Por trás daqueles olhos azuis havia imensa paixão e indescritível determinação humanas. Poucos dias antes de se cerrarem para sempre leram mais uma vez o que estava escrito em sua última carta: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo… Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue”.

Esta era Olga, a adolescente de 15 anos que antecipou a maturidade na entrega a mais absoluta à emancipação humana. Foi nessa idade que fez sua opção de vida quando integrou o Grupo Schwabing, em Munique, sua cidade natal, formado por jovens comunistas cuja organização tinha sido jogada na clandestinidade.

A menina-mulher afirmou sua dimensão pessoal na forma de sua incorporação à causa coletiva. Ilimitada coragem, dureza com ela própria, simplicidade e despojamento cotidiano numa jovem cujo berço era a burguesia bávara! Uma jovem que cruzou mares e atravessou continentes para dizer que a vida de cada um é uma reconstrução permanente da vida de todos. Uma alemã que se fez brasileira no ventre da dura luta transformadora deste povo gentil!

O coração brasileiro, 68 anos depois de sua partida, reencontra esta mulher que se fez cidadã do mundo, que não nasceu neste solo, que deixou um pedaço de sua vida neste território e como tal se tornou irmã de cada um dos que aqui vivem.

Há que se perguntar por que tanta gente marca, em suas agendas dos finais de semana ou nas noites de seus dias de trabalho, uma hora especial para esse reencontro, nas pequenas salas de cinema deste imenso país. Há que se perguntar o porquê das lágrimas que correm a cada dura cena de um período histórico tão longínquo!

Quem sabe os homens e mulheres que comparecem ao “encontro” com Olga não busquem descobrir, em sua história de resistência, a reconstrução de suas esperanças em meio às mazelas do tempo presente? Na crise civilizatória por que passa a humanidade hoje, onde imperam os valores do individualismo e da competição impostos pela lógica do mercado, a generosidade humana que é a vida de Olga surge como alento. Faz bem relembrar que, mesmo sob o mais sombrio período histórico da barbárie, onde milhões se renderam ao discurso nazista, houve quem resistisse, impermeáveis que se tornaram pela adesão a um outro incipiente projeto de sociedade que se forjava na União Soviética. Sim, ainda não cessou a busca de homens e mulheres “pelo bom e pelo melhor do mundo”! Ressurge, com força, a necessidade de um novo contraponto à hegemonia da atual barbárie do mesmo capital financeiro, materializado no terrorismo de Estado que ameaça os povos da terra.

O reencontro da gente brasileira com Olga provoca uma diversidade de reflexões sobre a trajetória dos povos na busca do progresso humano, as particularidades das experiências individuais e a dimensão histórica da luta de cada país. No caso específico de Olga é também o reencontro com um período em que a crueldade do capital, em sua insana forma política do nazi-fascismo, ultrapassou os limites suportados pela consciência progressista da humanidade. E no Brasil, o impacto é contaminado, também, pelo ainda atual ajuste de contas que o pensamento político brasileiro busca fazer com o contraditório período de Getúlio Vargas.

Uma mulher sem limites

Reencontrar Olga é redescobrir o tempo e as circunstâncias que condicionaram sua desafiadora existência. Na sua trajetória de militante mulher, ela se confrontou com todos os preconceitos que pesavam sobre essa parte do gênero humano. E isso num tempo em que a sociedade alemã começava a aderir aos valores nazistas que reforçavam o papel de subalternidade da mulher. Olga rompeu com a tradição de sua classe de origem e com os sufocantes laços familiares, saindo do conforto de sua casa para um minúsculo cômodo do bairro operário de Neukölln, em Berlim; impôs-se como jovem militante pela ousadia nas ações mais perigosas, como o assalto armado à prisão de Moabit, junto com outros jovens, para libertar o professor comunista Otto Braun, seu namorado; aos dezoito anos já era indicada para o importante cargo de secretária de agitação e propaganda da Juventude Comunista, da cidade de Berlim; com pouco mais de vinte anos já era dirigente do núcleo internacional da Juventude Comunista.

Olga se fez uma mulher libertada, assumindo suas escolhas na plenitude.

