O texto básico do 11º Congresso do PCdoB indica que a renovação e a reconstrução da alternativa socialista são o tema central da reafirmação da perspectiva revolucionária. Em que circunstâncias e sob que correlação de forças esta tarefa se apresenta?
Renato Rabelo – A idéia da renovação e da reconstrução da alternativa socialista surge como um novo passo de nosso movimento. Antes, no auge da crise do socialismo no final do século passado, o fundamental foi reafirmar nossos princípios e convicções revolucionárias. Agora, passada a turbulência mais pesada – com base na análise das experiências que fracassaram, sobretudo da URSS, assim como nas perspectivas das experiências que sobreviveram –, acreditamos estar iniciando uma nova fase da luta pelo socialismo. Pois bem, esta luta enfrenta condições muito adversas. Concomitantemente com a débâcle do modelo soviético o sistema capitalista passou por mudanças importantes no plano econômico e financeiro e o imperialismo norte-americano reforçou sua hegemonia em todos os terrenos – agora num mundo unipolar. Com isso perpetra uma ofensiva violenta e avassaladora contra os povos e a maioria dos países do mundo. Portanto, pela nossa avaliação, o mundo vive sob uma forte e prolongada onda regressiva e conservadora que coloca em defensiva estratégica o movimento transformador; porém, a ação do imperialismo dos EUA no sentido de manter o mundo sob sua hegemonia unipolar – sobretudo pela via da guerra – gera uma vasta e variada contratendência à submissão e opressão nacional, que com o tempo tende a crescer, ampliando e fortalecendo o movimento de resistência.

O documento também elege como desafio central a criação das condições para a viabilização de uma alternativa ao padrão neoliberal que rege hoje a economia mundial. Por que essa tarefa persiste e prolonga-se mesmo depois do fracasso desse modelo e das vitórias de governos que foram eleitos com plataformas que se conflitavam com seus fundamentos?
Renato Rabelo – A necessidade de abordarmos a nova luta pelo socialismo em condições como as que vivemos nos levou a refletir melhor sobre duas questões teóricas que fazem parte do acervo marxista. Primeira: a época histórica em que vivemos – de transição do capitalismo ao socialismo – comporta períodos históricos bem demarcados no seu seio que não são simplesmente conjunturais; segunda: a história social se desenvolve através de rupturas precedidas de períodos de acumulação de forças relativamente prolongados. Para nós, estaríamos vivendo um desses períodos de acumulação cujo objetivo é reunir forças para superar o neoliberalismo entendido como o esquema de acumulação capitalista cada vez mais financeirizado, mais internacionalizado, mais concentrado e centralizado, sob a hegemonia dos EUA. É uma luta de caráter estratégico e de sentido antiimperialista e anticapitalista. Não há como lutar pelo socialismo sem superar o neoliberalismo. As vitórias conseguidas com esse escopo têm um valor imenso; porém, são ainda iniciais, algo como tentativas de alternativas.

