O meu professor de latim dizia que os sentidos figurados das palavras pertencem à margem esquerda do rio da linguagem, pois o lado direito é território exclusivo dos significados concretos, entrecortados por uma imensidão de outros rios que desembocam no oceano do nosso intelecto. O que ele queria dizer com isso é que eles – os sentidos figurados – representam uma exceção e um requinte dentro do nosso instinto utilitário destro. Esta afirmação um tanto original de um mestre, que me encantou na iniciação lingüística da pré-adolescência, aflorou à minha memória quando estava começando a redação de uma crônica sobre crônicas.

      Tinha abordado o assunto escrevendo assim: Faz tempo que estou acariciando a intenção de… Quando empaquei no “acariciando a intenção”. Acaricia-se um sonho, uma idéia, um ideal, uma esperança e quantos mais sentimentos queira-se expressar, mas pode-se acariciar uma intenção, que é um propósito e não um sentimento? Seria preciso perguntar aos poetas, de qualquer tempo e de qualquer lugar, freqüentadores assíduos que são das margens esquerdas dos rios de palavras.

      Para passar a questão a limpo, fui consultar o meu inseparável amigo Houaiss, em seu dicionário que nunca me deixa mentir. Que decepção! Ele despacha os verbetes carícia e acariciar em poucas linhas, diria eu que sem tesão. Ele registra que o termo carícia pertence ao latim medieval na forma caritia, que deu carezza em italiano (século 14), gerando, em seguida, formas similares nas outras neolatinas. Quanto ao conteúdo dos dois termos, ele descreve sumariamente o óbvio, que é a manipulação sexual, além de citar  poucas e batidas formas figuradas.

      Pois é. Navegando no meio do rio, com visão das duas margens, um sábio da dimensão de um Houaiss esquece-se (esqueceu-se, aliás, já que nos deixou, infelizmente, há  tempo), que, por exemplo, um seio vestido, delicadamente modelado, acariciado pela visão de alguém todos os dias, pode inspirar uma paixão secreta. Que se transformará em uma obra de arte, também secreta, pelo menos até quando puder ser contida. Que um soneto, e outro, e outros, ostensivamente eróticos podem seduzir e saciar alguém como se fossem carícias de arrepiar. Que estados conscientes pela plenitude da sexualidade podem conduzir à paz e à serenidade. E nos levar, finalmente, ao lado esquerdo do rio para exercitar nossa paixão de criar os sentidos figurados dos nossos sentimentos.

      Assunto encerrado. Mas ainda dá tempo, ou melhor, sobrou algum espaço para falar sobre crônicas, como era minha intenção quando iniciei essa matéria. Afinal, o que é uma crônica? Como o próprio nome diz, é algo vinculado ao tempo. É ou era? Era. Era no tempo em que a mídia impressa comandava, sozinha, a divulgação de notícias, de fatos que acabavam de acontecer, que se arrogava o direito de comenta-los e tomar partido a favor ou contra destas ou daquelas idéias. E cronista era aquela pessoa que desfrutava de um prestígio relevante para escrever pequenos textos a propósito ou a despropósito dos assuntos mais polêmicos do momento, preservando um estilo próprio e uma qualidade literária diferenciada.

      Mas os tempos mudaram e o termo ficou. Hoje, a qualificação de crônica significa um texto breve que emite qualquer opinião sobre qualquer coisa, sendo, às vezes, apenas um pretexto para exercitar um gênero literário menor, no formato e no compromisso. E cronistas são os caras que, geralmente, cultivam essa atividade como subsidiária de outra de maior dimensão profissional.

      Até que as denominações de crônicas e de cronistas poderiam mudar em função dessa nova realidade. Mas, enquanto isso, as crônicas constituem espaços redacionais disponibilizados para autores e leitores das mais diferentes origens de formação e dos mais variados interesses de divulgação e fruição. Que vão do academicismo ortodoxo comemorando mais uma vez uma efeméride, dispensando qualquer forma criativa perturbadora, à desconstrução de um texto em que um poeta como Marcus Accioly quase não se basta das reminiscências e das palavras possíveis para passar sua profunda tristeza pela morte de um cão feito gente. Até a presença de um aventureiro da palavra escrita, como eu que fico passeando pela cultura e pelas culturas de uma forma que é filosoficamente discutível mas com uma virtude, talvez: seja qual for o teor do assunto, não dispenso limar e pentear o texto até o ponto em que me sinta no direito de acariciá-lo um pouco.