Tornou-se senso comum na crônica da vida política estadunidense dizer que a campanha presidencial de 2004 tem sido a que mais debateu a política externa, contrariando uma tendência cristalizada no comportamento da elite política e da maioria da população de voltar-se inteiramente para os problemas do cotidiano e da vida doméstica. A tal ponto quepal a plataforma do Partido Republicano – aprovada na convenção que consagrou neste início de setembro a candidatura de Bush à reeleição, um alentado documento intitulado “Um mundo mais seguro e uma América mais esperançosa” -, dedica mais da metade das suas análises e propostas ao que os ultraconservadores que dominam a Casa Branca chamam de “internacionalismo americano”, se considerarmos que o capítulo do citado documento voltado para a “construção de uma economia inovadora e globalmente competitiva” é referenciado nas relações de dominação neocolonialista exercidas pelos EUA no mundo e na competição interimperialista que sustentam com as demais potências capitalistas.

Com efeito, a política externa ou, por outra, a política de guerra do imperialismo norte-americano, tomou a cena na contenda eleitoral. O candidato à reeleição dedicou-se à defesa de sua “estratégia de segurança nacional”, cujo eixo é a “guerra ao terror”, caminho para “assegurar a paz”, construir um “mundo melhor” e abrir uma era de segurança para os EUA. Bush se mostra convencido e quer convencer a população dos Estados Unidos e a opinião pública mundial de que seu mandato tem sido uma acumulação de vitórias nessa “guerra” e foi consagrado na convenção republicana – num espetáculo de messianismo e culto à personalidade em que não faltaram cenas coreografadas e histriônicas como as protagonizadas pelo governador-ator-exterminador da Califórnia, representativas de um neofascismo com pobre simbologia – como o redentor do país e o vencedor na “guerra ao terror”.

“O presidente continua firmemente à frente, confiante, na sistemática campanha para defender a América contra os perigos de nosso tempo (…) Hoje, porque a América agiu, e porque a América assumiu a direção, as forças do terror e da tirania sofreram derrotas após derrotas, e a América e o mundo estão seguros”. A realidade está distante anos-luz dessa ilusão e dessas tiradas publicitárias e eleitoreiras. Falaremos disso mais adiante.

O candidato democrata John Kerry também tomou a política externa como eixo. Ora faz um inflamado discurso antiguerra, ora desfere críticas contundentes sobre as decisões de Bush em política externa – das quais, “a mais catastrófica” foi fazer a guerra no Iraque. Procura, assim, sintonizar-se com um sentimento cada vez mais difundido nos EUA em favor da paz. A fim de credenciar-se internacionalmente e encaminhar por outra via o relacionamento dos Estados Unidos com as demais potências, tem retomado conceitos ambíguos, mas de essência imperialista, do Partido Democrata, como o “multilateralismo assertivo”, que inspirou a política externa dos dois mandatos do ex-presidente Clinton e serviu de cobertura política e ideológica para as ações agressivas que comandou. Ao mesmo tempo, mirando o eleitorado conservador, em determinados momentos da campanha chegou a assumir o compromisso de reforçar a ocupação no Iraque.

Momento histórico nos EUA

Assim, sem desconhecer que nas circunstâncias peculiares da sociedade estadunidense a candidatura democrata seja o desaguadouro natural do voto anti-Bush e antiguerra, e que a derrota deste seria fato alvissareiro com significativas repercussões no quadro político mundial, a grande novidade trazida pela campanha sucessória nos Estados Unidos até agora foi que em seu transcurso emergiram lutas e movimentos sociais e políticos com pujança e amplitude raramente vistas. Em manifestações multitudinárias, politicamente densas e perfil multidimensional quanto à participação popular, esboça-se a formação de nova força política e social, numa surpreendente demonstração de vitalidade do movimento progressista nos Estados Unidos. No dia mesmo da realização da convenção republicana, teve lugar colossal manifestação em que meio milhão de pessoas desfilou em Nova Iorque em defesa da paz e em protesto contra a política de guerra de Bush e seu ultraconservador partido republicano. Repetindo as grandes jornadas de fevereiro e março do ano passado, quando as ruas de Nova Iorque e Washington foram palco de combativos protestos antiguerra, o movimento pela paz protagonizou um ato que marcou a diferença fundamental na campanha eleitoral.

