A América Latina possui o triste mérito de apresentar a mais ampla fenda que separa ricos de pobres. A ansiosa busca por um porvir de paz, de democracia e de progresso social para nossos povos foi enfrentada por uma série de golpes de Estado e de políticas arbitrárias, prognosticada por diferentes administrações norte-americanas e levadas a cabo por blocos dominantes antidemocráticos apoiados por forças armadas educadas pela tristemente célebre Escola das Américas – instalada no Panamá durante anos.

A concentração de riqueza foi acompanhada pelo empobrecimento do continente e por décadas perdidas para o desenvolvimento e o usufruto com justiça social e equidade de suas colossais riquezas. Ao longo de décadas, as diversas tentativas ensaiadas por nossos povos para acabar com essa política de pilhagem e submissão foram derrotadas com sangue e fogo – sem, no entanto, acabar com nossos sonhos de liberdade.

À construção de ferramentas político-sociais – as mais suficientemente amplas para enfrentar inimigos tão poderosos -, foi sendo aberta passagem no continente, seguindo cada um seu próprio caminho.
Não obstante, algumas características se repetem dando lugar ao que poderíamos denominar uma estratégia chamada a atingir determinados objetivos que permitam desmantelar os mecanismos da opressão e da desigualdade, esboçados pelo Consenso de Washington. Com base na obra precursora de Hayek, a estratégia neoliberal de dominação se estendeu pelo continente há mais de 20 anos com suas receitas de endividamento, venda do patrimônio nacional, destruição do aparato produtivo, domínio aberto do capital financeiro e das transnacionais, desregulação trabalhista, desocupação e da queda dos salários, o consumismo irracional; estratégia que invariavelmente é acompanhada de uma política cultural e ética destinada a fechar cada cidadão em si mesmo. Tal estratégia de dominação transformou-se em objetivo a ser derrotado.

Um programa progressista foi sendo traçado na maior parte de nossas nações. Ele está na base de amplíssimos e muito diversificados acordos políticos e sociais que começam a restabelecer a confiança entre as massas, após a desmoralização produzida pela derrocada do socialismo europeu, pelo desaparecimento da União Soviética e pela configuração do mundo unipolar.

O empobrecimento e a proletarização de grandes setores sociais, bem como a extrema concentração da riqueza, produziram grandes mudanças sociais. Entender esses processos e delinear uma política acertada para unir os trabalhadores e as camadas médias da cidade e do campo se transformou no desafio continental que a esquerda vem assumindo com maior ou menor êxito.

O Partido Comunista do Uruguai, desde o seu XVI Congresso (1955), em particular a partir da aprovação de seu programa no XVII Congresso (1958), delineou uma estratégia destinada a obter a unidade sindical numa única central – objetivo alcançado em 1966 com a organização da Convenção Nacional de Trabalhadores (CNT). Junto a isso se propôs a unir politicamente a esquerda a outros movimentos progressistas. Em 1962 surge o primeiro embrião com a Frente Esquerda de Libertação, comandada por Don Luis Pedro Bonavita – personalidade política que rompeu com o Partido Nacional e com outras personalidades blancas, coloradas, cristãs etc. A luta em defesa das liberdades ameaçadas por Pacheco Areco (colorado) foi a base da formação de um movimento em defesa das liberdades, abrangendo toda a esquerda e os movimentos sociais, personalidades da vida social e políticos democráticos, muitos deles oriundos dos chamados partidos tradicionais. A classe operária organizada na CNT, enquanto principal força de oposição à política do governo autoritário de Pacheco, esteve na base do movimento pelas liberdades que abriu passagem para a formação da Frente Ampla (1971) – hoje a força política majoritária que iniciou o processo chamado a acabar com a enganosa polarização entre blancos e colorados, partidos de um século e meio de existência.

Com o fim da ditadura nosso Partido invocou a traçar uma política de acordos de Frente Ampla com outras forças. Com a formação do Encontro Progressista antes das eleições de 1994, foram dados passos decisivos nessa direção. Em 1989 se obteve a Intendência (administração municipal) de Montevidéu, capital do país onde mora quase a metade da população – vitória repetida em 1994 e 1999. Nesta eleição o EP-FA se transformou na primeira força, com mais de 40% dos votos, apesar de ter perdido as eleições presidenciais ao enfrentar, num confronto, a coalizão dos blancos e colorados.

Estamos a pouco mais de 50 dias das eleições. O arco de novos acordos políticos continuou se ampliando para configurar a Nova Maioria, baseada na incorporação do Novo Espaço. À frente deste movimento está o senador Rafael Michelini, filho do senador Zelmar Michelini, assassinado em Buenos Aires pela ditadura.

Estas eleições têm como característica específica que o candidato do bloco dominante, o senador Larrañaga, do Partido Nacional, traz um programa progressista que copia grandes capítulos do Programa do EP FA-NM, planeja a renegociação da dívida externa e a ruptura com o modelo neoliberal.

