Luis Fernandes é Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Ele falou à Princípios sobre a integração sul-americana na área de ciência e tecnologia, a partir do encontro das comunidades científicas ocorrido em novembro de 2004 em Buenos Aires – em que estiveram presentes os ministros Eduardo Campos (MCT/Brasil) e o ministro de Educação e C&T da Argentina, Daniel Filmus, além de diversas autoridades governamentais e membros das comunidades científicas dos dois países Você esteve, como secretário executivo do MCT, participando do encontro das comunidades científicas de Brasil e Argentina.

Dentro dessa movimentação, é possível construir uma agenda de cooperação abrangente e eficaz em C&T que possa ser força indutora da integração entre os países da América do Sul?

Luis Fernandes – Em primeiro lugar, gostaria de registrar que na Argentina ocorreram duas iniciativas conjugadas, mas paralelas: o encontro promovido entre a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Associação Argentina congênere. No que concerne a este último, houve ampla participação tanto de pesquisadores brasileiros quanto de pesquisadores e estudantes argentinos. Essa foi uma iniciativa dessas associações, com o apoio, no nosso caso, do Ministério de Ciência e Tecnologia e de suas agências – Finep e CNPq. Paralelamente, houve a primeira reunião da comissão de alto nível que planeja e estrutura a cooperação científica e tecnológica entre Brasil e Argentina. Este foi um encontro intergovernamental, com representantes de diversas agências e instâncias dos dois governos para definir um programa de cooperação na área de ciência e tecnologia.

O encontro foi muito importante porque as nossas respectivas comunidades científicas foram estruturadas em forte interação científica e tecnológica com a Europa, num primeiro momento, e, depois, com os Estados Unidos. O Ministério procura promover a ampliação da cooperação empreendida pelo país, coerente com a linha de ampliação do relacionamento externo do Brasil para cultivar novos pólos no sistema internacional. Isso implica ir além da mera evolução espontânea nas atividades de cooperação internacional da nossa comunidade acadêmica, porque ela tende a reproduzir os laços tradicionais já consolidados de cooperação com os países centrais. O encontro de Buenos Aires promoveu uma oportunidade de intercâmbio e intensificação de relações e contatos entre as comunidades acadêmicas argentina e brasileira. Criou um ambiente mais favorável para a emergência de projetos conjuntos de pesquisa e desenvolvimento. A partir dele, podemos romper com a timidez das relações hoje existentes de cooperação científica e tecnológica entre Brasil e Argentina, e ampliar essas relações para os demais países da América do Sul.

O próprio sucesso desse encontro de associações científicas nos permitiu avançar mais no desenho de projetos de cooperação no âmbito da ação intergovernamental. Neste âmbito, uma série de iniciativas muito concretas foi tomada para promover a efetiva integração física dos sistemas de Ciência, Tecnologia e Inovação dos dois países, aprofundando a nossa própria integração econômica.
Primeiramente, acertou-se a ampliação do apoio a projetos cooperativos de pesquisa entre pesquisadores da Argentina e do Brasil por parte das respectivas agências de fomento. No caso brasileiro, estruturamos um programa especificamente orientado para fomentar a cooperação tecnológica com os países da América do Sul, o chamado Pró-Sul, no âmbito do qual, destaca-se a parceria com a Argentina. Ampliamos, igualmente, a oferta de bolsas de estudo para estudantes argentinos se formarem em programas de Pós-Graduação brasileiros, ajudando a cobrir o déficit de formação hoje existente no nosso país vizinho.

Acertamos também a integração dos bancos de dados sobre a capacitação científica e tecnológica dos dois países. Foi definida a ampliação da Plataforma Lattes, hoje desenvolvida pelo CNPq – que serve de base para todo levantamento da atividade científica e de pesquisa realizada no Brasil –, para a Argentina, em um primeiro momento, e para outros países da América do Sul em seguida. Formaremos, com isso, uma plataforma comum de dados sobre a capacidade científica e tecnológica dos nossos países. A Plataforma Lattes já está sendo adaptada para viabilizar a sua expansão para o conjunto da América do Sul.

Uma segunda iniciativa que está sendo implementada no Brasil é a constituição de um portal de promoção de parcerias tecnológicas, uma adaptação da Plataforma Lattes para fazer o levantamento de toda a capacidade de pesquisa e desenvolvimento existente no país e estabelecer a capacidade nacional de oferta de serviços de ciência e tecnologia. Paralelamente a isso, estamos fazendo o levantamento da demanda de necessidades de desenvolvimento tecnológico das empresas. É um serviço de infra-estrutura que procura fomentar e viabilizar a cooperação entre empresas nacionais, institutos tecnológicos e universidades em atividades de pesquisa e desenvolvimento. Ao ampliar esse Portal para a Argentina, fomentamos a integração dos processos de inovação nos dois países; quer dizer, as necessidades de inovação de empresas brasileiras poderão contratar projetos comuns de cientistas ou de pesquisadores argentinos e brasileiros, ou até mesmo demandar serviços de institutos de pesquisa argentinos, e vice-versa.

