No transcurso do terceiro aniversário da agressão norte-americana ao Iraque o mundo se encontra à beira de nova crise política e nova guerra norte-americana. Manifestam-se concentradamente, sobretudo no Oriente Médio e na América Latina, lancinantes contradições econômicas, políticas e sociais. Exibe-se com nitidez e cores fortes um quadro de degradação e crise, em tudo distinto da rósea realidade vista pelas lentes da social-democracia reformista. Esta continua sonhando com a estabilidade, resultante de uma suposta capacidade de regeneração da hegemonia norte-americana e contando com o surgimento de novos equilíbrios, uma espécie de “multilateralismo assertivo” que mitigaria os efeitos devastadores para a ordem mundial emanados do unilateralismo de Bush e de sua política de guerras preventivas. São hipóteses irrealizáveis, ilusões de intelectuais desligados da realidade, em alguns casos; em outros, propaganda interessada a serviço do imperialismo, uma nova espécie de cavalo de tróia ideológico nas fileiras da esquerda.

Coube ao próprio governo de Bush repor os termos da questão, na teoria e na prática. Os dias anteriores ao terceiro aniversário da guerra de ocupação foram de horror para a população da cidade iraquiana de Samarra – com o que as forças de ocupação pretenderam demonstrar capacidade de controlar a situação e avançar no seu objetivo de manter o Iraque sob domínio. Perpetraram novos crimes de lesa-humanidade, como já tinham feito quando do genocídio de Falluja e dos inúmeros bombardeios realizados, sob os quais foram massacradas populações civis iraquianas. Um dia elas serão julgadas e condenadas como os maiores terroristas, sem registro semelhante na história.

Durante aqueles dias foi lançado em Washington o documento “Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos”. Trata-se de uma atualização, rigorosamente uma reiteração, da mesma estratégia já lançada em 2002, poucos meses antes do desencadeamento da agressão ao Iraque – a qual infatigavelmente os comunistas e revolucionários têm denunciado como uma estratégia de domínio do mundo através de guerras genocidas que põem em risco a democracia, a independência nacional dos povos, a segurança, a paz e a própria sobrevivência da humanidade. O documento lançado agora em março de 2006 reitera que a missão do governo de Bush é “derrotar o terrorismo e as tiranias”, através da “guerra infinita” e das “guerras preventivas”. O documento começa com a afirmação de que “A América está em guerra.

Esta é a estratégia de segurança nacional em tempos de guerra, exigida pelos graves desafios que enfrentamos” – numa clara demonstração da opção militarista e belicista feita pelo imperialismo estadunidense. Não é uma figura de linguagem, nem uma deriva sectária, ou um nonsense dogmático, a assertiva de que as relações internacionais e a diplomacia modernas, inauguradas com a ordem da Paz de Westphália no século 17, tiveram seu ocaso na era Bush. O dobre de finados das Nações Unidas soou quando o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos caracterizou-as, dedo em riste, como organização “irrelevante”, pois “faltava às suas responsabilidades” ao não autorizar o ataque ao Iraque. O epílogo foi o convescote dos Açores, contando com a cumplicidade do governo direitista que então governava Portugal. A partir de então, ficou de todo evidente o caráter farsesco da chamada Pax Americana e a ilusão de multilateralismo como método para manter o equilíbrio mundial na época da globalização.

O imperialismo norte-americano se tornou uma formidável máquina de guerra. O orçamento militar da superpotência beira os 500 bilhões de dólares. Suas tropas e bases militares estão espalhadas em todos os pontos do Globo. São mais de meio milhão de soldados, técnicos e instrutores estadunidenses fora das fronteiras nacionais em 725 bases e missões militares oficialmente reconhecidas em 38 países. Normalmente, quando se trata de fazer essa máquina entrar em ação, vêm à tona as teorizações sobre guerra humanitária, luta antiterrorista, remoção de tiranias, multilateralismo assertivo etc. Mas o que conta para todos os efeitos práticos, é o uso da força.

É tosca ilusão, ou novamente propaganda interessada, a crença de que é possível construir uma ordem global baseada em regras transparentes, em cooperação global, em governança progressista, em organismos multilaterais atuantes e eficazes, em instituições jurídicas sólidas e aplicáveis, em mecanismos políticos e econômicos auto-reguláveis. É um mundo que não existe e não existirá, a não ser com a ruptura revolucionária do ordenamento atual. Outra coisa é a emergência objetiva de novos pólos econômicos e políticos nacionais e regionais seja no campo oposto ao imperialismo, seja no quadro de contradições interimperialistas. A existência desses pólos não significa a manifestação do multilateralismo, antes indica a criação de novos cenários de conflitos e desequilíbrios internacionais.

Porque é inevitável o entrechoque de interesses derivado da formação de pólos opostos.
O lançamento da nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos demonstra que três anos depois da ocupação iraquiana, o mundo não é mais seguro, porquanto estamos no prelúdio de nova crise mundial. “Não enfrentamos maior desafio que o Irã, país que patrocina o terrorismo, ameaça Israel, a paz no Oriente Médio e provoca a ruptura do processo democrático no Iraque”, diz o documento da Casa Branca. Neste momento Washington prepara o ambiente para primeiro isolar e em seguida atacar o Irã.

