O diretor do Centro de Relações Internacionais do Instituto de Economia da Unicamp, José de Souza Braga, expõe nesta entrevista a necessidade da aliança entre o Estado forte e a unidade popular para um novo projeto nacional

O problema central da economia mundial na atualidade é qual o caráter do “ajuste” do dólar – em função de seu processo de desvalorização – que o FED (Banco Central dos EUA) já está a comandar. O que provavelmente deve acontecer e qual o impacto que isso terá na economia brasileira?

Prof. Braga – Não vislumbro maiores problemas por causa do dólar nesta conjuntura. No meu entender, às vezes economistas e jornalistas parecem fazer muito barulho por pouca coisa. Seja por ignorância ou para turvar a água. Como das outras vezes, desde os 1970, na hora H os bancos centrais dos países desenvolvidos se reúnem e fazem os acertos conforme seus interesses e, sobretudo, os interesses americanos que mandam livremente hoje em dia. Quem tem dinheiro – empresas, bancos e famílias – seja japoneses, alemães, chineses ou brasileiros, aplica especialmente em títulos financeiros dolarizados. Por isso, não há, nem haverá, fuga contra o dólar de magnitude expressiva. O valor da moeda americana não pode ser a variável de ajuste de seus déficits comercial e de conta corrente. A coisa é mais complicada. Se fosse para ocorrer maior “equilíbrio” nas contas internacionais teriam de ser alterados, de uma maneira coordenada mundialmente, a divisão internacional do trabalho, os movimentos de capitais e o comércio. Quais dos países poderosos têm interesse nisso? Quais dos que necessitam disso têm força para tanto? Seguiremos desequilibradamente e de crise em crise sabe-se lá até quando. Ou melhor, até que as condições políticas internacionais tornem imperiosos alguns esquemas cooperativos, como Bretton Woods, Plano Marshall etc. Mas o dólar e os americanos também continuarão comandando até muita coisa mudar.
Assim é dado o modo como as forças estão hoje postas. A economia brasileira não tem nenhuma importância – mundialmente falando – em termos capitalistas. É um espaço de valorização financeira para os capitais que vêm e vão ao sabor das oscilações. Claro, as multinacionais estão aqui e faturam na produção porque o nosso não é um mercado desprezível. Mas, como não temos tido projeto nacional de desenvolvimento, desde os anos 1980, este país é especialmente um espaço para aventuras altamente lucrativas, tanto dos capitais nacionais quanto dos estrangeiros. Precisamos considerar que muitas fábricas podem ser desmontadas do dia para a noite e enviadas para outro local. O Brasil vive num fio de navalha. Com uma diferença: são cortados sempre os mesmos. Os de cima podem ganhar menos com as crises, mas raramente perdem.
O Brasil do jeito que vem sendo governado nas duas últimas décadas não tem nenhuma importância – aconteça o que acontecer com o dólar. A equipe econômica brasileira poderia, pelo menos, aproveitar e fazer o real se desvalorizar logo frente ao dólar – o que seria bom para as exportações e para a queda dos juros internos. O resto da conversa é turvação de água feita pela elite, por economistas obtusos e por uma imprensa local cada vez mais ridícula e eticamente suspeita.

Está em debate no Brasil um projeto nacional de desenvolvimento com valorização do trabalho. Com um enfraquecimento que passa a ser estrutural de funções do Estado (privatizações, endividamento público, altas taxas de juros, elevados superávits primários) há possibilidade de, no quadro sistêmico de globalização dos mercados financeiros, algum tipo de “capitalismo nacional” ou “capitalismo de Estado”?

Prof. Braga – Claro que há. Chame de capitalismo nacional, capitalismo de Estado ou como quiser. Há sempre possibilidade de construir uma nação, mesmo com a globalização, desde as forças internas sejam organizadas para isso. Mas quem tem interesse nisso, além dos trabalhadores brasileiros? Quem disse que mesmo entre eles há consciência clara sobre isso? A elite é cada vez mais cosmopolita e pouco preocupada com o Brasil. Se a empresa vai mal ela é vendida para acalantar o patrimônio da família. Esse já é um fato conhecido, desde os anos 1960, quando teve início a longa desnacionalização de nossa economia sem maiores protestos da dita burguesia nacional, salvo escassas e momentâneas exceções. Podemos fazer muito na perspectiva do projeto nacional, mas precisaríamos de muito Estado e de muita organização política popular. O suficiente para conduzir uma aliança neodesenvolvimentista. Fora disso, não vejo como. O Brasil é uma economia subdesenvolvida, sem moeda forte, sem um sistema nacional de inovações tecnológicas, sem poder internacional, com muita pobreza e miséria. E, claro, dotado de um mercado capitalista dinâmico, concentrador de renda e de riqueza, produtor de contrastes aberrantes e violentíssimos. Mas, um sistema de mercado está longe de ser suficiente para a construção de um verdadeiro país.

O governo Lula completou a metade de seu mandato com um crescimento de 5% do PIB. Apesar desse êxito persistem pesadas críticas à atual política macroeconômica. Por exemplo: a seguida elevação das taxas de juros, apesar de uma inflação de 7,60% (2004) contra 9,30% ano passado. Quais as razões desse êxito? É possível que esse crescimento de mantenha?