Organizada pela coligação United for Peace and Justice (União pela Paz e a Justiça), a marcha novaiorquina foi encabeçada por figuras notáveis da vida política, social e cultural dos EUA, como o reverendo Jesse Jackson, o cineasta Michael Moore e o ator Danny Glovar. Foi um protesto enérgico contra a política belicista de Bush e serviu como uma advertência também para o candidato Kerry, pois o sentimento geral é pelo fim da política de guerra, da ocupação no Iraque e pela retirada das tropas norte-americanas daquele país. Essa vontade, somada a uma aspiração profunda pela paz e pelo fim do governo Bush – que além de belicista é anti-social e antidemocrático – são os elementos constitutivos de uma nova consciência política em formação na sociedade norte-americana, pontos de convergência das forças democráticas, pacifistas e progressistas dos Estados Unidos. “Este é um momento histórico na vida deste país”, observou Leslie Cagan, coordenadora da coalizão United for Peace and Justice. Efetivamente, para as forças antiimperialistas no mundo, trata-se de fenômeno a ser observado com atenção e apoiado, porquanto a derrota do imperialismo norte-americano só será possível se sua política for combatida não só do exterior, mas no interior mesmo dos Estados Unidos.

Como tudo o que é novo e pela heterogeneidade de sua composição, é um movimento ainda impreciso e de destino imprevisível. Mas não cabe dúvida de que nas condições atuais é nesse movimento que se depositam, objetivamente, as expectativas de alterações parciais e quantitativas na correlação de forças nos EUA. É o outro pólo da disjuntiva histórica em que se encontra a sociedade norte-americana. É a partir dele que se pode cogitar derrotar Bush e os ultraconservadores do Partido Republicano.

Iraque – fracasso do imperialismo

O tom ditirâmbico com que a convenção republicana cantou vitória foi contrastado poucos dias depois com o anúncio de que passou de mil o número de soldados norte-americanos mortos no Iraque desde que o governo de Bush desferiu a agressão, em 20 de março de 2003. A guerra e a ocupação norte-americana no Iraque têm sido um semeadouro de mortes e devastações, uma incomparável sucessão de crimes de lesa-humanidade, que incluíram bombardeios aéreos sobre centros urbanos, o massacre de populações civis indefesas, a prisão em massa de opositores e combatentes da resistência, a invasão de domicílios ao estilo da Gestapo hitleriana em busca de ativistas do Partido Baath e a tortura de prisioneiros – ato abjeto em que soldados e oficiais do US Army, o mais poderoso exército do mundo, da maior superpotência da atualidade, ao aviltarem o adversário abatido cobriram de opróbrio a nação que se julga o apanágio contemporâneo da liberdade e exibiram ao mundo a horripilante catadura do imperialismo-fascismo norte-americano. Mas nem um só desses crimes, pelos quais ainda terão de pagar, muito menos a agressividade retórica dos oradores da convenção republicana combinada com as frases de efeito publicitário sobre estarem os imperialistas “vencendo a guerra contra o terror”, escondem o insofismável fato de os agressores terem se empantanado no Iraque e de sua intervenção-ocupação ter resultado em rotundo fracasso sob todos os aspectos – político, militar e moral.

