A mulher levava uma existência pela metade, em prisão domiciliar decretada pelo marido, e com o aval e a cumplicidade dela mesma, a sua vítima preferencial, se bem que este tipo de erosão do ser sempre atinge outras pessoas da sagrada família. E no intervalo entre a vida domesticada e a liberdade, a mulher passeia pela cidade: “Meu filho, eu era uma mulher casada, e agora sou uma mulher”.

      Nesta redescoberta de que o mundo existia, a mulher, transfigurada pela vertigem do dia, que há muito não via, a mulher sentiu-se livre e feliz; lembrou-se, em uma espécie de transe, alucinação de epifania, as cenas que marcaram sua infância para sempre – por exemplo, “as quedas de um homem que caía sempre, e viveu caindo até morrer”.

      Tentando encontrar um lugar para por os pés, a mulher, ainda maravilhada, apoia seu pânico na imagem do marido: “os desejos são fantasmas que se diluem, mal se acende a lâmpada do bom senso? Por que os maridos têm de ser o bom senso? O seu é particularmente sólido, e não erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez”.

      Entre o desenfreado desejo de mergulhar na vertigem abissal, da liberdade sem medo, apenas vislumbrada, e a queda na iluminada escuridão do bom senso, que a sufocava, e a matava aos poucos, na dor apaziguada da paz conflagrada do “lar doce lar”, e do conveniente conforto burguês. Sem dinheiro para viajar, para lugar qualquer, ou para hospedar-se em um hotel, onde poderia ficar a sós com a iluminada solidão, que acabara de descobrir, em seu instante de liberdade.

      Ao deitar-se, de novo integrada e resignada à paz de cemitério, sob o céu de chumbo de um inferno celestial, que sempre fora o seu insípido e normal cotidiano, que outras mulheres, ainda mais infelizes do que ela, secreta ou declaradamente invejavam, depois de emergir do mergulho abissal em águas nirvânicas, vivia ainda a viagem para a Liberdade, que não teve a coragem de ousar: “Dentro do silêncio da noite, o navio se afasta cada vez mais”.  O navio se afasta cada vez mais, e vai sumindo lentamente, na escuridão da noite, em meio ao imenso oceano, enquanto a mulher, depois de cair entre as vagas, tentava manter-se à tona da lucidez, tentando, desesperadamente, não renunciar para sempre a toda esperança, como tem de faze-lo toda alma, ao chegar no inferno.

      Assim escreveu Clarice Lispector: “ Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa, embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Nunca nasci, nunca vivi. Mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva”.  

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.