É evidente a demagogia de tal programa, falsamente progressista. O outro candidato do sistema, Esc. Stirling, ex-ministro do Interior, representa o Partido Colorado no governo. O Partido Colorado se desmantelou, embora tenha estado no governo durante 90 anos até o golpe de Estado e outros 10 a partir do restabelecimento da democracia. Mas, para além das dúvidas que possamos ter com relação às pesquisas, estas dão 51% ao Dr. Tabaré Vázquez, candidato do EP FA-NM, presidente da Frente Ampla; entre 25% e 27% ao Dr. Larrañaga; e 10% a Esc. Stirling. A esquerda luta para conseguir a metade mais um dos votos em outubro para ganhar a Presidência sem confronto armado; entretanto, os blancos e os colorados têm como objetivo impedir esse resultado e abrir caminho para um confronto armado, no qual imaginam poder voltar a ganhar as eleições, como em 1999.

Mais da metade das crianças, no Uruguai, vive abaixo da linha de pobreza; mais de 180 mil pessoas, numa População Economicamente Ativa (PEA) de aproximadamente mais de um milhão e meio, procuram trabalho e, destes, 66% não impõem nenhuma condição. O trabalho informal atinge a centenas de milhares de pessoas; reina a perseguição sindical; e sistematicamente são violados os direitos por que lutaram muitas gerações de trabalhadores. A corrupção se assenhoreou do país. Banqueiros, como Rhom e os Peirano, saquearam os bancos, desencadeando uma crise financeira de enormes proporções. A extrema pobreza, o endividamento interno, afeta toda a sociedade. A Frente Ampla, no Congresso realizado em dezembro do ano passado, resolveu condicionar qualquer negociação com o FMI à aplicação efetiva de uma autêntica política de desenvolvimento e de enfrentamento da pavorosa dívida social, aplicando políticas sociais que contribuam a obter eqüidade com medidas distributivas – contrariamente às políticas neoliberais.

A chave das mudanças é a participação e a descentralização em todos os níveis, tendo como guia os êxitos obtidos pela Intendência de Montevidéu. Os aliados da Frente Ampla aderiram a esses postulados.

Os comunistas uruguaios, fundadores da Frente Ampla e ativos participantes dos comitês de base aprovaram e contribuíram para elaborar o programa progressista, entendendo ser esse o caminho para avançar na democracia. Lutam pelo fortalecimento da central de trabalhadores, a atual PIT CNT, pelo desenvolvimento da atividade sindical e o fortalecimento de seus tradicionais laços com o sistema de organizações populares que conforma seu entorno.

O PCU faz parte de uma subcoalizão, da Frente Ampla, chamada Democracia Avançada, junto a movimentos e personalidades de esquerda. A Democracia Avançada, apoiando o programa progressista, baseia sua identidade não apenas no histórico papel jogado na defesa e desenvolvimento da Frente Ampla e da unidade das forças democráticas, mas também na heróica resistência à ditadura, bem como num programa inspirado na defesa dos interesses dos trabalhadores e de amplos setores sociais prejudicados pelo neoliberalismo e, ainda, a promoção da mais ampla participação.

Configurar o programa progressista não foi tarefa fácil. Seguramente, para nenhum dos lados. Traçar o caminho para chegar a um país produtivo, oposto à pátria financeira, ao país rentista e especulativo que colocou o Estado a seu serviço, implicou um exercício de compreensão e tolerância – do qual compartilharam todos os aliados. O mesmo em relação à necessária negociação com o FMI. Juntos, chegamos à compreensão das perspectivas abertas ao país pelo Mercosul e os acordos que, a partir deste, podem ser obtidos tanto no continente quanto fora dele. E também a impunidade obtida por assassinos e torturadores do tempo da ditadura – que conseguiram que uma lei, aprovada por blancos e colorados, fosse submetida a plebiscito, demonstrando a caducidade da pretensão punitiva do Estado, assim chamada tal lei – foi um problema discutido durante meses na Comissão Integrada do Programa, órgão do EP FA que delineou o programa progressista pelo mencionado Congresso.

O programa progressista uruguaio se propõe resgatar a dignidade da política exterior, hoje ridicularizada pelo governo entreguista de Jorge Batlle. A paz e o progresso social no mundo são objetivos essenciais de tal programa. O enfrentamento da política hegemônica dos Estados Unidos é outra de suas chaves.

Faltam poucos dias para o encontro, no qual o povo uruguaio – no próximo 31 de outubro – decidirá a mudança de rumo, a esta altura inadiável.

Roberto Catenaccio é redator-chefe de Estudios, revista teórica do Partido Comunista do Uruguai. Tradução de Maria Lucilia Ruy, mestranda em Letras Clássicas pela USP.

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 55, 56, 57