Há quanto tempo Maria está ali, a lavar? Não saberia dizer. Nem poderia, que o céu foi assim esmorecendo sem que désse por isso.

      Torce a última peça, desenrola-a em sacudidelas curtas e enérgicas, joga-a dentro da bacia, reune os apetrechos. Tudo por cima da rodilha de pano sobre a cabeça, lá vai a moça com a carga equilibrada, caminho de casa.

      Já andado um bom pedaço, estanca: um touro aponta no alto da ladeira. Vem bufando, locomotiva de chifres; picadores no encalço.

      – Virge santíssima! – murmura. 

      Maria olha pra trás: um estirão até o açude. Olha pros lados: cercas e cercas de arame farpado – os cabos tão juntinhos que mal passa um pensamento.

      – E a roupa, meu deus?! – murmura segunda vez.

      O bicho já vinha, pernas abertas, a meia rampa; os olhos, duas faíscas. Num instante, todo o lavado e quarado mistura-se à terra num mesmo barro. A menina, desabalada, corre em demanda duma saída na vastidão obstada. Imensos descampados confinados, proibidos à sua salvação. Quase ouve o fungar da fera. O pânico, antes motor, converte-se em freio. As pernas desfalecem. A qualquer instante, logo já, seria o impacto; o corpo franzino jogado longe. Ou, então, espetado nas haspas assassinas. Treze anos perdidos numa disparada de besta.

      Não sabe o quanto esteve assim a pensar. Nem pode atinar como foi parar do outro lado da cerca. Só lembra que, no instante em que rasgou vestido e carne, sentiu o vento do touro nos fundilhos e ouviu um tropel de patas e os gritos dos vaqueiros. 

      Nas costas, lhe arde um rastro de fogo. Nas farpas do arame, a tira de xita; no chão, embaixo, gotas de sangue. Meio zonza, letárgica, caminha pelo pasto, rente ao cercado, até a altura das roupas pisadas e dispersas na estrada. Com vagar e cuidado, afasta os fios tensos e paralelos, passa por entre eles e vai recolher, já as lágrimas descendo, as peças enlameadas.

      Volta para lavá-las? Não mais havia dia. Estrelas apontam aqui e ali. Na sombra que se estende, morre a cor; nascem o coro de grilos e o concerto das gias.

      Chega à porta de casa transida de medo. De certo, mãe vai me comer na taca: chegar a essa hora, e ainda com a roupa assim, apodrecida de terra!?

      – Minha filha, o que é isso?! O que lhe aconteceu? 

      Maria desaba. Um choro doído – não sabe se de autopiedade, de dor, de medo, de defesa prévia – planta-a à entrada da sala, bacia apoiada na anca direita.

      A mãe, suave, toma-lhe o peso e o entrega à mais nova. Terna, abraça a cabeça da filha e faz que a nina:

      – Xi, xi, xi. Não chore. Que foi? Me conte.

      Depois de tudo dito e contado; as costas tratadas com mastruz, Maria dorme – cabeça no colo da mãe. Sonha com o touro, é claro, mas vem nele montada, braços abertos, cantando uma toada:

      – Êh, boi!