Enquanto dona Inácia lê a carta, Mariana rói as unhas sentada no sofá do quarto e Glória contempla a cidade pela janela. Pensa em coisa soltas, esparsas. Não se fixa em nada, tampouco se preocupa com a carta e sua leitora. Lembra de contas a pagar, do marido que se esqueceu de levar a pasta com os projetos na viagem, do filho pousando na casa da avó paterna, da comida do cachorro que estava a acabar, do livro no fundo da mala que não tinha ânimo de ler.

      Concluída a leitura, dona Inácia ergue os olhos injetados de um ódio denso. Mira o marido com um desprezo tal, que Mariana sente o coração disparar:

      – Mãe?

      Dona Inácia não responde. Caminha até seu Jorge e fixa-se em seu rosto macilento. Na cabeça, peças se juntam e aquele sentimento difuso, de insegurança, ganha contornos: sempre tivera a sensação de que se casara com um estranho. Algo no marido a incomodava. Era como se ele dissimulasse; lhe escondesse algo. Faltava a Jorge… autenticidade.

      Obviamente, ela veio sentir isso depois de um certo tempo de casada. Contudo, desde quando eram noivos, uma certa neblina pairava entre os dois.

      Certo: tudo poderia ser mentira. Mas, a troco de quê uma menina escreveria de tão longe? E não era ele de Saco das Varas? E Glória não o pressentira já menina? E as incoerências das histórias que ele contava? E seu silêncio obstinado sobre seu passado? E os comentários de conhecidos, que davam notícia de um homem alegre e piadista, quando em casa ela convivia com alguém comedido e sério?

      Contudo, o mais monstruoso eram os nomes das filhas: como teve ele coragem de batizar suas meninas com os nomes das mulheres que abandonou grávidas? Como pôde ter dado à Mariana o nome da mulher que estuprou?

      Dona Inácia treme diante do marido. Glória se aproxima e lhe toca o ombro:

      – Mãe.

      A velha desperta. Súbito, uma ânsia de vômito sacode-lhe o corpo. As filhas apressam-se a sustê-la. A segunda crise vem mais forte. Dona Inácia corre até o banheiro e despeja no vaso sanitário o pouco que comeu. Uma tontura a vai desestabilizando. Em seguida, o peito dói forte.

      – Chama um médico, Mariana! – ordena Glória.

      Mariana sai em disparada e volta com uma enfermeira. Dona Inácia vai desfalecendo nos braços de sua mais velha. Todas a arrastam até o sofá. Mariana chora. Glória, pálida, procura auxiliar a enfermeira. De repente, fezes começam a escorrer pelas pernas de dona Inácia.

      – O que tá acontecendo! – grita Mariana.

      – Acho que ela está enfartando. – responde a enfermeira.

      Um médico invade o quarto. A enfermeira lhe passa o quadro e aponta suas suspeitas. Ele a despacha em demanda de equipamentos e equipe e inicia procedimentos junto ao coração de dona Inácia. A enfermeira entra acompanhada de dois auxiliares, uma maca, medicamentos e aparelhagem. Tomadas as primeiras providências, transportam a nova paciente para outro lugar. Lá, após um conjunto de procedimentos, resgatam-na.

      – Foi um princípio de infarto – comunica o médico às duas filhas. Mas está tudo sob controle agora. Logo, logo, ela vai estar bem. Já está fora de perigo.

      – Obrigada, doutor – agradece Mariana.

      – Acho melhor vocês descansarem – devolve o médico. A família já está bem servida de pacientes, não?

      Enquanto o médico se retira, Glória faz o balanço de tudo. Conclui que o melhor a fazer é pedir um calmante para Mariana e ligar para o marido.