O atual Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Luis Fernandes, é professor-doutor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Até assumir a sua atual função no MCT foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, bem como Diretor Científico da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) de 1999 a 2002.

Ele falou à Princípios sobre algumas das questões que cercam nosso desafio no campo do desenvolvimento científico e tecnológico e sua vinculação com a construção de um projeto nacional soberano Alguns diagnósticos sobre as causas do nosso atraso em relação aos países desenvolvidos na área de ciência e tecnologia já foram realizados no passado. Segundo dados de 1998, em produção científica, registro de patentes e investimentos em pesquisa, três blocos dominam o cenário mundial: América do Norte (sem o México), Ásia industrial (liderada pelo Japão) e Europa. Essas três regiões foram responsáveis, respectivamente, por 36%, 25% e 24% dos investimentos mundiais em pesquisa e desenvolvimento (P&D), que alcançaram a soma de US$ 732,5 bilhões. Como comparação, o Brasil investiu apenas cerca de US$ 1 bilhão. Como o Brasil precisaria atuar nesse contexto?

Luis Fernandes – O fato é que o mundo passou nas últimas décadas por um amplo processo de transformação produtiva e societária – que recebeu nomes distintos, como “revolução técnico-científica”, “terceira revolução industrial”, “revolução da informática” etc. De fato, houve uma mudança na base tecnológica e no padrão de produção. Um dos elementos centrais desse processo é a crescente centralidade da Ciência e Tecnologia na própria produção. Isso conferiu vantagem estratégica na geopolítica mundial àqueles países dominantes que estão na fronteira das inovações tecnológicas que caracterizam o novo padrão, como a telemática (desenvolvimento da informática associado a telecomunicações e seus múltiplos aplicativos). Essas transformações reforçaram, em particular, o poder estrutural dos Estados Unidos na geopolítica mundial, em função do papel dominante desempenhado por suas empresas, com forte patrocínio estatal, na inovação tecnológica das últimas décadas. Após o colapso do mundo socialista e o fim da Guerra Fria, esse poder estrutural foi complementado pela montagem de bloqueios legais no sistema internacional que tratam de impedir os países que não estão na dianteira desses processos de virem a concorrer com as potências centrais. Isso se traduziu, muito concretamente, nas pressões para obrigar os países em desenvolvimento a adequarem sua legislação a padrões de proteção da propriedade intelectual que, na verdade, preservam e consolidam a condição monopolista alcançada por empresas dos países centrais, em particular norte-americanas. Trata-se de tentativa de impor pela força, por meio das normas internacionais que regulam o direito de propriedade, uma “reserva de mercado” global para essas empresas.

O ponto central é que o conhecimento se tornou uma das dimensões cruciais do exercício do poder nas relações internacionais. A assimetria no domínio científico e na capacidade de inovação tecnológica é uma das bases fundamentais da polarização do mundo contemporâneo. Portanto, um país que queira viabilizar seu desenvolvimento tem de conferir importância estratégica à área de Ciência e Tecnologia. Em última instância, isso nos remete às relações de poder no sistema internacional.

Nesse terreno o Brasil tem de ampliar seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Ele investe hoje 1% do PIB, o que é baixo em relação aos países centrais, mas não tão baixo assim em comparação com outros países em desenvolvimento. Contudo, trata-se de patamar insuficiente para o Brasil consolidar nichos científicos e tecnológicos cruciais para o seu desenvolvimento. Um dos objetivos centrais do governo federal e do MCT é viabilizar a ampliação dos investimentos em Ciência e Tecnologia no Brasil para 2% do PIB. Isso abarca não só os investimentos efetuados diretamente pelo poder público em institutos e universidades (onde até hoje se concentra a maior parte da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico no país), mas também os investimentos em ações de Pesquisa e Desenvolvimento em empresas nacionais. O esforço para viabilizar um novo projeto nacional de desenvolvimento exige tanto a interação entre o conhecimento fundamental produzido em instituições públicas de C&T e a sua aplicação em políticas públicas e nichos de mercado, quanto o apoio público direto à inovação em empresas nacionais.

