A maneira mais fácil de definir o poeta pernambucano Manoel Bandeira é valer-se de seus próprios versos. Um deles, em especial,que está em “Não sei dançar”, parece dar conta do fenômeno que ele representa para as letras modernistas: Bandeira é “Tão Brasil!”. É ‘tão Brasil’, que defini-lo dicotomicamente em termos religiosos ou profanos é certamente deixar escapar cores contraditórias e elidir o verdadeiro núcleo poético de sua produção – a sentimentalidade de timbre decisivamente brasileiro. Salvo engano, não é forçar essa dicotomia aquilo que a coletânea Poemas religiosos e alguns libertinos (CosacNaify, 2007) pretendia, apesar de assim sugerir o título.

 

Uma edição cuidadosa – A publicação destaca-se pelo primor. É verdade que a seleção dos poemas e o posfácio, realizados por Edson Nery da Fonseca procuram tornar Bandeira um poeta devoto e católico, mais do que religioso. O posfácio, que é resgatado da primeira edição da coletânea, de 1984, tem claramente o intuito de “provar” a religiosidade de Bandeira, apesar de disfarçá-lo bem. Mesmo incorrendo em algumas simplificações do ponto de vista literário, o posfácio resiste do ponto de vista religioso e é um documento que se deve ser considerado para a leitura da crítica ao poeta. Falta, entretanto, à edição, um contraponto “libertino” que lhe faça frente, capaz de sublinhar a contradição inerente ao lirismo de Bandeira. Nery da Fonseca abstém-se de comentar o Bandeira libertino. A edição recolhe ainda uma deliciosa raridade: um pequeno texto do também pernambucano Gilberto Freyre, que reforça a visão de devoção e catolicismo acerca do poeta. Trata-se de um depoimento de amigo, tão saboroso quanto alguns dos próprios poemas do livro, que recupera algo do melhor pensamento de Freyre, em especial algumas considerações que trazem de volta, subliminarmente, Casa Grande e Senzala, no que se refere à intimidade ‘familiar’ dos brasileiros com os santos.

 

A luxuosa edição de Poemas religiosos e alguns libertinos é ilustrada por desenhos delicados de Guignard, que abrem cada uma das seções em que o livro é dividido. Essas ilustrações captam muito bem o espírito lírico bandeiriano, recuperando os matizes populares, misteriosos e inquietos da relação do poeta com o mundano e o místico. No fim das contas, em termos editoriais, cabe sublinhar o cuidado, o respeito e o esmero com que a CosacNaify tem republicado algumas das obras mais importantes de Manuel Bandeira, entre elas algumas que estavam relegadas ao esquecimento, como as Crônicas da província do Brasil.

 

O místico carnal – É nos poemas da coletânea que está o Bandeira que conhecemos e reconhecemos como poeta próximo de nós, porque sua visão de mundo não é a de um místico, nem a do libertino; é a do homem comum, inquieto com suas próprias dúvidas. A visão religiosa do poeta é sempre mais humanizadora que mística; há menos transcendência do que imanência.

 

Tratando da figura de Deus, o tom é de devoção, mas sempre mesclada com o humor, a ironia, a dúvida e a camaradagem com os santos e os mortos, como em “Programa para depois de minha morte”. O onipresença do Deus católico aparece menos por devoção do que pela sombra avassaladora da morte, que, de resto, está em toda a obra do poeta: “Tudo é milagre./ Tudo, menos a morte./ – Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.”

 

O que interessa mais a Bandeira, na “Sagrada família”, são os laços humanos, abrasileirados, muito mais que o aspecto místico. Cristo, em Bandeira, é visto sob o prisma da cultura popular, que se insere até na métrica predominante: a redondilha menor. Cristo não é a sofrida figura da cruz da Igreja oficial. É, de outro modo, uma figura do imaginário do nosso povo, o menino humanizado cantado em festas e autos nada oficiais pelo país afora: “Por nós ele aceita/ O humano destino:/ Louvemos a glória/ De Jesus menino”. A incerteza do milagre humaniza ainda mais o Cristo: “Ele sabia que seria inútil/ O maior milagre;/ Que inútil seria todo sacrifício”. Assim, a subjetividade do poeta e a de um Cristo humano identificam-se, sobretudo pela via da revelação da paixão (pathos) e da dúvida diante do absoluto, como o “Talvez me salve” de “O crucifixo”.

 

Na figura da Virgem Maria, a devoção está equilibrada com a sensualidade e o tema da sua fecundação pelo Espírito Santo, com uma tonalidade carnalizante, ganha espaço de destaque. Maria, para Bandeira, é uma mulher real, que oscila entre a melancolia e a alegria e um dos pontos altos dessa temática da ‘Santa humana’ é a do poema em primeira pessoa “Canção de Maria”. Às vezes, Maria ganha a familiaridade de uma mãe de leite: “Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria/ Dizer que fazia sol lá fora”. Merece destaque nesse sentido o belíssimo “Alegria de Nossa Senhora”, um verdadeiro evangelho poético, em forma de oratório, que reduz ao essencial, com cortes líricos e narrativos precisos, a tensão da história humana de Cristo.

 

O traço fundamental, entretanto, dessa dialética bandeiriana entre o místico e o mundano, o respeito e a intimidade, está bem figurada em “Balada de Santa Maria Egipcíaca”, que entrega a um barqueiro a “santidade de sua nudez” para continuar a peregrinação à Terra Santa. Esse Bandeira de divindades católicas, entretanto, não é menos ‘libertino’ que o de poemas como “O súcubo” ou “Vulgívaga”. Os personagens da ‘libertinagem’, por sua vez, são tão místicos quanto Cristo e a Virgem. Não há, pois, termos que separem um Bandeira de outro. No poema “Cântico dos cânticos”, colocado, de modo preciso, entre os textos libertinos da coletânea, está o melhor dessa síntese de opostos: “ – Eis que me entras profundamente/ Como um deus em sua morada!”.

 

Dessa forma, a unicidade contraditória de Bandeira revela menos um jeito religioso ou profano de existir e revelar o mundo e mais um modo brasileiro de fazer isso. Bandeira é do céu e da terra, é santo e é pedestre. Esses seus Poemas religiosos e alguns libertinos revelam, antes, um poeta que soube nenhum outro ser modernista sem programa e ser moderno como quem respira, numa espontaneidade poetizada que dá voz de verdade profundamente brasileira ao que toma como tema: seja contrição ou carnaval.