A impressão de uma vitória relâmpago se desfez com uma rapidez inimaginável mesmo para o mais cáustico opositor da política de guerra da Casa Branca. Quase simultaneamente ao patético anúncio de Bush sobre o “final vitorioso” da guerra, eclodiram as primeiras ações de uma inusitada resistência. Os observadores mais imparciais da cena internacional e mesmo aqueles condescendentes com os desatinos do governo norte-americano têm sido unânimes na constatação de que “Bush ganhou a guerra, mas perdeu a paz”. Ele próprio e muitos dos seus sequazes admitiram que não estavam preparados para enfrentar a resistência. E por maiores que sejam as disparidades políticas, ideológicas, organizativas e metodológicas entre as forças constitutivas do que se convencionou designar por resistência iraquiana, não é de terrorismo que se trata, como não é uma contenda a se decidir no curto prazo. Hoje as forças imperialistas se defrontam não somente com a insurreição xiita encabeçada por Muqtada Al-Sadr, ou com atos de força aparentemente desconexos, mas com um movimento de resistência extenso e profundo que será tanto maior quanto larvar o sentimento nacional e antiimperialista do povo iraquiano contra a ocupação militar do seu país e o vilipêndio de sua soberania nacional. Tinham razão os que diziam metaforicamente que ao pisarem no solo iraquiano as forças agressoras estadunidenses estavam “abrindo as portas do inferno”. Não cabem dúvidas de que, retórica de Bush e Shwarzeneeger à parte, os estrategistas da cúpula ultraconservadora republicana já captaram o sentido dos fenômenos em desenvolvimento, por isso falam de “guerra prolongada contra o terror”.

“Guerra ao terror” – pretexto para agredir os povos

Terrorismo é algo distinto, muito distinto da resistência iraquiana, como de qualquer movimento revolucionário armado inspirado por ideais nobres de libertação nacional e social. A violência revolucionária será sempre legítima e um direito sagrado dos povos quando se impuser como recurso à violência reacionária. O terrorismo – que, aliás, é sempre contra-revolucionário e atinge em primeiro lugar as pessoas simples e as forças progressistas -, não será jamais extirpado através do terrorismo de Estado, da guerra ou do ocaso da democracia e das normas internacionais. Somente um regime político e econômico socialmente justo e uma ordem mundial democrática e equilibrada será capaz de pôr cobro aos hediondos fenômenos em presença no mundo contemporâneo. A “guerra ao terrorismo”, tal como foi concebida e aplicada pelo imperialismo norte-americano, é um pretexto, um arrazoado para justificar a política de guerra do imperialismo norte-americano, meio pelo qual busca impor seu domínio no mundo.

Depois do desmoronamento do socialismo na União Soviética e nos demais países do Leste europeu e do fim da bipolaridade, a “guerra ao terrorismo” se converteu no novo discurso para legitimar a política de guerra norte-americana. A partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, sob essa bandeira o imperialismo estadunidense fez duas guerras de agressão e ocupação (Afeganistão, outubro de 2001, e Iraque, março de 2003), anunciou uma nova doutrina militar – a da guerra preventiva -, inquinou países soberanos como integrantes de um suposto eixo do mal, proclamou seu direito a usar armas nucleares, simultaneamente à revogação do antigo Tratado Antimísseis Balísticos Intercontinentais e a pressões descabidas sobre países soberanos, incluindo o Brasil, para assinarem o protocolo adicional de não-proliferação de armas nucleares e aumentou para 450 bilhões de dólares, quase um PIB brasileiro (!) e metade das despesas militares de todo o mundo, as suas próprias despesas militares.

A plataforma aprovada na Convenção Republicana promete que essa guerra vai continuar.“Os terroristas – diz o documento – declararam guerra à América, agora a América declara guerra aos terroristas. Defendemos a paz perseguindo e combatendo o inimigo. Lutamos contra os terroristas fora de nossas fronteiras, para não termos de combatê-los em casa”. Cada país soberano, cada partido político revolucionário ou progressista, cada movimento social, o movimento pacifista, as forças da solidariedade internacional ou mais simplesmente cada pessoa amante da paz e da liberdade deve ter bem presentes essas ameaças em seus afazeres cotidianos e compreender que confirmado Bush para mais um mandato, elas serão doravante a marca distintiva de nossa época, a marca da barbárie.