Nossa compreensão, enfim, é de que a Ciência e a Tecnologia compõem dimensão estruturante do desenvolvimento nacional – alavanca crucial para o Brasil superar as desigualdades e vulnerabilidades que marcam a sua inserção no sistema internacional.

Quais os fundamentos para a política nacional de C&T sob a perspectiva de um novo projeto de desenvolvimento para o país?

Luis Fernandes – O ponto de partida é constatar que temos um sistema nacional de ciência e tecnologia bastante complexo e abrangente, montado nos marcos do esforço de desenvolvimento nacional que caracterizou o país da Revolução de 1930 até a crise da dívida na década de 1980. Foi desenvolvido um amplo sistema de pesquisa nas universidades e instituições públicas, bem como políticas exitosas de promoção do desenvolvimento industrial. A FINEP foi estabelecida como agência promotora da inovação tecnológica e construtora de instituições de pesquisa. Foi estruturado um sistema nacional de pós-graduação em torno da Capes no Ministério da Educação. O CNPq foi constituído como importante agência de fomento das atividades de pesquisa. Outra experiência exitosa foi a criação da Embrapa, cuja atuação construiu as atuais vantagens comparativas do nosso agronegócio no mercado mundial. A Petrobras desenvolveu, de forma pioneira, tecnologia de ponta para prospecção de petróleo em águas profundas. A Marinha superou entraves internacionais desenvolvendo a sua própria tecnologia de enriquecimento de urânio para o nosso Programa Nuclear.
Já na Aeronáutica tivemos o esforço que resultou na criação da Embraer e no desenvolvimento de tecnologia nacional de lançamento de foguetes. Em suma, estruturamos um sistema de C&T integrado a um esforço concentrado e prolongado de desenvolvimento nacional.

Como sabemos, esse projeto nacional foi duramente abalado, no início dos anos ’80, pela crise da Dívida Externa e acabou derrotado politicamente nos anos ’90 pelo predomínio de uma orientação neoliberal. O sistema nacional de C&T montado no período anterior, no entanto, preservou relativo dinamismo, apesar do novo contexto desfavorável. Com isso, pudemos, mesmo sob o governo Fernando Henrique Cardoso, em particular no seu segundo mandato (na gestão do ministro Sardenberg no MCT), criar novos instrumentos de fomento à atividade científica e tecnológica – como os fundos setoriais – e realizar a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. Isso representou um avanço, tanto no reconhecimento da importância estratégica da área, quanto na gênese de novos instrumentos e fontes de fomento. Mas, naquele momento, esses instrumentos permaneceram desconectados de um projeto nacional de desenvolvimento, já que segundo a concepção predominante no governo FHC, o próprio mercado deveria regular o desenvolvimento por ser o alocador mais eficiente de recursos.

Como a estratégia do MCT se vincula à busca de um novo projeto nacional de desenvolvimento?

Luis Fernandes – Assim que o ministro Eduardo Campos e sua equipe tomaram posse, foi deflagrada a discussão do Plano Estratégico do Ministério. Assumimos a direção do MCT no momento em que se finalizava a definição da Política Industrial, de Desenvolvimento Tecnológico e de Comércio Exterior (PITCE) pelo governo federal. Uma oportunidade histórica se abre para o país, uma vez que, após um quarto de século, o Brasil volta a ter desenhada uma política nacional de desenvolvimento. Isso nos permitiu vincular o planejamento estratégico do Ministério ao norte mais geral da política industrial. Esta, por sua vez, se estrutura sobre a compreensão de que a inovação de base científica e tecnológica é a base do novo esforço de desenvolvimento.

Neste contexto, concebemos um plano estratégico para a área de C&T composto de três eixos verticais estruturantes associados a um plano horizontal – o da manutenção do sistema nacional de C&T e dos esforços para sua efetiva nacionalização, por ser um sistema implantado de forma desigual no conjunto do país. Este plano horizontal abarca iniciativas, ações e programas para fortalecer, expandir e consolidar o sistema nacional herdado do esforço de desenvolvimento anterior.
Deste plano absolutamente fundamental emergem três eixos verticais, que estruturam nossas ações estratégicas na área de C&T.

