entendemos – como PCU, como Lista 1001 dentro da Frente – que chegaremos ao governo se formos capazes de organizar e mobilizar as grandes maiorias nacionais em torno de um programa que, sendo nosso, devemos desenvolvê-lo, corrigi-lo se necessário e defendê-lo no momento de sua realização.
Conquistaremos o governo convidando ao voto, sem dúvida alguma, já que então permanecem cristalizados o Parlamento e nossa participação nos dois âmbitos; contudo, e fundamentalmente, se conquistarmos milhares de pessoas nas organizações sindicais, sociais, nos comitês de base fortalecidos, para serem partícipes do governo popular.

Para os comunistas uruguaios, a profundidade que o governo da Frente Ampla-Encontro Progressista for capaz de conseguir com nosso apoio – que implica simultaneamente no estímulo para o cumprimento do programa, na defesa face àqueles que não nos abrirão caminho à medida que seus interesses de classe, e pessoais, estejam em jogo –, é parte de uma idéia desenvolvida há tempos: defesa, avanço e aprofundamento da democracia, sinal de um processo que alcance o que denominamos nossa via de aproximação ao socialismo – a Democracia Avançada.

Isso é parte de uma acurada análise do PCU durante décadas que foi posta em tela no estouro da crise do partido em 1992, por aqueles que reduziam a idéia de Democracia Avançada ao institucional sem abranger a complexidade de um processo que implica necessariamente no fortalecimento do tecido social e sua inter-relação com o político, bem como na capacidade de descobrir caminhos de autêntica participação, onde o povo assuma a direção do seu destino.

Diante da crise dos Partidos Comunistas do mundo e da derrota da experiência socialista do Leste europeu, os comunistas uruguaios – depois de reafirmarmos nossa condição enquanto tais, no II Congresso Extraordinário de 1992 –, estabelecemos que, nas novas condições internacionais, continua válida a estratégia que o PCU havia delineado – resumida no parágrafo anterior.

Após alguns anos, durante a reconstrução de nosso partido, a profunda inserção no seio das massas e em nosso papel na Frente, o fazíamos traçando um perfil de uma resposta afirmativa: continuava válido o caminho para uma Democracia Avançada, ao mesmo tempo em que se dava a possibilidade do governo, ligando as lutas em todos os planos com os povos e possíveis governos da região.

Desse modo, saudamos e analisamos com profundo interesse os avanços do povo da Venezuela, as transformações de seu governo; os movimentos multicoloridos do continente; a heróica e digna resposta de Cuba; e festejamos com emoção e esperança o governo do presidente Lula e seus aliados. O Partido Comunista do Uruguai observa atentamente a elaboração teórica e a atuação do PC do Brasil, bem como nos enriquecemos com cada balanço e opinião com que nos brindam – não para copiar mecanicamente, mas para aprender com uma experiência que nos adverte sobre as tarefas que teremos daqui para frente.

A integração de povos e governo, com um olhar latino-americanista, antiimperialista, em beneficio de um desenvolvimento produtivo de nossos países no marco de avanços substanciais da justiça social, preside nosso trabalho e o desenvolvimento de nosso pensamento. Do mesmo modo, valorizamos altamente a possibilidade de comemorarmos nossas experiências, sabendo que cada país possui sua história, suas características e que, em torno de um objetivo final comum, são muitos os matizes, as alternativas, os êxitos que cada um é, e será, capaz de concretizar.

Diante dos novos ventos que atravessam nosso continente, em meio à luta por paz e solidariedade, nos comprometemos em obter um vendaval que arraste os sofrimentos e penúrias da humanidade.

Marina Arismendi é secretária-geral do Partido Comunista do Uruguai. Tradução de Maria Lucilia Ruy.

EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 53, 54, 55