Tarde (Cia das Letras, 2007) é, sem dúvida, um livro superior à maioria dos lançamentos de poesia contemporânea deste ano. Ele reúne a mais recente produção do respeitado professor, tradutor e poeta carioca Paulo Henriques Britto. Com Macau (2003), o autor venceu o prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. De timbres cosmopolitas e dicção mais madura, apurada e cosmopolita, esse seu Tarde é forte candidato a arrebanhar prêmios pelo mundo afora.

      No poema número 5 da série “Crepuscular”, acham-se duas frases que resumem bem o clima lírico da obra: “Toda palavra já foi dita. Isso é sabido.” Tal consciência dos limites da linguagem e da dificuldade de gerar o novo na série poética histórica apresenta-se no âmago dos versos do poeta e é o grande motor de sua obra. Em Tarde, Britto trabalha com a noção precisa de que toda palavra é tardia. Por um lado, porque a palavra é posterior à vida. Por outro, ela é tardia porque dentro da tradição ocidental, esgotaram-se as possibilidades de avanço pela novidade poética.

      Entretanto, essa espécie de ‘consciência crepuscular’ não resulta nem em rabugem, nem em revolta. Em Britto, se a palavra é tardia, não deixa de iluminar às coisas e a si própria com uma lucidez muito peculiar; uma lucidez que é inerente ao gênero lírico, em suas melhores realizações.

      Estão armados, portanto, dois núcleos poéticos e dilemáticos em torno dos quais a consciência do poeta exibe postura ora de ironia, ora de desprezo, ora de uma quase indiferença, ora de busca silenciosa e insistente. O primeiro desses núcleos diz respeito à oposição arte X vida. Aqui os poemas exibem a perfeição e a frieza de sua linguagem sempre em oposição à vida que pulsa no mundo real, como na primeira estrofe de “Matinal”: “Nesta manhã de sábado e de sol, em que o real das coisas se revela/ na forma nada transcendente de uma paisagem sobre a janela.” É o real da vida (que a palavra, por mais que se esforce, não capta totalmente) que foge ao poema, sempre seduzido pelas metafísicas da linguagem. Um eu anti-metafísico é que constata isso em “O metafísico constipado”: “Mas diante de tal ânsia de infinito/ como pode tão pouco ser bastante?/ aos céus ele pergunta, e na terra procura/ um bom compêndio e o frasco de purgante”. A poética e a linguagem de Paulo Henriques Britto, pois, são deliberadamente tardias, para mostrar que qualquer verbo que se queira metafísico, não conduz ao infinito. O compêndio e o purgante são provas de que a vida ainda é mais urgente e mais forte do que a imanência formal da palavra e a transcendência vã da metafísica.

      O outro núcleo poético de Tarde reside na relação dos versos de Britto com a série literária. Nesse quesito, uma espécie de mal-estar de pertencer ao pós-moderno pode ser percebida, talvez mais como sintoma do que como proposta. Algo que se dimensiona bem quando se lêem os versos: “Chegamos muito tarde, e não provamos/ o doce absinto e o ópio dos começos./ E no entanto, chegada a nossa vez, recomeçamos.” O eu melancólico e contido revela seu lugar na história. Nem que seja obliquamente, uma vez que os versos de Britto são animados por um profundo classicismo, que, no entanto, não os faz perder em agilidade, leveza e sotaque moderno. É que o poeta combina bem essa tradição clássica com certo ar típico dos beats ou dos letristas da canção popular. Bob Dylan (junto com Dante ou Pessoa) é certamente uma das referências que, submersas, dão músculo e ossatura à poesia de Britto. No que se refere à tradição, há em Tarde inúmeras referências indiretas e mesmo diálogos com escritores que formaram o cânone. Entre eles, está o João Cabral do poema em homenagem à aspirina; ao qual Britto responde com “Para um monumento ao antidepressivo”, um pequeno “sol de bolso”, que impede o verdadeiro sol de revelar “sem distorção/ dura, doída, suportável/ a humana condição”. Visita ainda os versos de Britto o misterioso odradeck, o ser-coisa do Kafka de “Tribulação de um pai de família”, que, no seu poema, gira e exibe vida não reificada no silêncio da noite da casa da família, a qual dorme sem perceber-lhe os movimentos.

      O resultado de tudo isso é poesia de primeiro nível, embora em alguns momentos o clacissismo dos versos e do tom confira uma espécie de serenidade de empáfia à voz lírica de Britto, o que resulta em leve aparência de comodismo. E comodismo, em poesia, é quase sempre negativo. Todavia, alguns dos excelentes trechos dos poemas exibem, longe disso, imagens atritantes, inquietas, suavemente violentas, que fraturam o aparato bem armado da forma poética de corte tradicional. A esse respeito, eis três belos versos de “Soneto sentimental”: “Que amor mais besta – uma espécie de peixe/ palerma, que nada, nada e não sai/ do lugar – é isso?”

      Lido pelo viés da palavra tardia, Tarde pode levar a reflexões sobre a possibilidade de essa forma a que chamamos poesia (tão gasta e, ao mesmo tempo, tão viva) conferir algum conhecimento e impor-se ao mundo como algo que o exiba, muito embora faça isso exaurindo-lhe o sopro vital a fim de chegar à forma perfeita. Para além de sintonizar a produção brasileira com a tradição cosmopolita da poesia mundial, a maturidade dos versos de Paulo Henriques Britto traz ao leitor a constatação de que “dizer” pela palavra poética é sempre pouco diante do mundo que, de resto, não se ocupa de dizer, mas de existir e fim. Isso, contudo, quase sempre é o mínimo que se pode fazer, para que a existência humana não se esvazie em futilidades ou quinquilharias de ocasião. Britto prova que a poesia resiste. Ainda que tardia, ela é um grão de liberdade.