Além disso, acertamos outras iniciativas comuns. Por exemplo, na área de desenvolvimento de satélites em que temos uma cooperação consolidada com a China, abrimos a possibilidade de uma ação conjunta com a Argentina – em particular, a montagem de uma estação de recepção de dados no país vizinho com fornecimento gratuito de imagens fornecidas pelos satélites sino-brasileiros.

Discutimos, também, um elenco de atividades de cooperação no âmbito do programa nuclear. Isto é muito importante porque, no passado, os respectivos programas nucleares eram fator de forte desconfiança mútua. Ambos temiam que o vizinho pudesse estar desenvolvendo um projeto de armamento nuclear. Essa situação foi revertida com a criação da Associação Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC), um fórum multilateral que monitora os programas nucleares dos dois países. Agora, abrimos a possibilidade do desenvolvimento conjunto de aspectos importantes dos nossos programas nucleares.

Por fim, definimos um posicionamento comum na defesa de que os investimentos em ciência e tecnologia sejam considerados investimentos na infra-estrutura dos nossos país e, nessa condição, retirados do cálculo do superávit primário efetuado pelos organismos multilaterais de financiamento, como o FMI.

No contexto capitalista de hoje, como você fundamenta teórica e politicamente a relação entre C&T, soberania e projeto nacional, e os seus reflexos para os atuais Estados nacionais da América do Sul?

Luis Fernandes – O ponto central é que o conhecimento se transformou no pilar fundamental da agregação de valor e produção de riqueza no mundo contemporâneo.
Essa transformação confere centralidade à C&T em qualquer esforço de desenvolvimento, porque cada vez mais o desenvolvimento nacional se assenta sobre a capacidade de geração de conhecimento. A distribuição desigual da capacidade de geração de conhecimento no mundo se transformou hoje num dos mais importantes – se não o principal –, instrumento de geração, ampliação e perpetuação de assimetrias de riqueza e poder no sistema internacional.

Dada a dianteira que as empresas monopolistas dos países centrais tiveram em variados processos de inovação tecnológica, que hoje dominam os processos de produção e de geração de conhecimento, há, por parte dos países centrais, uma tentativa explícita não só de bloquear a transferência de tecnologia, mas também de boicotar a própria disseminação da capacidade de geração de conhecimento. Hoje, enfrentamos uma espécie de “apartheid tecnológico” nas relações internacionais.
Nesse contexto, a procura de parcerias para ações conjuntas de pesquisa e desenvolvimento, ou a conjunção da capacidade de geração de conhecimento já existente, é dimensão crucial de qualquer esforço de desenvolvimento dos países. Ou melhor, o desenvolvimento nacional, para ser mais efetivo, deve vir acoplado de esforços de integração e de parceria no desenvolvimento científico e tecnológico com países não envolvidos na tentativa de imposição e de preservação desse monopólio do conhecimento. Portanto, qualquer esforço de integração regional precisa estar assentado sobre uma forte promoção da cooperação em C&T, da cooperação e parceria em atividades pesquisa, desenvolvimento e inovação.

Contudo, para tornar-se efetiva e não meramente declaratória, temos de ampliar o leque de relacionamento das nossas comunidades científicas e tecnológicas. Temos de estimular o redirecionamento de parcerias de pesquisa para outros países em desenvolvimento que tenham uma proficiência de geração de conhecimento relativamente consolidada. No caso da América do Sul, a Argentina é que melhor preenche essas condições. No caso da África, a África do Sul. No caso da Ásia, a Índia e a China, e, possivelmente, a Coréia do Sul. Estamos tentando aplicar uma política indutora da diversificação da cooperação científica e tecnológica brasileira com esse perfil.

Um segundo elemento fundamental é a constituição de novos mecanismos de promoção do desenvolvimento científico e tecnológico. Para tanto, temos de casar os investimentos que têm sido feitos em integração física no continente – o BNDES tem sido uma peça crucial nesse esforço – com a promoção e o financiamento de projetos conjuntos de desenvolvimento tecnológico, de pesquisa e desenvolvimento que possam sustentar, com base em tecnologia dos países parceiros, processos de desenvolvimento e de inovação não dependentes da importação de pacotes tecnológicos dos países centrais. Essa é a formulação teórica e estratégica que fundamenta todo o esforço empreendido pelo Ministério de Ciência e Tecnologia para fomentar a cooperação científica e tecnológica com outros países em desenvolvimento, em particular os da América do Sul.

