O PSDB fez da passagem dos cinco anos de vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) uma espécie de plataforma de lançamento da campanha presidencial dos tucanos para 2006. Com uma “catapulta” deste tipo, o que poderia se esperar de um retorno dessa gente ao Palácio do Planalto?
Sérgio Miranda – A Lei de Responsabilidade Fiscal surgiu após a crise de 1998 como uma das condições expressas no acordo com o FMI firmado naquele ano.

A política de juros altos, desenvolvida desde o início do Plano Real com a finalidade de atrair dólares, e a garantia obtida ao serem lançados títulos cambiais para os investidores não sofrerem prejuízos com as mudanças do câmbio fizeram com que em 1999 a dívida pública desse um enorme salto – ela foi praticamente dobrada em relação ao PIB. A preocupação do FMI e do governo naquela época era dar garantias aos credores de que os compromissos assumidos com eles seriam cumpridos à risca. A base da lei de responsabilidade fiscal foi garantir aos credores financeiros que esse tipo de compromisso teria prevalência sobre qualquer outra função do Estado brasileiro. É importante ressaltar que, naquela época, o controle do déficit orçamentário e da dívida pública já havia sido alçado a uma posição de preocupação central e permanente das políticas econômicas formuladas e disseminadas por organismos financeiros internacionais.

Quando Fernando Henrique assume a LRF como central no seu discurso de campanha, não faz nada mais que demonstrar que os seus reais compromissos são com os credores financeiros e não com o desenvolvimento do país e o enfrentamento dos problemas sociais. Pelo contrário: se essa gente volta ao poder o ajuste fiscal será mais rigoroso ainda. A LRF, na essência, determina aos governantes que assumam compromissos com os credores de que tudo farão para manter o valor da dívida, não permitindo a desvalorização – ou até mesmo a renegociação, como aconteceu na Argentina. Mas, ao colocarem a LRF como sua grande bandeira de campanha – já que os tucanos apóiam a política econômica que vem sendo desenvolvida –, eles tentam vender a imagem de que são os mais confiáveis para a aplicação desse projeto e que tomaram um partido: a defesa dos interesses dos credores, contra os interesses de desenvolvimento, de crescimento, de abordagem dos problemas sociais.

Existe, realmente, efeito sobre a redução do déficit?
Sérgio Miranda – Existe muita confusão sobre a causa do déficit público. O PSDB também tem batido na tecla de que o governo federal gasta demais e que essa suposta gastança seria responsável pela nossa dívida pública, como se o nosso déficit tivesse por causa o gasto com pessoal, Previdência, investimento… A crise fiscal do Estado brasileiro é conseqüência de uma concepção segundo a qual o Estado é obrigado a suportar as conseqüências de uma política monetária irresponsável – que paga os maiores juros reais do mundo –, e de uma política cambial que em última instância dá sempre garantia aos investidores de que eles não vão ter prejuízo.

Mas a Lei de Responsabilidade Fiscal não visa combater a corrupção e moralizar a administração pública?
Sérgio Miranda – Esse talvez seja um dos fenômenos de manipulação da opinião pública mais perfeitos realizados nos últimos tempos. A LRF é uma lei de finanças públicas que tenta regulamentar o artigo 163 da Constituição, no capítulo que trata das finanças públicas. Ela regulamenta questões que envolvem ciclo orçamentário, dívidas, déficits, contingenciamentos… Por que ela alcançou tal dimensão social? Esses são assuntos áridos, maçantes, dominados por poucos especialistas. Mas a LRF se transformou em enorme sucesso de público. É importante lembrar que inicialmente ela não tinha essa característica. Na mensagem em que encaminhou a Lei ao Congresso, em 1999, o presidente (Fernando Henrique, na época), disse o seguinte:
“Este projeto integra o conjunto de medidas do Programa de Estabilidade Fiscal, apresentado à sociedade brasileira em outubro de 1998, e que tem por objetivo a drástica e veloz redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (…)”.
Ou seja, ficou claro tratar-se de uma medida dentro do pacote de ajuste fiscal. Mas a essa lei foi sendo dado um conteúdo político – evidentemente mistificador e manipulatório –, como se ela tivesse como objetivo moralizar a administração pública. Não é nada disso, a lei não trata de corrupção, nem de moralidade. Esta lei é uma garantia do Estado aos credores financeiros – e apenas a estes, pois aqueles que detêm precatórios não-pagos – fornecedores de obras, fornecedores de equipamentos e empreiteiros – ficam de fora do escopo da LRF. Mesmo os aspectos positivos da lei – como os relatórios que a administração pública tem de apresentar para informar à sociedade sua situação –, se detêm nos aspectos financeiros. Não é prestação de contas sobre a situação da saúde do município, ou da educação, mas sobre suas contas fiscais para que os credores tenham informações transparentes sobre o assunto de seu interesse.