Invoca a “ameaça nuclear” supostamente proveniente daquele país, forceja a aprovação de resolução antiiraniana no Conselho de Segurança da ONU, mobiliza aliados e vincula a administração da crise iraquiana ao objetivo de atacar o Irã. Outros acontecimentos da política internacional também protagonizados pelos Estados Unidos descascaram a hipocrisia do discurso sobre a ameaça nuclear, como o acordo recentemente assinado com o governo indiano, no quadro da realização de esforços para conquistar aliados estratégicos, tendo em vista os objetivos permanentes na Ásia. A preparação do ambiente para agredir o Irã tem como pano de fundo aquele que é o aspecto central da política externa do segundo mandato de Bush, proclamado quando da convenção eleitoral do Partido Republicano e na posse presidencial: o plano de reestruturação do Oriente Médio, com claro sentido neocolonialista. Washington necessita de governos totalmente submissos ou da intervenção direta na região. Isso explica também as ameaças à Síria, o apoio incondicional a Israel e a sabotagem à nova equipe à frente da Autoridade Nacional Palestina. O segundo governo Bush nada acrescenta de novo.

Reitera uma retórica e um comportamento prenhes de perigos para os países e povos da região do Oriente Médio, alimentando um clima de guerra.

Nenhum desses fatos era imprevisível. Tais planos já estavam esboçados anteriormente e em seu escopo se compreendiam as guerras preventivas contra o Afeganistão e o Iraque, a “guerra ao terrorismo” e outras demarches da Administração Bush. O documento recentemente lançado volta a dizer que “vencer a guerra contra o terrorismo implica vencer as batalhas do Afeganistão e do Iraque”. Os atuais episódios envolvendo o Irã e outras ameaças de intervenção demonstram a existência de uma escalada e de uma persistente política de guerra.

O que há de novo e de imprevisto, pelo menos para os estrategistas da Casa Branca, é que tais planos estão fracassando. A Administração Bush entrará para a história não só como a mais agressiva, mas também como a maior colecionadora de derrotas. Ela vendeu a idéia de que seria pequeno o custo da guerra ao Iraque em face dos fins visados: a derrubada de um tirano e a eliminação das armas de destruição maciça. Suas tropas seriam recebidas como libertadoras do país e salvadoras da humanidade. Cabe ao povo estadunidense cobrar no momento oportuno. Três anos depois de deflagrada a guerra iraquiana de Bush, sua derrota é um fato consumado. Instalou-se no país uma multifacética resistência armada, uma prolongada guerra das forças nacionais e populares, que vão infligindo derrota após derrota ao exército invasor. Os meios de comunicação a serviço do invasor difundem a idéia de que se defrontam contra grupos terroristas e religiosos, inimigos do Ocidente. Hoje já não há como encobrir que é o povo, através de uma miríade de organizações políticas e militares, que está a mover uma encarniçada resistência e a derrotar os planos norte-americanos. O Iraque, tal como a Palestina já o havia feito, está demonstrando que não há futuro para uma política neocolonialista através de ocupação militar. O século XX, com sua experiência de revoluções e lutas de libertação, deixou esse grande legado para os povos: a consciência de que é imperativo defender a causa nacional. É a percepção disso que leva setores da própria direita norte-americana a exigir que se acabe de imediato a “loucura do Iraque”.

Ao fracasso no Iraque soma-se o malogro dos planos do governo Bush para a questão palestina. O “Mapa do Caminho”, que já houvera sido borrado pela intransigência israelense e a persistência dos sionistas numa política repressiva e expansionista, malogrou por completo, como malogrará qualquer plano de paz que não leve em consideração como questão fundamental a devolução dos territórios ocupados e a criação de um Estado palestino independente.

A Estratégia de Segurança Nacional lançada pela Casa Branca em março último insiste no conceito de “países-bandidos”, no alvo da ação agressiva norte-americana. Além dos já referidos Irã e Síria, o governo norte-americano volta suas baterias para a Coréia do Norte, “que segue desafiando a região e a comunidade internacional”, o Zimbábue, a Bielorrúsia e Mianmar, onde promete depor os “governos despóticos”; e faz referências desairosas à Rússia e à China, acusando a grande nação socialista asiática de praticar a “economia fechada”, “violar os direitos humanos” e “desenvolver” programas militares sem transparência.

A América Latina está na alça de mira da ofensiva norte-americana. Particularmente em relação a Cuba socialista e à Venezuela revolucionária e bolivariana a retórica e os gestos do governo Bush são ameaçadores. Sobre Cuba, conforme o documento, “um ditador continua a oprimir seu povo”, num indisfarçável recalque ao constatar que mais de 40 anos de bloqueio e tantas tentativas de desestabilização e magnicídio não foram capazes de prostrar a Revolução, que revela inabalável saúde política e ideológica e capacidade de contornar as dificuldades econômicas.

