É difícil para nós, depois de três revoluções da comunicação, imaginar o que foi o mundo sem a escrita. Pensemos em uma organização social em que qualquer forma de saber, experiência, informação somente poderia ser repassada de boca em boca. O mínimo de tempo que dedicássemos à questão, e se o nosso raciocínio fosse minimamente agudo, nos levaria à conclusão de que tudo – vida comunitária, hierarquia de poder, valores sociais, morais e culturais – se organizaria de forma absolutamente distinta. Por milênios e milênios toda experiência e conhecimento foram transmitidos de boca em boca.

O descendente mais antigo do homem, o Homo sapiens, teria habitado a terra há quarenta mil anos, o documento escrito mais antigo de que temos notícia é de somente cinco mil anos atrás. Foram os sumérios, habitantes da Mesopotâmia, região onde hoje se localizam o Iraque e parte da Síria, os inventores do primeiro sistema de escrita: a escrita cuneiforme. Os egípcios inventaram o seu sistema mais ou menos 3000 mil anos a.C.; os chineses 1500 anos a.C.; os maias 50 anos d.C e os astecas 1400 d.C.

Com certeza qualquer dessas formas de escrita é o resultado de muitas tentativas, de avanços, recuos e saltos. De experiências acumuladas de modo precário, pois o que esses povos ancestrais tentavam criar era justamente a maneira de registrar perenemente o conhecimento. A invenção da escrita representou a primeira grande revolução da comunicação.

Retomando, então, o mundo antes da mudança radical que representou a escrita, vejamos algumas de suas características. Se, como já dissemos, tudo o que se sabia era repassado unicamente pela voz, podemos imaginar que uma das principais características dessas civilizações era a pouca velocidade – logicamente o referencial comparativo é a contemporaneidade. A notícia e a experiência andavam oralmente e a pé. Dos cinco sentidos, o mais importante era a audição, e não a visão, como hoje. O papel da memória era fundamental, tudo devia ser armazenado nela. Para facilitar a armazenagem do conhecimento, a informação tinha de ser trabalhada para que facilitasse o trabalho de memorização; para isso o ritmo, a repetição, a aliteração, a antítese, as frases feitas, os provérbios, a construção do período fundado na coordenação eram os modos de organização do pensamento. E aqui reencontramos nosso tema, a manifestação literária inicial, a poesia, tinha uma função bastante definida: transmitir conhecimentos úteis. Daí que o poeta era antes de tudo um educador. A sua produção verbal era “um instrumento de conservação seja de tradições familiares apropriadas, seja de costumes e comportamentos dignos e aceitáveis”(1).

Com a invenção da escrita, muda a própria organização do pensamento humano. Tudo aquilo que era importante para o trabalho de memorização perde importância; a começar pela própria memória. Com a invenção da imprensa em 1454, por Gutenberg, temos a segunda revolução da comunicação. O livro impresso mudou o homem e as relações entre os homens mudaram o mundo e a visão sobre o mundo. E mudou, ou ampliou-se, a função da literatura. O poeta, ao longo do período do livro impresso, deixa de ser um educador em primeiro lugar; agora ele é, antes, um artista, um criador da palavra. Mas a palavra, o conhecimento, até a criação por Samuel Morse, em 1844, do telégrafo, ainda andava a pé. A velocidade da mensagem, até Samuel Morse, ainda era a velocidade do pedestre. Com a criação do telégrafo, pela primeira vez na história do homem:

“as mensagens poderão viajar mais depressa que o mensageiro. Antes existia uma relação estreita entre as estradas e a palavra escrita. Com o telégrafo a informação se separou de matérias sólidas como a pedra e o papiro, do mesmo modo em que o dinheiro precedentemente se tinha separado das peles, das barras de metal fundido e dos metais para tornar-se papel. O termo comunicação foi amplamente usado com referimento às estradas, às pontes, às rotas navais, aos rios e aos canais, antes de transformar-se com a era eletrônica em movimento de informação.”(2)

O telégrafo inaugura a terceira revolução da comunicação e, para encurtar caminho e acenar para a velocidade da informação hoje, basta lembrarmos rapidamente do e-mail e das teleconferências… Com a informação circulando em tempo real independentemente do local de sua produção, a experiência parece perder força, é o que aponta Walter Benjamin quando redige o ensaio em que, talvez, tenha realizado o balanço mais vigoroso sobre o assunto. Em “O narrador”(3), Walter Benjamin re-percorre a história da arte de narrar, observando-a de um ângulo que absorve o avanço técnico, mas que percebe a perda de humanismo. Ele anota:

“O indício mais remoto de um processo em cujo término se situa o declínio da narrativa é o advento do romance no início da Era Moderna. O que separa o romance da narrativa (e do gênero épico em sentido estrito) é sua dependência essencial do livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da épica, tem uma natureza diferente da que constitui a existência do romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de criação literária em prosa – o conto-de-fadas, a saga, até mesmo a novela – é o fato de não derivar da tradição oral, nem entrar para ela. Mas isso o distingue, sobretudo, da ação de narrar. O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história. O romancista segregou-se. O local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar.”(4)

Walter Benjamin, quando escreveu essas notas, não poderia saber da Internet e do volume de solidão e informação que circulam pela rede. O que ele viu era somente uma prefiguração do futuro, o presente.
Mas a humanidade por várias vezes já se encontrou em grandes encruzilhadas decisivas. O momento em que vivemos é mais uma delas.

O que muda entre uma encruzilhada e outra é o poder de destruição de nós mesmos, que aumenta sempre. Onde buscar conhecimento e ensinamentos históricos para superar os desafios da realidade? Walter Benjamin respondeu com a sua prática: nos livros. O conhecimento e a experiência antes guardados na memória, hoje têm o seu lugar de armazenamento privilegiado nos livros. Mas a profusão de informação circulante não nos permite a simplificação hedonista. Experiência de vida e experiência de leitura, quando bem orientadas, podem iluminar o próximo passo, o passo decisivo. Nunca, porém, sem que passem pelo esforço e pela disciplina do indivíduo, pela determinação de seu caráter e pelo desprezo de qualquer “facilitação pedagógica”(5).

Anselmo Pessoa Neto é professor de Língua Italiana e Literatura Comparada na Faculdade de Letras, da UFG. Este texto reproduz a parte final de conferência proferida no XIV Congresso Nacional da Federação de Arte Educação do Brasil.

Notas

(1)HAVELOCK, Erica. Cultura orale a civiltà della sxrittura. Da Omero a Platone. Bari: Laterza, 1983. Apud BALDINI, MAssimo. Storia della comunicazione. Roma: Newton Compton, 1995, p.20
(2) MCLUHAN, Marshall. Gli strumenti Del comunicare. Milano: Garzanti, 1967. Apud MAssino Baldini, op. Cit., p. 73.
(3)BENJAMIN< Walter ET al. São Paulo: Abril Cultural, 1983.6. (Os pensadores)
(4)Cf. CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção – seleção, apresentação e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2002, p. 59-60
(5) Uso “facilitação pedagógica” no sentido em que Antonio Candido formulou o problema em “Discurso de paraninfo”. In: CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. Op. Cit., p. 310-319..

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 78, 79, 80