Há mais de 50 anos, quando nosso país encontrava-se devastado pela guerra e o caos, o grande Benjamin Carrión expressava a necessidade de ter de volta a Pátria. Esta frase foi a inspiração de um punhado de cidadãos que decidimos nos libertar dos grupos que mantiveram seqüestrada nossa Pátria e, assim, empreender a luta por uma Revolução Cidadã, consistente na mudança radical, profunda e rápida do sistema político, econômico e social vigente, sistema perverso que destruiu nossa democracia, nossa economia e nossa sociedade.

Desta forma, começamos esta cruzada chamada Aliança PAÍS, mais que um lema de campanha, uma esperança: a Pátria de Volta, e, com ela, volta o trabalho, a justiça, voltam os milhões de irmãos e irmãs expulsos de sua própria terra nessa tragédia nacional chamada migração.

Esta esperança de uns quantos se expandiu qual fogo em paiol e se converteu na esperança e decisão de todos os equatorianos que, em 26 de novembro de 2006, escreveram uma gesta heróica no país e iniciaram uma nova história. Hoje, a pátria é de todos.
No entanto, agora é que a luta começa. O 26 de novembro não foi um ponto de chegada, mas um ponto de partida. A Revolução Cidadã recém se iniciou e ninguém a poderá deter, enquanto tivermos um povo unido e decidido a mudanças.

Revolução constitucional

O primeiro eixo dessa revolução cidadã é a revolução constitucional. O mandato da cidadania foi claro: queremos uma transformação profunda. Nossas classes dirigentes fracassaram, queremos uma democracia em que seja escutada nossa voz, em que nossos representantes entendam serem nossos mandatários e os cidadãos seus mandantes.

A institucionalidade política do Equador emperrou. Algumas vezes por seu desenho anacrônico e caduco e outras pelas garras da corrupção e a voracidade política. A partilha que reflete a Constituição vigente, através da politização de autoridades de controle, tribunais etc, desestabilizou e imobilizou o país. O Congresso Nacional, supostamente máxima expressão da democracia representativa, não é recebido pela cidadania como seu representante. Pelo contrário, sua perda de credibilidade reflete o desencanto de milhões de homens e mulheres ansiosos por mudanças. As reformas desejadas não podem limitar-se a maquiagens. A América Latina e o Equador não estão vivendo uma época de mudanças, mas uma verdadeira mudança de época. O momento histórico da Pátria e de todo o continente exige uma nova Constituição que prepare o país para o Século XXI, uma vez superados o dogma neoliberal e as democracias de fachada que submeteram pessoas, vidas e sociedades às enteléquias do mercado.

O instrumento fundamental para esta mudança é a Assembléia Nacional Constituinte. Em poucos minutos mais, cumprindo o mandato a mim outorgado pelo povo equatoriano em 26 de novembro passado, e no uso das atribuições a mim conferidas pela atual Constituição Política do Estado, convocarei uma consulta popular para o soberano povo equatoriano ordenar ou negar essa Assembléia Nacional Constituinte de plenos poderes que busque superar o bloqueio político, econômico e social em que o país se encontra.

Graças ao respaldo majoritário a nossa proposta de transformação, a resistência de algumas forças política tradicionais deu passo a um consenso de aceitação a nosso projeto, sem que tenha meio para isso nenhum acordo obscuro ou subterrâneo. Não negociarei com ninguém a dignidade da Pátria. A Pátria não está à venda. O opróbrio do passado histórico, com a venda da bandeira ou pactos que trocavam votos por prebendas, terminou para sempre. (…)

Revolução econômica

A política econômica seguida pelo Equador desde finais dos anos 1980 se enquadrou fielmente no paradigma de desenvolvimento dominante na América Latina, chamado “neoliberalismo”, com as inconsistências próprias da corrupção: necessidade de manter a subordinação econômica e exigência de servir à dívida externa. Todo este receituário de políticas obedeceu ao chamado “Consenso de Washington”, suposto consenso – para vergonha da América Latina – do qual sequer participamos os latino-americanos. Entretanto, certas “políticas” não foram impostas sozinhas, mas solidariamente aplaudidas sem reflexão alguma por nossas elites e tecnocracias.

Os resultados destas políticas estão à vista, e depois de quinze anos de aplicação, as conseqüências são desastrosas. Nos últimos três anos, o Equador cresceu em termos per capita, mas a iniqüidade aumentou e o desemprego duplicou em relação às cifras do começo dos anos 1990, face à maciça emigração de compatriotas dos últimos anos.

Chegou-se ao absurdo de defender como “prudentes” as políticas que destruíram emprego, como as dos anos 2003 e 2004. O dogmatismo foi tão grande, que se chamou “populismo” a tudo que não entendesse o dogmatismo neoliberal. Pelo contrário, qualquer cantinflada em função do mercado e do capital foi assumida como “técnica”, num verdadeiro “populismo do capital”. Como exemplo disso podemos citar os bancos centrais autônomos, não controlados pelas organizações democráticas; o simplismo do livre comércio; as privatizações; a dolarização; e tantas outras barbaridades.

Estas políticas puderam manter-se sobre a base de enganos e atitudes antidemocráticas por parte dos beneficiários das mesmas, com total respaldo de organismos multilaterais que disfarçaram de ciência uma simples ideologia, e cujas supostas investigações científicas se aproximaram mais de multimilionárias campanhas de marketing ideológico do que de trabalhos acadêmicos. Estes organismos também se converteram em representantes dos credores e em braços executores da política externa de determinados países. Por isso, além do fracasso econômico, também diminuíram a soberania e a representatividade do sistema democrático, sendo esta uma das principais fontes de ingovernabilidade no país, incompreensível para a tecnocracia.