Prof. Braga – O problema do Brasil nunca foi falta de crescimento. Parte da esquerda dos anos 1960 falava de estagnação econômica. Assim como parte dela hoje em dia segue pensando erroneamente nesses termos. O Brasil atual cresce a reboque do mundo via exportações e através do consumo interno de tipo capitalista, ou seja, aquele consumo das camadas de altas rendas e das camadas que podem endividar-se mesmo com essas taxas de juros mais do que mafiosas. Num certo sentido a economia cresce a despeito da política fiscal e monetária de aperto. Os críticos à esquerda que pensam ser impossível ter crescimento acabam ridicularizados diante dos dados. E o próprio presidente Lula acaba acreditando ser do “contra”, esse pessoal que faz a crítica. Precisamos centrar a pressão a favor da distribuição da renda e da riqueza. Crescer sim, mas por essa via. Ou já há quem defenda primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo? O deputado Delfim Neto desfila atualmente no bloco dos progressistas!
No capitalismo não existe crescimento sustentado. Tudo flutua o tempo todo. A menos que haja instituições públicas encarregadas de coordenar junto com o setor privado a quantidade e a qualidade da atividade econômica. Conseqüentemente, faria bem se o governo partisse, agora – com a inflação já controlada e com o embalo dado pelas exportações –, para a construção de um verdadeiro programa de desenvolvimento. O primeiro passo seria um verdadeiro programa de investimentos públicos que gerasse emprego, dinamizasse a demanda agregada etc Mas, assistimos a um pedido tímido do governo junto ao FMI para que sejamos autorizados a investir! O sistema de mercado capitalista brasileiro cresce, recua, desemprega, cresce de novo, reemprega mais um pouco, reanima de novo e assim vai, mesmo com uma política conservadora, exibindo uma taxa média de crescimento medíocre – mas vai, não atola, não capota. Isso é tolerável na Europa, Japão, Estados Unidos, Canadá etc. Um lento crescimento em meio à opulência. Mas aqui isso tem um significado diferente: a reprodução do capitalismo selvagem no longo prazo simultânea à reprodução estrutural da miséria e da pobreza.

As iniciativas para a retomada do desenvolvimento (PPPs, o novo modelo energético, uma nova política industrial) estão, em fases diferentes, em curso. Não obstante seus limites, além de tais iniciativas, o que deveria ser definido como decisivo para um novo projeto nacional?

Prof. Braga – O projeto nacional tem de ter como norte a eliminação das disparidades sociais e regionais. É preciso uma presença forte, do ângulo qualitativo, das instâncias estatais e públicas. Não há história de capitalismo desenvolvido sem Estado forte. Acreditar no contrário é um disparate, uma ignorância sem tamanho, ou má-fé. Mesmo nos Estados Unidos, se não fosse a presença estatal, como nos anos 1930, o sucesso não teria acontecido. Alguém bem informado e de boa fé diria que lá, atualmente, o Estado é mínimo? Portanto, é preciso ter governo ativo, aparelhos estatais ágeis etc. E também coordenação das ações econômicas. Em que, como e em que tempo iremos investir? Quem tem mais renda e riqueza deve pagar mais imposto. Ou não? Banco tem que financiar o médio e o longo prazo. Capital estrangeiro é bem-vindo desde que promova o desenvolvimento e não a especulação. O capital nacional idem. Parcerias entre o setor público e o privado tudo bem, mas nada pode substituir a ação dinamizadora do gasto público na infra-estrutura em áreas e setores não-rentáveis privadamente. Como ser moderno sem um amplo conjunto de políticas sociais para se erradicar a pobreza e a miséria? Sem isso, qualquer projeto é uma balela. Como ter projeto nacional sem salários reais crescentes? Isso não existe.
Volto a dizer: desenvolvimento sustentado não existe no capitalismo a não ser que Estado, governo, bancos e empresas atuem coordenadamente. Desse modo, o crescimento de 2004-2005 pode seguir no padrão capitalismo selvagem. Um padrão neodesenvolvimentista requer outra política fiscal, monetária e cambial. Requer política de rendas.
Requer criação de grupos de trabalho do tipo da era JK – que tratava do que investir e de como repartir essas tarefas com as empresas privadas. Foi assim também no milagre japonês e alemão após a segunda guerra; e agora é assim na China. Não há mistério.
Mas se muita gente seguir turvando a água seguirá seu curso a cronicamente inviável trajetória civilizada do Brasil, enquanto o capitalismo selvagem vai muito bem, obrigado. Ou seja, o governo Lula até aqui teve sucesso em domar a especulação antes da eleição que havia posto de volta a inflação e havia espantado os capitais. E agora o governo já colocou a reprodução do capitalismo selvagem nos trilhos de sempre. Agora é a hora do vamos ver. Vai continuar selvagem ou será aberta uma era civilizatória? É essa a questão. O dólar isso ou aquilo, a ata do Copom com viés assim ou assado, a queda mais ou menos veloz da dívida em relação ao PIB etc – tudo isso é jogo de dinheiro e de palavras na trilha do capitalismo selvagem! Vamos refazer a agenda do desenvolvimento? O governo do presidente Lula está com a histórica possibilidade de tomar a iniciativa. Haverá ou não uma Era Lula como já houve a Era Vargas e a Era JK?

A. Sérgio Barroso é mestre em economia pela Unicamp e membro do Comitê Central do PCdoB e Elias Jabbour é mestrando em geografia humana pela USP e membro da Comissão Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 32, 33, 34