Como nasceu essa versão tão distorcida desta lei?
Sérgio Miranda – A grande imprensa teve um papel muito importante nisso ao explorar um sentimento legítimo da sociedade, que exige transparência, rigor na aplicação dos recursos, combate à corrupção, apresentando a lei como “moralizadora da administração pública”. Criou-se, assim, um processo que se poderia qualificar de “ouvir falar”, com repetição de chavões, frases feitas e afirmações genéricas – a maioria sem correspondência com o que realmente diz a LRF. O que mais se ouve na imprensa? “Agora, União, estados e municípios não podem gastar mais do que arrecadam”; “Acabou a história de prefeito deixar dívida para o seu sucessor”, daí por diante…
Não é nada disso. O Fernando Henrique não deixou uma dívida enorme para o Lula? Quantos prefeitos assumem com passivos enormes, com salários de servidores atrasados durante meses? Essas questões não são tratadas pela LRF e esses administradores não podem ser punidos por isso com base em qualquer dispositivo da lei. Mas se qualquer administrador deixar de pagar sua dívida com agentes do sistema financeiro – mesmo para destinar o dinheiro para qualquer programa social ou pagamento de pessoal –, então, será atingido pela LRF.

Ao discursar na festa tucana, FHC citou nominalmente o PCdoB e o PT por terem votado contra a aprovação da referida lei. Você e nosso Partido mantêm a convicção contrária a este dispositivo legal? Que justificativas a bancada do PCdoB apresentou para manifestar o voto contrário? Elas se mantêm atuais?
Sérgio Miranda – Assumi, como deputado do Partido, o trabalho na comissão especial que debateu essa lei. Dediquei-me por mais de um ano ao estudo dessa questão e tenho plena consciência de que nossa posição foi correta naquele tempo – ainda hoje não alterada. Na nossa visão, o objetivo da LRF foi instituir em lei os fundamentos de uma política econômica que favorece o grande capital financeiro. Essa lógica permanece. A lei trata de vários aspectos – despesas com pessoal, relatórios, questões de dívida –, mas na essência fez parte do programa de ajuste fiscal, compromisso assumido com o FMI para viabilizar o acordo feito naquele ano, tendo como objetivo central dar garantias aos credores de que aqueles compromissos seriam os mais importantes do Estado nacional.

Na sua opinião, que ordem de prejuízos a LRF provocou ao povo e à administração pública ao longo destes anos?
Sérgio Miranda – Primeira questão importante: o orçamento hoje não discute as despesas financeiras – os juros, a rolagem da dívida. Isso não está em debate, está praticamente imune a qualquer atividade nossa, do Parlamento ou da sociedade. O debate se concentra nas receitas e nas despesas não-financeiras. O superávit primário é calculado a partir da diferença entre o que se arrecada e o que se gasta. E esse superávit é mais importante que qualquer outra despesa, pois é cortada qualquer despesa para garantir o cumprimento da meta de superávit. Portanto, essa visão do orçamento para realizar superávits é a conseqüência mais danosa desse processo. O próprio governo Lula, para demonstrar mais credibilidade diante dos credores, aumentou o superávit para um índice além do que havia sido acordado com o FMI. O absurdo da situação é que o Banco Central tem liberdade de elevar os juros para, segundo sua versão, conter a inflação, sem levar em conta o impacto disso no endividamento público. Os liberais defendem essa autonomia para o BC, mas não esclarecem que quem paga a conta é o povo brasileiro, o desenvolvimento do país.
Segunda conseqüência: a crise gerada no pacto federativo brasileiro. Criou-se uma camisa-de-força para estados e municípios. A União, que renegociou a dívida com estados e municípios – muito mais para proteger os credores do que ajudar os entes da Federação –, impôs, por meio do artigo 35 da LRF, a proibição de alterar os termos dessa negociação. Ao contrário do que muita gente pensa, a União está ganhando muito dinheiro, porque ela se financia pela taxa Selic e os estados estão pagando IGP-DI mais 6 a 9%. Ora, esse índice teve um aumento expressivo e essa fórmula está fazendo as dívidas dos Estados continuarem a crescer como uma bola de neve, apesar de pagarem religiosamente seus débitos. A LRF foi usada para jogar a culpa da chamada crise fiscal nas costas de estados e municípios. E foi propagandeado que a não-renegociação das dívidas, a revisão dos critérios, seria um grande mérito. Omite-se com esses argumentos a real causa da crise: a política monetária dos juros maiores do mundo durante todo esse tempo. E também o fato de o governo ter arcado com todo o prejuízo da mudança de câmbio em 1999.