O primeiro eixo vertical vincula a nossa atividade às prioridades da política industrial que acabou de ser anunciada e que identificou quatro setores estratégicos: indústria de software; fármacos; semicondutores e microeletrônica; e bens de capital. Ao lado desses setores, foram identificadas, ainda, três áreas consideradas “portadoras de futuro” em que o Brasil tem competência de ponta instalada: biotecnologia, nanotecnologia e biomassa.

Ao segundo eixo denominamos “objetivos estratégicos nacionais”. Dentre eles, destacamos:

1) A retomada do programa espacial, sobretudo do Veículo Lançador de Satélite (VLS), além do desenvolvimento de satélites e da colocação de um satélite geoestacionário para monitorar o território brasileiro. Nesta área, que envolve importantes projetos estratégicos, há forte interface entre a atividade civil de C&T e a atividade de defesa nacional.

2) Dar continuidade e ampliar o programa nuclear de forma a tentar garantir o domínio completo do ciclo de enriquecimento do urânio no país a partir da tecnologia desenvolvida nos centros de pesquisa da Marinha. Aqui, também, se destaca a crescente interação civil-militar no desenvolvimento dessa tecnologia e desse programa.

3) Integrar efetivamente a região amazônica ao território nacional por meio de ações de C&T que explorem, com base no interesse nacional, a singular biodiversidade da Amazônia, bem como desenvolvam tecnologias apropriadas ao desenvolvimento sustentável da região.

4) Por fim, há toda uma esfera de cooperação internacional em que temos de colocar a C&T a serviço da política externa do país. Dar, por exemplo, uma dimensão científica e tecnológica ao projeto de integração da América do Sul, com uma série de programas visando intensificar a cooperação nesse domínio, e respaldar a interação com outros pólos no mundo, dentro da linha de prioridades da nossa política externa (África do Sul, Índia, China, Rússia), em que há forte interface com a área de C&T.

O terceiro eixo vertical abrange a inclusão social. Entre as inúmeras iniciativas que compõem este eixo, eu destacaria quatro áreas principais: 1) Apoiar programas e ações voltadas para o desenvolvimento sustentável da região do semi-árido, que concentra altos índices de miséria e exclusão. A recente criação do Instituto Nacional do Semi-árido, vinculado ao MCT, integra este esforço. 2) Criação de Centros Vocacionais Tecnológicos (CVT’s), espécie de centros de educação tecnológica vinculados a arranjos produtivos locais de forma a garantir sobrevivência, emprego e renda nas regiões mais depauperadas do país. Nossa meta é criar, ainda em 2004, cem desses centros. No programa espacial, por exemplo, uma das prioridades é a recuperação do Centro de Lançamento de Alcântara.

Lá, a população local teve de ser deslocada e até hoje não foi alvo de uma política para gerar formas de sobrevivência alternativa. Uma ação planejada é a criação de um CVT em Alcântara para formar mão-de-obra para trabalhar na base de lançamento, evitando a necessidade de deslocamento da mão-de-obra técnica do centro-sul. Nesse vetor de combate à exclusão social, também estão inseridas iniciativas como a difusão científica e tecnológica, estendendo a cultura da C&T e também programas de combate à exclusão digital para garantir acesso à tecnologia e a instrumentos de informática a mais pessoas pelo país – uma vez que se trata de um dos elementos definidores da cidadania social.

No conjunto, esse é o desenho de nossa ação cuja lógica, resumindo, é promover e fomentar a C&T como parte estruturante de um projeto de desenvolvimento nacional.

Qual o papel do Estado nacional e das instituições públicas (universidades e institutos) na promoção do desenvolvimento científico e tecnológico? Como deve ser a relação do Estado nacional com o mercado nesse setor?

Luis Fernandes – Separaria essa pergunta em duas dimensões. A primeira é o papel do Estado nacional e suas instituições na promoção do desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Aqui cabe registrar não haver nenhuma experiência exitosa de desenvolvimento no mundo que tenha prescindido do poder público como agente fundamental de fomento do desenvolvimento, incluindo a sua dimensão científica e tecnológica. Isso é verdade tanto na experiência da Inglaterra no período anterior e posterior à Revolução Industrial quanto na experiência dos Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX e para as experiências de sucesso entre países em desenvolvimento, como Coréia do Sul e China. Em todas elas o financiamento público serve de coluna vertebral para o esforço de desenvolvimento. É esse também o caso do Brasil. Temos de encontrar os mecanismos e os instrumentos necessários – e consolidar os que já existem e ampliar seu raio de ação – para viabilizar o desenvolvimento científico e tecnológico de que o país necessita.