A Venezuela constitui hoje uma preocupação especial da Casa Branca: “Um demagogo cheio de dinheiro do petróleo ameaça a instabilidade regional”. Poucas semanas antes a srta. Condoleezza Rice exortou os países da região a atuarem contra a Venezuela e fez declarações risíveis negando o caráter democrático das eleições venezuelanas, sucessivamente realizadas e que resultaram em incontestes vitórias de Chávez e das forças políticas da Revolução Bolivariana.

O quadro político em desenvolvimento na América Latina é um sinal eloqüente das derrotas do imperialismo norte-americano. Além da consolidação da revolução Cubana e do triunfo da Revolução Bolivariana, têm se constituído como aspecto progressivo e de promissores resultados políticos as vitórias eleitorais de forças democráticas, patrióticas e populares em diversos países do continente, cujo mais destacado exemplo recente foi a conquista do governo pelo líder indígena boliviano Evo Morales. Não se pode nem se deve fazer uma leitura unívoca dos processos políticos em curso na América Latina, pois pesam bastante as peculiaridades nacionais – muito diversas entre realidades tão díspares como a venezuelana, a brasileira, a boliviana, a argentina, a uruguaia etc. Mas não cabem dúvidas de que o sentido geral do que está acontecendo na região é progressista e tem caráter antiimperialista. Portanto, é grosseiro equívoco contrapor esses processos e supostamente apoiar um e condenar outro. Qualquer vitória da direita no continente, mormente se ocorrer num país da importância do Brasil, terá sério efeito negativo sobre o conjunto do movimento antiimperialista no continente. Percebendo o fenômeno com acuidade, o presidente Chávez fez importante reflexão perante os movimentos sociais reunidos em Caracas durante o FSM policêntrico realizado em janeiro último, sobre o caráter progressista dos movimentos em curso não somente na Venezuela, mas também no Brasil de Lula, no Uruguai de Tabaré Vasquez, na Argentina de Kirchner, entre outros, ainda que sejam notórias as limitações objetivas e subjetivas desses processos.

É significativo e tem extraordinário sentido histórico que o imperialismo estadunidense seja contestado de modo tão contundente na região que sempre considerou como seu quintal e que foi apresentada nos tão recentes anos 90 do século 20 como símbolo de um “novo renascimento”, na expressão de um dos mais pró-americanos e entreguistas estadistas daquele tempo, o ex-presidente brasileiro FHC.

Como é significativo também o plano mega-neocolonialista da Alca ter sido até aqui derrotado, mercê da luta dos povos, da resistência antineoliberal dos movimentos sociais, da firmeza da Venezuela chavista, que disse não à Alca desde o primeiro momento, e da habilidade da diplomacia política e comercial do governo Lula, que desmontou com maestria uma das mais perversas heranças que recebeu – as negociações da Alca. Por isso, a “cumbre dos povos” de Mar Del Plata, que se caracterizou como o “enterro da Alca” entra para a história como um grande acontecimento, ao assinalar uma contundente derrota dos planos norte-americanos. É ao mesmo tempo uma importante experiência da qual é possível extrair lições. Se os povos logram a mesma vitória sobre as disposições neoliberais da OMC cristalizadas nas propostas dos grandes potentados econômicos na chamada Rodada Doha, a globalização neoliberal será atingida naquilo que tem de mais caro: o “livre comércio” e a “desregulamentação”.

A evolução dos acontecimentos no Oriente Médio e na América Latina, com as derrotas do imperialismo estadunidense e o crescimento da resistência dos povos, são evidências de que há alternativa e o imperialismo não é invencível. Durante década e meia (os anos 90 e a primeira metade da década em curso), o movimento popular foi doutrinado pelas forças hegemônicas da centro-esquerda com a tese da inexpugnabilidade do imperialismo e do neoliberalismo, devido a seu poder de destruição e ao controle da economia mundial pelo capital financeiro. Difundiu-se o mito da inexistência de alternativa, justificação “taticista” para encobrir uma postura ideológica de adaptação e no fundo de capitulação. Os fatos das últimas semanas na França (que devem merecer análise à parte, no espaço de outro artigo) constituem um exemplo a mais de que existem caminhos possíveis a trilhar para resistir contra – e derrotá-las – as políticas da direita neoliberal.

Há três anos do desencadeamento das guerras “preventivas” do Afeganistão e do Iraque, o mundo, de um lado, está mais inseguro e o imperialismo mais ameaçador. De outro, os povos estão mais experientes e dispostos a lutar. A luta antiimperialista – tônica dos tempos atuais – será uma luta de longo fôlego. Acumulará forças se fizer seu percurso com radicalidade e amplitude, levantando bandeiras capazes de mobilizar as energias criadoras dos povos, como a da paz, contra a guerra imperialista, dos direitos sociais e políticos, contra a ofensiva anti-social e antidemocrática do neoliberalismo, pelo desenvolvimento e a soberania nacional, contra o neocolonialismo e a dominação imperialista.

*José Reinaldo Carvalho é especialista em Política Internacional; autor de Conflitos Internacionais no Mundo Globalizado e A Luta antiimperialista versus a hegemonia norte-americana; secretário de Relações Internacionais do PCdoB; e diretor do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 64, 65, 66, 67