O sociólogo Betinho, em sua cruzada contra a fome, ironizava os administradores que ante as demandas sociais limitavam-se a lamentar que “a despesa não pode ultrapassar a receita”. Para ele, os governantes haviam sido reduzidos a “contadores”. Com a LRF, os governantes foram de fato reduzidos a algo parecido com isso?
Sérgio Miranda – Existem duas dimensões desse fato identificado por Betinho. A primeira está num campo mais amplo – a subestimação da política e o fortalecimento da economia. Os eleitos assumem os mandatos para seguirem determinações que vêm do mercado, não para satisfazer as necessidades daqueles que os elegeram.
A segunda e que surgem certos mitos que se sedimentam na opinião pública como verdades. Por exemplo, dizer que o administrador não pode gastar mais do que arrecada. Isso é uma bobagem. Significa que não vai fazer nenhuma operação de crédito? O Antonio Ermírio de Moraes elogiou isso numa coluna de jornal. Pergunto: ele faz isso na empresa dele? Ele não pede financiamento para aumentar o investimento e assim aumentar seu lucro? Evidentemente que sim. Seguir essa regra de não poder gastar mais do que se arrecada é impedir que sejam feitas operações de crédito para investimentos. E todos sabemos que investimentos têm retorno – não apenas social, mas também econômico, como no caso de investimentos em infra-estrutura.
Outro exemplo muito usado nesse discurso mistificador é comparar as finanças do Estado com as de uma família. São coisas totalmente diferentes. Como já observava o pai da economia política, Adam Smith, no século XVIII, “o comportamento que pode ser considerado sensato para uma família pode ser ruinoso para um reino”.

Como sair dessa armadilha? A LRF continua em vigência e é até difícil falar contra, tal a campanha feita.
Sérgio Miranda – Mesmo sabendo dessas dificuldades, para mim a pior posição é fazer autocrítica do voto dado contra a LRF, como fez o ministro Pallocci. O PCdoB não faz autocrítica do seu voto, mantém sua crítica. Esse é um enfrentamento contra o pensamento dominante, hegemonizado pelo setor financeiro. É um bom combate, que os que lutam por um país mais justo não devem ter medo de travar.

A defesa da LRF explora a repulsa que há na sociedade à irresponsabilidade e à desonestidade que, de fato, existem na gestão pública brasileira. Contra isso, a legislação existente já é o bastante para as punições cabíveis?
Sérgio Miranda – Certas expressões merecem ser examinadas atentamente e submetidas à crítica. Quer maior irresponsabilidade do que a do Copom, que eleva abusivamente a taxa de juros? A média dos juros reais nos países emergentes é de 3%. E o Brasil paga 13,5%. Isso é que é irresponsabilidade. Mas a LRF não trata de corrupção. Para combater a corrupção existem a lei do colarinho branco, a lei da improbidade administrativa e vários instrumentos legais. Se existe muito ladrão na administração pública não é por falta de legislação. Existem leis que não são cumpridas. Mas a LRF não trata disso. É uma lei de finanças públicas. Visa controlar a ação do administrador para cumprir os compromissos com o setor financeiro. Pode roubar à vontade, desde que pague as dívidas financeiras em dia. É essa a lógica da LRF.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios. Colaborou Gisela Mendonça.

EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 60, 61, 62, 63