A sagração de Bush na convenção republicana foi a oportunidade para o chefe do imperialismo norte-americano reafirmar o que já tinha dito em seu histórico discurso de 20 de setembro de 2001, após os atentados às torres gêmeas, que serviu de base para o unilateralismo como parte integrante essencial da chamada doutrina Bush e traço fundamental da política externa que praticou durante todo o seu mandato: “Toda nação deve fazer uma escolha – defender o terror ou defender a América e nossa coalizão para derrotar o terror (…) A ameaça global do terrorismo requer uma resposta global. Para ser efetiva, essa resposta global requer liderança – e a América está no comando”. Uma vez reeleito, Bush continuará atuando no sentido de “punir” as nações “comprometidas com o terror”, “incluindo aquelas que abrigam terroristas”. O conceito é impreciso, dá margem a novas agressões e intervenções. Foi com esse argumento e sob essa bandeira que nos últimos quatro anos o governo de George W. Bush desmantelou a ordem jurídica internacional e no lugar das normas democráticas, de defesa da paz e da convivência harmônica entre as nações impôs mecanismos violentos e totalitários, sob cuja ação sucumbiu a ONU, transformada num órgão legitimador das intervenções e ocupações imperialistas.

Oriente Médio e Cuba – obsessões do imperialismo

A plataforma republicana apresenta uma visão de conjunto sobre a realidade mundial. Analisa as relações dos Estados Unidos com as principais potências, adianta opiniões sobre a Europa, a África, a América Latina, a Rússia e a China. Ali estão expostos com toda clareza conceitos e métodos da política externa do grupo dominante no país mais poderoso do Planeta, que em outros espaços e oportunidades serão submetidos à apreciação. Duas questões, porém, pela relevância e pelo caráter agudo das ameaças contidas, chamam de imediato a atenção – o tratamento em relação ao Oriente Médio e a Cuba, uma obsessão do imperialismo transformada em estratégia. “Respaldar e fazer crescer a democracia”, através de um plano que já está em curso, apelidado de iniciativa para o Oriente Médio, voltado para “encorajar a reforma e a democracia na região”. É com esta senha que o Partido Republicano anuncia que o Oriente Médio continuará no centro das atenções e que o futuro governo de Bush, se reeleito, prosseguirá sua cruzada “democrática”, atropelando as soberanias nacionais, agravando conflitos antigos e gerando novas tensões. Quanto a Cuba, a agressividade da política norte-americana subiu de tom. A plataforma republicana apresenta de maneira explícita o objetivo de derrocar o governo cubano e não esconde que tem um plano de contingência para promover a transição para o “regime democrático”. As recentes medidas de intensificação do bloqueio à ilha revolucionária mostram que o governo imperialista norte-americano move-se afanosamente no sentido de realizar provocações e preparar ações desestabilizadoras contra o povo cubano e seu governo.

Toda essa política agressiva no plano externo tem um correspondente na vida doméstica, cujas conseqüências de médio e longo prazo serão a corrosão dos fundamentos da própria república democrática nos Estados Unidos. O círculo dominante elegeu como prioridade na frente interna o reforço das instituições de segurança nacional. Durante o mandato de Bush foi promovida a maior reforma das instituições de governo desde Truman, que resultou na criação do Departamento de Segurança Interna, um Leviatã ou Big-Brother, que concentrará toda a atividade de inteligência, espionagem e repressão. Novos institutos jurídicos foram criados, destacando-se entre eles a chamada Lei Patriota que atinge direitos e garantias individuais dos que forem suspeitos de atentar contra a segurança nacional dos Estados Unidos.

A Doutrina Bush e a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos reafirmadas agora na plataforma do Partido Republicano constituem um conjunto de princípios e conceitos que regem a ação da superpotência imperialista em seu afã de dominar o mundo. Trata-se do código do reacionarismo moderno, a ideologia de uma força agressiva hegemonista, para a qual a segurança se alcança ameaçando os direitos e a paz dos demais povos e nações.

José Reinaldo Carvalho é jornalista, autor de Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado e A Luta Antiimperialista versus a Hegemonia Norte-Americana, vice-presidente do Partido Comunista do Brasil e diretor do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10