Lucinda sentada à porta. Olha a tarde que se esvai em cores e nuvens lá no céu. Um sagüi, amarrado pela cintura, cata-lhe a cabeça. Achara o bichinho largado, ainda filhote, enquanto campeava preás lá pelos lados da Panela. Mato alto, ela, agachada, ouviu algo chiar. Foi ver, o barulho vinha do juazeiro ali perto. Encostado ao tronco, o macaquinho, assustado, parecia gemer. Depois de muito tentar, ela chegou de junto, examinou o mico e diagnosticou uma das mãos quebradas. Levou-o pra casa e fez dele seu parceiro de ócio.

      Bem que podia dar um nome ao bichinho. Alguém, sem nome, como poderia ser alguém? Pensou, pensou, e resolveu-se por nenhum: ele não precisava de chamar. Com ele, não carecia de fala. Tudo era gesto.

      No colo de Lucinda, uma pequena tábua quadrada. Um tampo de algum tamborete velho que ela usa como prancheta. Nela, sobre um papel verde-água, escreve em tinta rubra uma nova carta. Desta vez é para a tia:

      "Tia Mariana,

      Não sei que poder têm as palavras. Sei, que assim escritas, marcam o tempo. Essas, ao menos, marcam um outro tempo: desses em que a gente respira e olha pra frente cheia de vontades: vontade de espaço; vontade de amanhãs, cada um com uma cor; vontade de tanto saber a ponto de não mais chorar.

      Bem sei que isso tudo são vontades, e não passam disso. Bem sei que pra construir uma vida a gente vai, volta, arrodeia, destempera e no fim, no fim de tudo e de mais um pouco, acaba que andou um tico assim.

      Mas andou.

      Nossa família agora vai numa estrada em que, ao menos, cabos jorges vão ficando na lembrança amarga. Não pesam mais nas sombras, nas tumbas. Ficam em nós como uma coisa que a gente não pode recusar, é verdade. Afinal, querendo ou não, sou neta dele. Mas sei que ele fica como lição: uma lição pra nunca mais.

      Os Régis de Almeida ainda vão passar uns apuros. Li em algum lugar que nas transições é mesmo assim: o que foi quer continuar sendo; o que vai ser quer deixar de ser promessa e vingar. Um briga com o outro. Um não vive sem o outro. Só que, por agora, ninguém sabe ainda quem vai ganhar.

      Essa carta que ora nasce aqui neste papel é filha disso: de um caminho cumprido ao meio. Daqui pra diante, embora nada garanta, ela abre algumas estradas. A depender do rumo que a gente tomar, ela vai sendo reescrita de muitos jeitos, por variadas mãos. E assim, escrita e reescrita; respeitada ou desconsiderada, ela será sempre o nosso recomeço.

      Minha mãe já canta mais. Deixou de pensar em pai. Tá lá atrás estendendo a roupa e voltou a me chamar com aquele grito que só ela sabe dar: "Luciinda, minha filha, venha cá, caminh!". Leonardo arrumou namorada e aprendeu a dançar. Parece que destravou. Tá até mais corado. Mãe Gulóra, sempre a mesma e outra, continua a mandar em tudo, mas agora sem aquele peso, sem aquela dor e cansaço. A cidade já não olha pra nós com aquela pena de antes. É como se nos tivéssemos resgatado de um tempo lá atrás e acertado o passo com todo mundo.

      Por falar em mundo, Argemiro mandou nova carta. Tem endereço novo no envelope. Acho que mudaram de bairro lá. Disse que minhas tias de São Paulo querem contato com a gente aqui. Veja como as coisas são.

      Bom, tia, deixa eu terminar isso aqui. Espero sinceramente que seus passos se acertem aí também em Aracaju. Mande lembranças a Tenório e diga-lhe que não se avexe: só de estar lá, de encarar o velho em seu território, já foi uma grande ajuda. Eu, da minha parte, fiz o que sabia e o que podia. Estou em paz, mesmo sabendo que logo, logo vem por aí muito chumbo. Mas assim é a vida: luta todo dia, não é mesmo?

      Um abraço e um cheiro pra senhora.

      Da sobrinha tua

      Lucinda".