No mercado assimétrico atual, na medida em que essas iniciativas vinguem, é possível que os países da região – especialmente Brasil e Argentina –, consigam se inserir no atual mercado produzindo e exportando mercadorias de maior valor agregado?

Luis Fernandes – Essa é uma questão fundamentalmente política. Se houver a decisão política de estruturar um projeto de desenvolvimento nacional e regional, a elevação da competitividade dos nossos países no mercado mundial vem como conseqüência. Poderemos ampliar a produção e exportação de bens com alto valor agregado, alto conteúdo científico e tecnológico, mas baseada em tecnologias desenvolvidas nacional e regionalmente. É esse o caminho que procuramos trilhar.

Eles atualmente se destacam no agronegócio no mercado mundial…

Luis Fernandes – Na pauta de exportações da Argentina o agronegócio certamente tem um peso muito forte. No caso do Brasil, é relativo. Nós já temos uma presença significativa de produtos industrializados de alto valor agregado na nossa pauta de exportação, como os aviões da Embraer e os automóveis. Mesmo no que concerne o agronegócio, o aumento da nossa competitividade no mercado mundial se deve, fundamentalmente, a desenvolvimentos oriundos de pesquisa científica e tecnológica feita, sobretudo, pela Embrapa. Aqui também se registra crescente agregação de valor nas exportações, embora com limites e potencialidades mais reduzidas do que nas nossas exportações industriais de ponta.

E sobre a integração com os demais países da região…

Luis Fernandes – No caso da América do Sul, o país-chave é a Argentina, justamente por ser o mais desenvolvido depois do Brasil e por ter um sistema nacional de ciência e tecnologia mais consolidado que os demais. Além disso, há uma dimensão política e geopolítica, pois, até recentemente, eram precisamente as tensões existentes entre o Brasil e a Argentina o que inviabilizava uma efetiva política de integração no subcontinente. Na medida em que isso se desfaz e se consolida uma política de aproximação e integração, tendemos a ter grande capacidade de engajar o conjunto da América do Sul, começando pelo próprio Mercosul. Na área de Ciência e Tecnologia, estamos desenvolvendo programas que estimular parcerias com todos os países da América do Sul – o chamado Pró-Sul, que mencionei antes. Essa ação está articulada com outras iniciativas do governo, sobretudo do BNDES, para estabelecer linhas de financiamento para integração física e da infra-estrutura dos países sul-americanos, como as linhas no valor de US$ 1 bilhão cada abertas para a Argentina e para a Venezuela, bem como a ampliação da participação acionária na Caixa Andina de Fomento (CAF), uma espécie de “BNDES regional” da Comunidade Andina. No âmbito deste esforço, o Ministério de Ciência e Tecnologia procura promover ações de parceria e cooperação das comunidades científicas e tecnológicas para gerar respostas regionais aos variados desafios que enfrentamos no nosso desenvolvimento.

E nessa agenda de integração de C&T na América do Sul, quais seriam os próximos passos a serem dados ainda?

Luis Fernandes – Acredito que o passo inicial é dar conseqüência e materialidade aos acordos estabelecidos, que já começamos a implementar com a Argentina. O segundo passo será ampliar essas iniciativas para todo o Mercosul, indo além do simples marco bilateral Brasil-Argentina. Deveríamos pensar a constituição no âmbito do Mercosul, num primeiro momento, e de toda a América do Sul, depois, de uma agência de fomento da ciência e tecnologia efetivamente regional, que pudesse canalizar recursos existentes para programas comuns de pesquisa e desenvolvimento.

Para além da América do Sul, estamos elaborando uma série de iniciativas com outros países em desenvolvimento. Já temos uma cooperação científica e tecnológica de longa data com a China, que está se consolidando e se ampliando – cujo maior sucesso até aqui é justamente o programa do satélite sino-brasileiro. A continuidade desse projeto e desse programa foi acordada entre os governos brasileiro e chinês recentemente. Estivemos também na Índia, num encontro do grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), explorando as possibilidades de cooperação na área científica e tecnológica entre esses países.

Essas e outras ações visam ampliar o raio de cooperação científica e tecnológica do Brasil com outros países em desenvolvimento, para além das tradicionais e já consolidados relações com a Europa e os Estados Unidos.

Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito e membro da Comissão Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 33, 34, 35, 36, 37