As circunstâncias que contribuíram para essa realização, além das características de determinação e coragem que lhe eram próprias, devem ser buscadas nas condições da sua convivência militante. É bom lembrar que no tempo em que ela forjou sua atividade política novas questões eram postas entre os revolucionários, além dos conflitos de classe em curso. O papel da mulher na luta emancipadora era uma delas.

Apesar de todo protagonismo na sua militância revolucionária Olga não se encontra com aquelas que levantavam a bandeira dos direitos das mulheres, naquele período. Mas desfruta das condições criadas pela dura batalha travada, no interior do movimento operário, para fazer valer a importância da contribuição feminina na luta pela construção da nova sociedade. Na sua terra, Alemanha, já há algum tempo teóricos marxistas vinham se dedicando ao tema. August Bebel, com seu A Mulher e o Socialismo, de 1889, antecipa a discussão sobre as particularidades das relações de gênero; Clara Zetkin, dirigente do partido alemão, realiza importante função junto à Segunda Internacional para introduzir, entre outras questões, a luta pelo sufrágio feminino. Clara fazia questão de registrar a contribuição daquela organização internacional, na conclamação aos partidos socialistas e organizações sindicais, para que recebessem as mulheres, em suas fileiras, como membros iguais e responsáveis nas lutas do proletariado. Cobrava, no entanto, uma atitude mais agressiva daquela organização em relação ao papel do movimento feminino de massas.

Foi um período rico de debates sobre o tema também na União Soviética para onde Olga teve de ir escapando da perseguição do governo alemão. Dez anos antes de lá chegar, o recente poder operário, sob a direção de Lênin, havia realizado uma virada decisiva na legislação em relação à mulher. Não satisfeito apenas com as mudanças legais, o dirigente soviético conclamava: “Hoje, nos preparamos seriamente para limpar o terreno sobre o qual construiremos o socialismo, mas esta construção começará somente quando, depois de haver realizado a igualdade completa da mulher, pudermos realizar o novo trabalho junto a ela, libertada de uma atividade mesquinha, degradante, improdutiva”.

Nas condições criadas pelo novo poder soviético, Olga pôde completar sua formação de militante que falava quatro línguas, dedicava-se a fundo ao estudo da teoria marxista-leninista, aprendia a pilotar aviões, a atirar, a saltar de pára-quedas e a cavalgar.

Submetida a um treinamento sem discriminações, Olga se forjou na militante necessária para um duro período de acirrada luta de classes que caminharia para a Segunda Guerra Mundial. E reforçou suas convicções na convivência com jovens de todas as partes do mundo. Foi nessa convivência que tomou conhecimento, pela primeira vez, através do depoimento de um colega latino-americano, da existência de um revolucionário que iria marcar o resto de sua vida: o mítico comandante da Coluna Prestes que atravessara seu país por 25 mil quilômetros (“quase dez vezes a distância entre Berlim e Moscou!”, como diria Olga), sem ter perdido nenhuma batalha para as forças da reação.

As coincidências geradas pela vida fizeram com que ela fosse a escolhida, pela direção da Internacional Comunista, para acompanhar Prestes em seu retorno ao Brasil, responsabilizando-se pela sua segurança pessoal. Aos 26 anos, aquela que já se assumira cidadã do mundo, aceita o desafio: “Estou pronta para partir, camarada Manuilski!”.

Olga tinha pensamento político próprio, independente, mas sabia adequar sua atitude às necessidades das tarefas recebidas. No período anterior de sua militância, ainda na sua terra, tinha sido sempre protagonista, assumindo, à frente, as batalhas nas quais tinha se envolvido. Nas condições de guardiã da segurança de Prestes, assume o seu discreto e secundário papel com precisão. Determinada e capaz de compreender o desenvolvimento dos acontecimentos, mesmo decidido o seu retorno, percebe que nas condições criadas pela ofensiva do governo contra a Aliança Nacional Libertadora, precisa continuar sua função de guardiã da principal liderança pública dos revolucionários do Brasil que era Prestes. E decide ficar. A consciência política e o coração assim o indicavam.

A militante comunista que se forjou nas condições de ofensiva nazi-fascista no mundo teve que pagar um duro preço no plano pessoal. É nesse contexto que tem de ser compreendida a dimensão particular da aparente “dureza com ela própria”. Nascida numa família e numa sociedade, tradicionalmente, de disciplina rígida, num período em que a luta clandestina exigia um elevado rigor nas normas de organização e nas vidas dos militantes, a “dureza” era quase uma exigência da sobrevivência individual e coletiva.