Isso é importante, sobretudo na inovação tecnológica que, por definição, é de grande risco e incerteza. A tendência das empresas não situadas em posição monopolistas em suas áreas no mercado mundial é de não investir pesadamente em desenvolvimento tecnológico e inovação, porque o custo envolvido nisso é alto – e o risco do não-retorno é gigantesco. Isso gera a tendência, nos países que não estão na fronteira do desenvolvimento científico e tecnológico, de as empresas privadas optarem pela compra de tecnologia no exterior – já desenvolvida e com eficácia já comprovada – como alternativa ao investimento próprio. Para viabilizar um projeto nacional de desenvolvimento é fundamental uma presença forte e determinante do poder público por meio de ações, investimento e fomento para que seja efetiva a ação de desenvolvimento tecnológico e inovação na economia nacional.

A segunda dimensão é como se deve dar a relação entre o Estado e o mercado nessa área. Há muita incompreensão em torno disso no debate político e ideológico. É necessário situar, então, em que terreno e estágio da luta nós nos encontramos hoje – que é a busca da viabilização de um projeto nacional de desenvolvimento, contraposto ao modelo neoliberal que predominou nos anos ’90.

Um projeto nacional de desenvolvimento tem como um de seus elementos destacados o desenvolvimento do mercado nacional. Não estamos falando de um modelo socialista de desenvolvimento, mas da viabilização de um projeto nacional dentro dos marcos do capitalismo – embora se busque, em nosso caso, um desenvolvimento capitalista mais autônomo. Nesses termos, é muito importante a interação entre poder público e mercado, visando à consolidação e ao desenvolvimento do mercado nacional.

No que concerne ao sistema nacional de C&T é importante ressaltar que ele é integrado, mas complexo, e sua coluna vertebral é o setor de pesquisa básica – não diretamente subordinado a uma consideração de mercado ou à busca de um nicho de mercado imediato. E é fundamental preservar isso porque em nenhum desenvolvimento científico e tecnológico se pode de imediato vislumbrar todas as aplicações que possam ser derivadas em médio e longo prazo no mercado – o que pode ser tolhido se predeterminar um nicho de mercado.

A manutenção dessa coluna vertebral de pesquisa básica viabiliza a formação mais ampla de pesquisadores e criadores com sólida formação de pesquisa, o que pode ser aplicado de variadas maneiras. Ao passo que se na formação apenas for enfatizada a aplicação técnica a uma necessidade de mercado, forma-se um profissional muito limitado, não adequado à complexidade das exigências da fronteira da produção científico-tecnológica produtiva na atualidade – que demanda quadros com mais plasticidade.

Como nosso sistema de C&T está a serviço de um projeto de desenvolvimento nacional, deve-se buscar a interação de dimensões do sistema nacional de C&T com o mercado nacional. Isso implica em facilitar a interação daqueles setores do sistema nacional de C&T que possam ter rápida aplicação em nichos de mercado visando situar o Brasil na fronteira nesses setores – garantindo geração de emprego e renda, e o retorno à sociedade do investimento feito no sistema público de C&T. Isso pode ser feito seja facilitando a interação com empresas nacionais que operam no mercado nacional e a capacidade de pesquisa e inovação tecnológica instaladas em universidades e institutos, seja viabilizando ações de apoio e fomento público à atividade de desenvolvimento e inovação feito nas empresas, que depende também do poder público – uma vez que pela lógica espontânea e relações assimétricas existentes na economia mundial tal desenvolvimento tende a não ser efetivado pelas empresas. E a aquisição por parte delas de pacotes tecnológicos do exterior tem conseqüências negativas tanto na vulnerabilidade externa do país (em sua balança de pagamentos) quanto na perda de autonomia tecnológica do país diante do monopólio imposto pelas potências centrais, via legislação de proteção da propriedade intelectual.