Felizmente, como dizia o general Eloy Alfaro, a hora mais sombria é a mais próxima da aurora, e o nefasto ciclo neoliberal foi definitivamente superado pelos povos de nossa América, como demonstram os processos em Argentina, Brasil, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Chile, Nicarágua e, agora, no Equador.
Desta forma, a nova condução econômica do Equador priorizará uma política digna e soberana. Ou melhor, em vez de liberar negociatas liberaremos nosso país dos atavismos e poderosos interesses nacionais e internacionais que o dominam, com uma clara opção preferencial pelos mais pobres e excluídos, priorizando o ser humano sobre o capital.

Entretanto, Equador e América Latina devem procurar não só uma nova estratégia, mas também uma nova concepção de desenvolvimento que não reflita unicamente percepções, experiências e interesses de grupos e países dominantes; que não submeta sociedades, vidas e pessoas a enteléquias do mercado, onde o Estado, o planejamento e a ação coletiva recuperem seu papel essencial para o progresso; onde se preservem ativos intangíveis, mas fundamentais como o capital social; onde as aparentes exigências da economia não sejam excludentes e, pior ainda, antagônicas do desenvolvimento social. (…)

Resgate da dignidade, soberania e busca da integração latino-americana

O Equador se integra desde hoje e de maneira decidida à construção da Grande Nação Sul-americana, a utopia de Bolívar e San Martín que, graças à vontade de nossos povos, virá à luz e, com suas centelhas históricas, será capaz de oferecer outros horizontes de irmandade e fraternidade aos povos sul-americanos, justos, altivos, soberanos.

Quando há meio milênio os primeiros europeus chegaram às terras hoje conhecidas como América encontraram um paraíso onde os seres humanos viviam harmonicamente com a natureza. Por milhares de anos, tribos, povos e civilizações foram construindo um mundo onde a Paccha Mama, a mãe terra, era respeitada, por ser a mãe primária, mãe de todas as mães. Três séculos de conquista e de colônia marcaram para sempre os homens e a terra americana.

Há mais de dois séculos surgem os próceres, indígenas, negros, brancos e mestiços. Filhos do sol e da razão, em que se destaca o médico, o precursor, o homem universal, Eugenio Espejo, representante do despertar primeiro desta América insurgente.

Miranda consolida o pensamento em proposta estratégica e, para Simón Rodríguez, as repúblicas sem republicanos se converterão em simples republiquetas, como hoje quando parafraseamos o professor e dizemos “uma nação sem cidadãos não é uma nação”.

Por esses anos, um 10 de agosto de 1809, a chama se acende em Quito, conhecida mais tarde como Luz da América. Essa geração insubmissa foi exterminada pelos colonialistas, mas um homem – acompanhado de Manuela Sáenz, que teceu sua bandeira revolucionária com retalhos de amor, talento e decisão sublime – único e genial, empreenderia, de Caracas, a heróica luta da independência.

Havia um só caminho e Bolívar o compreendeu ao condicionar nosso destino comum à criação de “Uma Nação de Repúblicas Irmãs”. Duzentos anos transcorreram sem que o sonho bolivariano pudesse concretizar-se. Teremos de esperar duzentos anos mais para obtê-lo? Recordando o próprio Bolívar, jovem e futuro Libertador, quando os temerosos e os pusilânimes reclamavam dele por sua veemência pela causa da independência americana e diziam que ele teria de esperar, respondeu “trezentos anos de espera não são suficientes?” E anos mais tarde, o grande poeta Pablo Neruda, invocava o Libertador:

Eu conheci Bolívar numa longa manhã
Na boca do Quinto Regimento
Pai, disse-lhe:
És ou não és, ou quem és
E olhando o quartel da montanha disse:
Desperto a cada cem anos quando o povo desperta

Cem anos depois da gesta libertária bolivariana o povo voltou a despertar, liderado pelo general Eloy Alfaro – discípulo de Montalvo e amigo de Marti – para quem “o perigo estava na demora”. Agora, aos cem anos da última presidência de Alfaro, novamente esse despertar é incontido e contagioso.

Somente ontem, em Zumbahua, com nossos irmãos indígenas, repetiu-se aquele coral rebelde e cívico que alaga as ruas da América: “Alerta, alerta, alerta que avança a espada de Bolívar pela América Latina”.

Agora nos corresponde, senhores presidentes. Os povos não nos perdoarão se não conseguirmos avançar na integração de Nossa América, para usar a íntima concepção de Martí. Por esta história de sonhos compartilhados, o governo equatoriano manifesta a seus irmãos seu compromisso profundo com a integração de nossos povos. Esperamos a volta da Venezuela à Comunidade Andina das Nações, para junto ao Mercosul, ao Chile, Suriname e Guiana, concretizar-se o quanto antes a institucionalização da Comunidade Sul-americana e as ações sociais, culturais, econômicas e políticas tão enunciadas e oferecidas em palavras se tornem realidade.

O governo do Equador, como já o sabem, senhores presidentes e representantes dos países sul-americanos, oferece Quito, Luz da América, como um espaço para reflexão e construção da Comunidade Sul-americana. Que a futura Secretaria Permanente se instale em terras equatorianas, se os senhores presidentes o considerarem oportuno e conveniente.

Façamos honra ao sacrifício dos próceres e libertadores e ao clamor de nossos povos para que a América do Sul se converta em exemplo ante o mundo de uma Grande Nação Sustentável de Repúblicas Irmãs, para o nosso bem e exemplo para toda a humanidade. (…)

Rafael Correa é presidente do Equador. Este texto reproduz trechos de seu discurso de posse. Publicado originalmente em El Commercio, Quito, 15/1/2007.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 31, 32, 33, 34