Poderia chegar, em alguns momentos, à tensão máxima: “Meu compromisso é com a revolução, não com o homem!”, revelava a Otto. Mas essa dureza na forma não pôde esconder o imenso coração que Olga tinha e que se expressou no amor e na paixão pela causa e pelas pessoas com quem ela conviveu. No seu discurso em Moscou, quando descrevia a libertação de Otto, através do assalto à prisão de Moabit, terminou seu relato com a frase: “Ali eu cumpria uma tarefa do partido e do meu coração!” Suas cartas da prisão têm a inimaginável doçura e delicadeza dos que são tomados pelo sentimento de amor pelo mundo e pelo outro. Na frieza dos campos de concentração de Hitler ela escrevia a Prestes: : “No pátio há uma árvore e ali aninhou-se uma família de passarinhos. Acabam de nascer os filhotinhos. Se pudesses vê-los… Eles vão, voltam, regressam com insetos e outros alimentos. Passo horas olhando-os e penso em nós. Ah, só os seres humanos são capazes de destruir uma família da forma que fizeram conosco.” E na sua despedida antes da morte, declara: “Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo que não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem”.

A consciência brasileira jamais perdoará o que o governo Vargas fez com Olga grávida e com Elise, entregando-as à Gestapo para morrer. Mas a consciência brasileira jamais esquecerá o que essas mulheres fizeram pelo país. Olga é a encarnação do que há de mais pleno, mais generoso e mais solidário no humano, sendo capaz de reproduzir um ser, em condições tão adversas, para deixar sua filha como um presente para a história. Olga, representante de uma geração de jovens que fizeram uma escolha nas suas vidas, nas telas dos cinemas brasileiros é um alento e um estímulo para o ressurgir da utopia humana.

Solidária humanidade

Com Olga vieram outros. Homens e mulheres dedicados a mudar o mundo, na incipiente e limitada compreensão dos revolucionários de então. À parte os equívocos teóricos que levaram a seu deslocamento, chegou aqui a expressão mais elevada da solidariedade internacionalista nas pessoas dos alemães Arthur Ewert e sua mulher Elise; dos argentinos Rodolfo Ghioldi e sua mulher Carmem; do casal belga Alphonsine e Leon-Jules Vallée; dos Estados Unidos, Victor Barron. A eles os brasileiros devem um tributo de gratidão. Não imaginavam a crueldade com que seriam tratados, quando de sua prisão, pelo governo do país a que vieram servir. A onda avassaladora da barbárie nazi-fascista, na sua dimensão de poder autoritário, também havia chegado ao Brasil.

Só as contradições que a sociedade vivia naquele momento e a necessidade de mudanças estruturais preconizadas pelos “aliancistas” explica o medo que o governo tinha daqueles revolucionários com precária organização. E o medo explica a avassaladora crueldade com que tratou o levante de 27 de novembro de 1935, desencadeando uma onda de repressão, de prisões, de perseguições que atingiu não só os comunistas como também todos os democratas que integravam a ANL.

Corajosas vozes, no entanto, afrontaram o poder e expressaram a solidariedade mais generosa que, naquelas circunstâncias, também podia resultar em novas prisões e torturas. Desde pequeninos papelotes que chegavam aos presos para lhes dar notícias até o singelo gesto do advogado Heitor Lima pagando as custas do processo de Olga.

A solidariedade internacional também se fez presente nos países europeus com grandes movimentos pela libertação de Prestes, Olga e sua filha. Todos esses movimentos, no entanto, tiveram como alavanca impulsionadora a ação destemida de dona Leocádia, mãe de Prestes e de sua filha Lígia.
A história tem muitos exemplos de mães que se agigantam na defesa de seus filhos. Dona Leocádia é uma dessas figuras que, superando todos os limites de sua dura vida de viúva, alcançou os organismos internacionais, como a Cruz Vermelha, esteve com embaixadores e enfrentou até a Gestapo para libertar o filho Prestes e para tentar preservar a vida de Olga e de sua filha Anita. Dona Leocádia é a realização da maternidade plena, abençoada pela história.

Jô Moraes é vice-presidente do PCdoB e deputada estadual (MG).

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 73, 74, 75, 76