Como amenizar e até mesmo superar as desigualdades regionais em C&T via política nacional?

Luis Fernandes – Neste ponto houve certa polêmica no meio acadêmico e na mídia no ano passado. De fato temos um sistema nacional bastante desenvolvido, heterogêneo e complexo, tendo como uma de suas características a forte concentração regional – sobretudo no Sudeste. Como lidar, então, com esse problema? Por certo tempo chegou a predominar o raciocínio de que o eixo norteador do sistema deveria ser a descentralização.

Consideramos não ser essa a melhor maneira de lidar com o problema, porque isso introduziria um conflito federativo no coração do sistema e acarretaria a pulverização de investimentos. Se o nosso grande desafio é, precisamente, concentrar esforços para gerar as bases científicas e tecnológicas necessárias ao desenvolvimento nacional e ao confronto e superação das assimetrias que o Brasil enfrenta no sistema internacional, a pulverização não é uma boa política.

Portanto, ao invés de enfrentar essa questão pela chave-geral da descentralização, defendemos que o grande desafio é a nacionalização do sistema de C&T. Isso implica em programas diferenciados: em alguns programas devemos buscar a descentralização, em outros não. Por exemplo, ao se pensar a montagem de cem CVT’s vinculados a arranjos produtivos locais, evidentemente, segue-se uma lógica de desconcentração e descentralização, cujo foco principal não será nos pólos mais desenvolvidos do Sudeste.

Outro caso é a busca da consolidação da capacidade científica e tecnológica de áreas em que esta está menos consolidada, implicando que estas devem merecer alocação prioritária de recursos de capacitação e bolsas. Já em outras áreas há clara necessidade de concentração. O programa nuclear, por exemplo, não pode ser disperso pelas diversas unidades da Federação. O programa espacial tampouco. Embora tenha um braço no Maranhão, a sua lógica não pode ser a pulverização. Se a nanotecnologia é uma prioridade da política industrial, não podemos retirar recursos dos laboratórios nacionais de ponta existentes – torna-se necessário consolidá-los e estabelecer uma rede, a partir deles, que integre o sistema nacional. Outro exemplo: um problema estrutural do sistema de C&T é o acesso aos acervos bibliográficos e, nesse caso, podemos pensar na constituição, a partir do MCT, de uma Biblioteca Nacional Virtual que garanta acesso pela Internet aos acervos das bibliotecas universitárias em todo país – é um exemplo de ação centralizada que ajuda a expandir e integrar o sistema nacional.

A chave, então, é termos uma política diferenciada que consolide o sistema nacional de C&T. A competência existente no sistema precisa ser mobilizada para alavancar e consolidar áreas e regiões em que esta é mais fraca ou inexistente. Trata-se de montar uma lógica de soma positiva, em que os investimentos em setores estratégicos repercutem favoravelmente para o sistema como um todo e para todos os seus integrantes.

Como está a discussão sobre os fundos setoriais? Quais as posições na comunidade científica e a política do Ministério?

Luis Fernandes – O financiamento público é, e tem de ser, a coluna vertebral de qualquer projeto de desenvolvimento nacional e, dentro dele, de qualquer projeto de desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Assim, a questão do financiamento do modelo é crucial.

O Ministério tem dois instrumentos clássicos de financiamento do desenvolvimento científico e tecnológico: o CNPq e a FINEP. No segundo mandato de FHC surgiu um terceiro instrumento: os fundos setoriais. Ao todo são 14; o primeiro a ser criado foi o fundo do petróleo e, depois, vieram mais treze. Esses fundos setoriais foram amplamente discutidos na Conferência Nacional realizada em 2001 e seu formato foi por ela consolidado.