As reflexões do PCdoB sublinham que é preciso um domínio teórico e político mais amplo sobre o capitalismo contemporâneo? Quais as principais características do capitalismo atual e que questões prioritárias na sua opinião devem ser estudadas e investigadas?
Renato Rabelo – Sem dúvida é importante procurar conhecer cada vez mais profundamente o funcionamento do capitalismo contemporâneo. O sistema passa por transformações morfológicas e também mostra condições de adaptabilidade, como se fosse um vírus altamente mutante. Procura se blindar criando mecanismos e instituições de âmbito internacional para enfrentar as crises que aparecem no centro e na periferia do sistema; os países do G-7 se reúnem periodicamente para tratar de seus problemas e assim por diante. Penso que deveríamos nos debruçar sobre mais duas questões interligadas: primeiro, o problema da financeirização que não nos parece ser simplesmente as novas e poderosas ondas de fusões do capital industrial com o capital bancário sob a hegemonia deste último. A financeirização de que se trata aparece como um patamar muito mais alto de descolamento do capital produtivo/mercadoria de sua forma monetária (1). De um volume inaudito de capital fictício que passa a circular esperando a realização futura de mais-valia – que adquire dinâmica própria, passa a ser o centro do sistema, que influencia na relação entre grandes empresas, entre setores da economia e mesmo entre nações. Avalia-se que o montante desse capital em circulação (cerca de US$ 140 trilhões) equivalha a mais de 3 vezes o PIB mundial. Segundo, seria necessário também estudarmos a dinâmica de funcionamento do sistema atual para compreendermos a expansão e as diversas crises do mesmo, ou seja, como ocorre a relação entre países ricos, entre estes e a periferia, mais focadamente entre os EUA e a Ásia. Veja só, de um lado, na reprodução desta dinâmica os EUA passam a absorver grandes empréstimos como forma de cobrir os gigantescos déficits – orçamentário e em conta corrente –; estes, decorrentes em boa medida dos déficits comerciais, perdem parte de seu parque industrial, mergulham no parasitismo; de outro, vários países da Ásia, notadamente a China, passam a acumular grandes reservas internacionais em dólares e em papéis do Tesouro americano a partir dos superávits comerciais, transformando-se, digamos, na fábrica do mundo e apresentando dinamismo econômico. Este “esquema” não é sustentável, tem seu limite, gera uma situação de desequilíbrio estrutural, de instabilidade financeira, monetária e cambial, de tendência ao protecionismo etc.

Em face da complexidade dos desafios históricos da atualidade, inclusive o de elaboração de um projeto nacional alternativo, o texto também ressalta ser indispensável atualizar e desenvolver a teoria revolucionária. Essa tarefa remonta ao início dos anos 1990 quando eclodiu a crise do socialismo. Como o senhor analisa o trabalho realizado até aqui para renovar a teoria?
Renato Rabelo – A teoria revolucionária – elemento absolutamente imprescindível para que o movimento revolucionário se desenvolva com sucesso –, parece ter se petrificado ao não conseguir dar resposta aos desafios sempre inéditos colocados pela construção do socialismo na URSS. Procurou-se responder a tudo com citações, elegeu-se uma experiência como modelo universal, subestimou-se a capacidade de recomposição do capitalismo e superestimaram-se as vitórias alcançadas imaginando já estar sendo construído o comunismo. Sem o pé na realidade concreta a teoria não pode se desenvolver. Mais que isso, hoje o mundo segue uma trajetória de crescente complexidade. São mais de 6 bilhões de seres humanos espalhados por quase duzentos países. Um centro imperialista fortalecido nos últimos anos e uma periferia subordinada muito diversificada que, em parte se desenvolveu e concentra grandes problemas sociais. Experiências socialistas que se mantêm e procuram se firmar. Na busca de solução para superação do capitalismo nas condições particulares dos dias de hoje é que a teoria pode se desenvolver. Há já um começo de sistematização das experiências socialistas remanescentes e também um acúmulo de partidos que vêm obtendo vitórias em várias partes do mundo. Mas tudo ainda muito incipiente para que possamos, sem artificialismo, chegar a um nível mais elevado de síntese, de sistematização e abstração que consistiria em tal desenvolvimento teórico. A teoria científica social, diferentemente das ciências exatas, da natureza, precisa de uma comprovação muito mais complicada e prolongada, com dimensão histórica e caráter de classe.

