– Oito décadas e meia… Quem diria, hein, seu Astrojildo?

      Seu Astrojildo sorri, detrás dos óculos redondos, Machado de Assis debaixo do braço, xicrinha de café na ponta dos beiços, coado e servido no boteco da esquina da rua da casa de dona Elza, em Niterói.

      Seu Inácio, dono do estabelecimento, é que fez a pergunta admirada. Quando chegou ali, tem pra mais de vinte anos, não botava fé que o velho durasse tanto. Pois durou. Durou e fez a tal da livraria, não só resistir, como crescer.

      Sempre foi um homem discreto, esse Seu Astrojildo. Até mesmo seus gestos não comuns são de uma economia de se admirar. Mas, vai ver que por conta disso, cada um deles é vivamente comentado no bairro. Nesse dia, no boteco, seu Astrojildo só fez sorrir, depositar sua xícara no pires e olhar bem fundo do olho de seu Inácio. Mais tarde, o comerciante revelaria que, naquele instante – não sabia direito –  algo havia mudado.

      Seu Astrojildo chegou à casa de dona Elza como sempre chegara: de manso, mas anunciadamente. Lá encontrou seu João, miúdo, lendo jornal e tomando mentalmente nota da vida. Cumprimentaram-se e tocaram a prosear sobre o dia, as noites, as notícias, as mudanças.

      Passados menos de vinte minutos, chega seu Luís Carlos. Ele e seu João andaram uns tempos sem se bicar, às turras um com o outro, mas, nas comemorações do natalício de seu Astrojildo, davam uma trégua. Depois, já faz tanto tempo aquela briga em torno da marca da livraria (ambos também eram livreiros), que nem valia mais a pena tocar no assunto.

      Dona Elza chamou os três pra cozinha. Já terminara de enfeitar o bolo e ia enrolar uns brigadeiros, para o que solicitava uma ajudinha. Foram todos lavar as mãos, arregaçar as mangas (seu João deve que se livrar do indefectível paletó) e fazer bolinhas de chocolate.

      Estavam nisso, quando irrompe no recinto, pandeiro na mão, seu Maurício, secundado pela solenidade dos vastos bigodes de seu Diógenes. Enquanto esse depositava na pia cervejas, vinhos, cachaças e limões, o primeiro roubava algumas bolotas inconclusas de brigadeiro, sob os protestos de Dona Elza.

      Quando tudo já estava pronto, noite instalada, mesa posta na sala de estar, chegam os convidados: primeiro, os ruidosos Osvaldo, Maria Lúcia, Helenira, Dina e toda turma do Bico do Papagaio; depois, a discreta dona Olga e a sogra Leocádia; seu Brandão e seu Apolônio, seguidos dos três Carlos e do espevitado Rogério; seu Tom, com sua calma ecumênica;  dona Loreta, seu Lincoln, seu Roque e a Turma dos Nove – companheiros de carteado de seu Astrojildo, co-fundadores da livraria -; os moços João Batista e Honestino, e os velhos Pedro e Angelo.

      Seu Maurício puxou o samba, fazendo quarteto com seu Mário, seu Aparício e seu Jorge – esse, acompanhado de suas mulatas. Chegaram-se à roda seu Cândido, seu Graça, dona Patrícia, seu Oswald, seu Jurandir, seu Dyonélio, o Vianinha, o Gomes, o Gianfrancesco e mais uma ruma de gente. Quando deram fé, a festa tava era na rua e, uma vez ali, virou bloco, escola, procissão, passeata, protesto de amor e fidelidade à felicidade geral, total e irrestrita.

      A folia ganhou as páginas dos jornais. As tvs não davam conta de tantos boletins. O cortejo já entrava no Rio e não parava de juntar gente.

      Quando as autoridades se acordaram, o sol já se antecipara e amanhecera o País.