Quando Quartim de Moraes lançou A Esquerda Militar no Brasil: da conspiração republicana à guerrilha dos tenentes – há quase 15 anos – um certo sentimento de desconforto tomou conta da esquerda. Afinal, acabávamos de sair de uma ditadura militar que havia durado vinte longos anos. Dois mitos, entre tantos outros, pareciam ter sido destruídos naquela madrugada trágica de 31 de março. O primeiro, sobre o caráter democrático das forças armadas; o segundo, sobre a existência de um eficiente esquema militar pronto a defender a legalidade ou rompê-la para estabelecer um regime, efetivamente, democrático, patriótico e popular.

A derrocada do governo Goulart, e de parte da esquerda que depositava expectativa positiva naquela conjuntura de crise, criou as condições para o surgimento de uma nova esquerda que passou a negar sistematicamente a experiência anterior. Tudo o que havia sido produzido foi taxado de autoritário, burocrático, populista e, na melhor das hipóteses, reformista. Assim, a criança foi jogada fora junto com a água suja do banho.

O impacto do golpe e os anos de arbítrio apagaram da memória social o fato de na história do Brasil, desde o processo de independência, terem existido setores avançados nas Forças Armadas que buscaram se aliar à causa da liberdade e do progresso social. Esqueceu-se, por exemplo, do quanto foi destacada a participação do recém-criado Clube Militar, sob o comando do marechal Deodoro da Fonseca, na débâcle do escravismo e da monarquia na segunda metade da década de 1880.

O início do século XX conheceria várias rebeliões da baixa oficialidade – denominadas tenentistas – contra os governos das oligarquias agro-exportadoras. A Aliança Nacional Libertadora foi uma das expressões políticas mais avançadas da esquerda militar que tinha em Luís Carlos Prestes sua principal referência política. Até o início da década de 1960 os militares nacionalistas e de esquerda tiveram ativa participação na vida política do país com as campanhas “O Petróleo é nosso!” e contra o Acordo Militar Brasil-EUA, a resistência ativa para garantir a posse de Juscelino e Jango. Aqui nos referimos apenas à oficialidade. Entre soldados, cabos e sargentos a influência da esquerda nacionalista era ainda maior.

O projeto do autor era vasto e deveria se traduzir numa obra de três volumes – dos quais apenas dois foram publicados. O primeiro – agora reeditado ao público –, aborda o período que vai da conspiração republicana até a Coluna Prestes; o segundo, da Coluna até o Levante da Aliança Nacional Libertadora; e o último – ainda não publicado – abordará da participação brasileira na Guerra Civil espanhola até o
golpe de 1964.

Para Quartim, haveria uma clara continuidade de “inspiração moral e política” entre esses militares, o que tornaria possível falar na existência de uma esquerda armada em nosso país. Porém, esta continuidade havia se rompido “com os amplos expurgos que os golpistas vitoriosos em 1964 promoveram nos quadros das Forças Armadas” e “desde então, deixou obviamente de existir uma corrente de esquerda na corporação militar brasileira”.

Assim, a ausência de uma esquerda militar na atualidade não se constituiria numa “fatalidade inexorável, mas o resultado (…) da grande derrota sofrida pelas forças democráticas e antiimperialistas em nosso país em 1964”. Um quadro que poderá ainda ser superado se a esquerda romper com o “internacionalismo vazio” e o “pacifismo de avestruz” e romper com o seu preconceito ao princípio da “defesa nacional”. Se a esquerda assumisse decididamente em suas mãos as bandeiras nacionais – antiimperialistas – “ajudaria a constituir uma corrente do pensamento militar ‘socialmente mais generosa e politicamente mais avançada’”. Levaria à construção de um consenso em torno do verdadeiro nacionalismo que “não pode dissociar nação e povo”.

A Esquerda Militar no Brasil: da conspiração republicana à guerrilha dos tenentes. João Quartim de Moraes. Expressão Popular – 2005.

Augusto Buonicore

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 81