A luta pela superação do padrão neoliberal tem um exemplo que é o foco central do texto do Congresso do PCdoB: o governo Lula com apoio e participação dos comunistas. Que avaliação o Partido tem dessa experiência?
Renato Rabelo – No nosso projeto de Resolução Política ao 11º Congresso procuramos partir de um entendimento mais profundo e histórico. Para nós, o governo Lula surge de uma necessidade objetiva colocada pela trajetória de nossa nação, ou seja: superar o duplo impasse, tanto do período nacional-desenvolvimentista no qual o Estado burguês se firmou ao desenvolver o capitalismo dependente, quanto dos mais de dez anos de experiência neoliberal que, ao tentar “superar” o modelo anterior, levou a país a uma forte regressão acentuando a dependência, restringindo a democracia e prejudicando fortemente os trabalhadores. Portanto, o governo Lula surge quando são criadas pelo menos algumas condições para que novas forças políticas e sociais pudessem numa perspectiva mudancista tentar viabilizar um novo projeto de nação baseado na soberania, na democracia e na valorização do trabalho. Mas, essas condições criadas não são plenas, pois uma correlação de forças ainda desfavorável fez com que o governo surgisse ao mesmo tempo com compromissos com as forças conservadoras que continuaram a ditar a política econômica seguida, de cunho ortodoxo-liberal. Por isso é um governo limitado que pode conseguir vitórias parciais. Mesmo assim, pelo entendimento de nosso Partido – que ajudou a construir esta alternativa desde 1989 –, o governo Lula é um fator positivo na luta contra o neoliberalismo. Nossa participação tem sido no sentido de impulsionar o pólo mudancista, de fazer com que o governo adote uma plataforma que vá ao encontro dos anseios dos trabalhadores; busque uma base de sustentação mais ampla para isolar a direita e criar as condições de governabilidade; apóie-se na mobilização popular, pois só ela pode reforçar a perspectiva mudancista. Contudo, em várias ocasiões, com vários instrumentos temos criticado as posições que nos parecem atrasadas e prejudicam os interesses do povo.

Diferentes experiências da esquerda mundial demonstraram que a natureza e a qualidade de um partido político, sobretudo quando este exerce o papel de força hegemônica, são fator importante para o fracasso ou o êxito de um projeto político-histórico. Diante desse aprendizado que tipo de partido as forças avançadas – em especial, os comunistas –, estão chamadas a edificar para enfrentar as tarefas da atual quadra histórica?
Renato Rabelo – O fator dirigente é determinante para o sucesso de um novo projeto nacional de desenvolvimento e seus desdobramentos para uma sociedade mais avançada. Não nos referimos, aqui, apenas ao ponto de vista de nossa compreensão teórica mais geral. Ressaltamos as próprias necessidades concretas colocadas pela experiência em curso no Brasil. Pela nossa avaliação, na situação brasileira o fator subjetivo dificilmente se concentraria em um só partido. Ao contrário, é preciso um núcleo sólido de esquerda, preparado ideologicamente, pois a frente da luta de idéias é tão importante quanto a frente da luta política. Contudo, em nosso país um convicto núcleo de esquerda requer a participação destacada do Partido Comunista do Brasil, por nossa história de lutas, por nossa ligação com os trabalhadores, com a juventude e o povo em geral, pela teoria que adotamos e por nosso transparente objetivo socialista. O PCdoB amadureceu o bastante para não se julgar dono da verdade, mas acreditamos que sua trajetória na vida política brasileira o credencia como um elemento importante na construção da unidade das forças progressistas. Por isso, procuramos construir nosso Partido com características que possam ajudar a cumprir esse papel, tais como: um partido que entenda em profundidade as particularidades atuais da luta política conjugando a participação na luta parlamentar e institucional com a mais ampla mobilização dos trabalhadores – o que pode verdadeiramente impulsionar as transformações; um partido com uma militância combativa e numerosa, dirigido por uma estrutura de quadros avançados; e, por último, um partido que funcione em bases profundamente democráticas e que, junto com isto, atue de forma unitária em quaisquer das frentes da luta política e social.
Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios.

nota
(1) é bom observar que este não é um fenômeno propriamente novo. A próposito disso, Lênin no seu "Imperialismo, etapa superior do capitalismo", escrito há 90 anos, dizia: É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do capital da sua aplicação a produção, separar o capital-dinheiro do industrial ou produtivo, separar o rentier, que vive apenas dos rendimentos do capital-dinheiro, do empresário e de todas as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa separação adquire proporções imensas.

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 6, 7, 8, 9