Quando a área de C&T concebeu os fundos setoriais, eles foram entendidos como uma fonte complementar de financiamento, ou seja, eles entrariam como recursos complementares ao CNPq e à FINEP (e dentro desta, ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – de utilização livre). O formato deles buscava complementar o sistema nacional de C&T vinculando investimentos a determinadas áreas prioritárias ou estratégicas para o desenvolvimento nacional. Eles foram constituídos e representaram uma nova fonte de recursos, mas ocorreu uma contradição: a orientação econômica do governo FHC não adotava por opção qualquer projeto nacional de desenvolvimento – naquela perspectiva de o mercado ser mais o eficiente locador de recursos. Isso gerou um descompasso entre os instrumentos criados pelos fundos setoriais e a orientação econômica predominante no governo. Como conseqüência, esses fundos que deveriam ser complementares se transformaram em recursos substitutivos dos recursos disponíveis no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Com isso os recursos dos fundos setoriais acabaram sendo a opção do sistema já constituído para obter financiamento necessário à sua manutenção, o que gerou distorções em relação às suas finalidades originais. Isso acabou determinando a pulverização dos fundos, que tenderam a atuar de forma desconexa e fragmentada.

Diante disso, estamos unificando a gestão de todo o sistema nacional de C&T, tanto do CNPq e da FINEP quanto dos fundos setoriais. Montamos uma coordenação dos fundos setoriais no Ministério e, por meio dela, encaminharemos aos comitês gestores sugestões e propostas de programas transversais para mobilizar os recursos dos fundos como um todo visando atender necessidades da manutenção do sistema básico em que isso for pertinente, mas para canalizar recursos para aqueles objetivos estratégicos a que me referi anteriormente.

Estamos introduzindo um novo modelo de gestão dos fundos, dentro da sua própria legalidade, pois agora se abre a possibilidade de eles realizarem a missão para a qual foram idealizados – canalizar recursos para os objetivos estratégicos de desenvolvimento nacional.

Por que ocorreu tamanha “denúncia” contra o país na grande imprensa brasileira sobre o tema da utilização do urânio? Quais interesses estão por trás disso?

Luis Fernandes – O Brasil é signatário do Tratado de Não-Proliferação, assume todos os compromissos e responsabilidades oriundos desse tratado e expressa de todas as maneiras, inclusive por determinação constitucional, a sua disposição de não desenvolver armamento nuclear. É o único país no mundo que admite inspeções internacionais nas suas unidades militares. As unidades da Marinha que desenvolveram a tecnologia da centrífuga são submetidas a inspeções regulares da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O Brasil está inteiramente aberto a tais inspeções e também é signatário de outros compromissos, como o firmado com a Argentina na Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).

A grande questão é que tais inspeções estão orientadas pelos princípios da não-proliferação, sendo, então, fundamental examinar a quantidade de urânio que entra e sai da unidade de enriquecimento – para garantir que não haja desvio de urânio, que poderia servir para outros fins. Os mecanismos para essa averiguação foram amplamente discutidos e estão em operação. Ocorre que a AIEA, possivelmente por pressão da nova política de não-proliferação de tecnologia nuclear adotada pelos EUA, propôs mudar o formato das inspeções na unidade de enriquecimento de urânio que está sendo construída em Resende para abastecer as usinas de Angra dos Reis. Nos centros de pesquisa da Marinha, em Aramar, a unidade centrífuga que processa o urânio fica coberta por um painel. Na unidade de Resende, a AIEA propôs mudar os termos das inspeções, de forma a ter acesso visual à centrífuga que produz o enriquecimento, uma tecnologia nacional de ponta sem similar no mundo (embora os seus princípios teóricos gerais sejam conhecidos).

Para o Brasil, é inaceitável que a forma de realização das inspeções viole o nosso direito de preservar o segredo de uma tecnologia de ponta desenvolvida com muito sacrifício.

Continuamos negociando com a Agência para encontrar formas de inspeção que garantam o cumprimento dos nossos compromissos com a não-proliferação de armas nucleares, sem sacrificar ou prejudicar a vantagem tecnológica adquirida pelo país no seu programa de energia nuclear. Esta postura é fundamental do ponto de vista da defesa dos interesses nacionais, já que, como vimos, os EUA e os demais países centrais não medem esforços para preservar a sua posição monopolista nos mais diversos campos do conhecimento. Em uma das poucas áreas em que estamos na dianteira, procuram nos impor uma norma para quebrar a vantagem tecnológica de que dispomos.

*Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito pela PUC-SP e membro da Comissão Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 48, 49, 50, 51, 52, 53