Os altos preços sustentados do petróleo e o aquecimento do planeta desafiam a humanidade a um reajustamento de sua matriz energética, em busca de uma alternativa geral capaz de enfrentar esses graves problemas. O petróleo é o combustível de origem fóssil cujos derivados – a gasolina, o óleo diesel, o óleo combustível etc – quando consumidos, através da combustão, liberam grande quantidade dos gases provocadores do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento atual da Terra.
Ademais é uma fonte finita, não-renovável que, embora não esteja prestes a acabar, ficam cada vez mais caras suas exploração e produção. Há uma justa pressão hoje no mundo para se alterar a marcha batida que leva a graves riscos ambientais, terminando por provocar um movimento popular-científico-industrial por substituir de forma cada vez mais efetiva o uso do combustível fóssil, não-renovável, pelo que se tem chamado de fontes alternativas, renováveis.

O ponto de partida do problema e o tamanho do desafio podem ser compreendidos quando se compara a parcela das fontes renováveis usadas hoje no mundo com as não-renováveis. É amplo o predomínio das fontes não-renováveis. A desproporção é maior ainda quando se toma como ponto de referência os países da OCDE, os mais desenvolvidos entre todos. A posição do Brasil, nesse quadro, é das mais avançadas, embora, mesmo aí, o emprego das fontes não-renováveis seja preponderante.

Um detalhamento desses dados mais gerais leva a considerações mais específicas sobre o uso de tipos diferentes de fontes renováveis ao lado de outras não-renováveis. É o que pode ser observado na tabela 2 e na figura 2 abaixo. O prevalecimento do petróleo é evidente, com 35,3% de participação na matriz mundial, chegando a 40,8% quando se analisam os países da OCDE, e ficando em 38,4% no caso do Brasil.

Fica realçada a grande vantagem comparativa em que se encontra nosso país, frente ao conjunto do mundo e aos países da OCDE, quanto ao uso de fontes renováveis de energia. Isto se explica, em primeiro lugar, por ser o Brasil o maior país tropical do mundo – a terra do sol – que recebe diariamente quantidade vertiginosa de energia oriunda do grande astro, fonte energética básica, de onde todas as outras se originam. Em segundo lugar, pela disposição excepcional das bacias hidrográficas brasileiras, por onde escoam caudalosos rios de planalto, submetidos a regimes de chuva diferenciados, que fazem com que nossos grandes reservatórios possam estar, alternadamente, sendo abastecidos, garantindo que grandes volumes de água estejam se precipitando perenemente em quedas de alta potencialidade energética.

A participação da biomassa na matriz mundial ainda é pequena. Tem um real significado no Brasil, onde 29,7% de toda a energia consumida têm essa origem. Já em nível planetário esse número cai para 11,2% e fica reduzido a 4% entre os países da OCDE. Em energia hidráulica, também o Brasil se destaca com mais de sete vezes a participação relativa dessa fonte no âmbito mundial e no conjunto da OCDE.

A matriz brasileira se revela precária na presença do gás natural, de 9,3%, diante dos índices do mundo e dos países da OCDE: 20,9% e 22% respectivamente. E sua marca negativa mais destoante é a da parcela ínfima de uso da energia nuclear: 1,2%, distante dos 6,4% da matriz mundial e muito longe dos 10,7% dos países da OCDE.

O país necessita fazer, quanto à sua matriz energética, dois movimentos conjugados, decorrentes de suas necessidades e possibilidades: o primeiro, pelo crescimento em termos absolutos de sua capacidade produtiva, pois se o país se desenvolve, como planeja e precisa – a níveis próximos, iguais ou maiores que 5% do seu PIB – demandará bastante energia nova; o segundo, pelo desenvolvimento energético no sentido de: a) aumentar a participação da fonte nuclear em sua matriz; b) aumentar a participação do gás natural; c) sustentar a parcela da fonte hidráulica; c) aumentar a contribuição da biomassa; d) manter a auto-suficiência de sua produção de petróleo.

É dentro dessas linhas gerais, que movimentos significativos têm sido feitos no Brasil.
Em primeiro lugar a auto-suficiência na produção de petróleo, alcançada em 2006. Foi um marco na história do país e, particularmente, na do setor de energia. Era um objetivo perseguido pelo nosso país havia muito tempo. Simbolicamente, foi uma vitória conseguida quando a Petrobras completara 50 anos de existência. Note-se que, durante todo esse tempo, muitas foram as desconfianças e as dúvidas levantadas quanto à possibilidade de esse objetivo ser atingido. Aliás, toda a história do desenvolvimento da nossa atividade petroleira foi acompanhada por desconfianças, dúvidas, equívocos e movimentos suspeitos.

Durante muitos anos acreditou-se que o Brasil não tinha petróleo. E havia até análises e pesquisas supostamente científicas que fundamentavam tal assertiva. Variadas descobertas mostraram que isto não era verdade. As descobertas na Bacia de Campos, nos anos 1970, indicaram que o Brasil possuía petróleo pelo menos em volume médio, comparado aos grandes do mundo. E descobertas que podiam suceder em curto prazo na bacia de Santos trariam a possibilidade de termos reservas até de porte elevado.

No início dos anos 1990 surgiu a idéia de privatização da Petrobras. Segundo um dos argumentos, sob gestão privada, a empresa teria mais sucesso na busca de petróleo em solo brasileiro. Em 1995, o Congresso Nacional suspendeu o monopólio estatal do petróleo, em um contexto onde havia o esforço por se quebrar o monopólio como primeiro passo para a privatização da estatal. Na verdade, seria fatal para uma política energética de feição nacional se houvesse a quebra do monopólio e a privatização da Petrobras, ou seja, a implantação de um mercado aberto sem presença estatal, como queria o ideário neoliberal da época. O resultado dos confrontos havidos levou a um mercado aberto com presença forte de uma estatal.

Em 1997, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Petróleo (Lei 9.478), e nessa base, de um mercado aberto com presença estatal, o que se vê é que, nos últimos dez anos a Petrobrás cresceu vertiginosamente, e hoje já é considerada uma das grandes empresas do setor. A auto-suficiência, alcançada em 2006, serviu para dissipar as últimas dúvidas a respeito da capacidade de sobrevivência da Petrobrás.

As desconfianças e críticas agora voltam-se para o programa dos biocombustíveis brasileiros, o do biodiesel e o do álcool.

O programa do biodiesel é justo e audacioso, persegue objetivos energéticos, econômicos e sociais. Tem problemas, sim, para serem enfrentados e resolvidos. Sua meta é a partir de janeiro de 2008 de só vender óleo diesel no Brasil que tenha 2% de biodiesel, o chamado B2. Coerente com sua motivação de ser também um programa de inclusão social, tem também o objetivo de envolver na produção da matéria-prima agrícola – a cultura das oleaginosas – prioritariamente, a agricultura familiar.

O governo espera, por esse mecanismo, dar renda a 150 mil famílias. Ambas metas pareciam há pouco tempo ilusórias. Alguns as acham até hoje. Mas estão dando certo, naturalmente com muitos desafios ainda a serem resolvidos.

Atualmente, o Brasil possui capacidade instalada para produzir 1,640 bilhão de litros de biodiesel por ano. Antes mesmo da mistura de 2% se tornar obrigatória, já foram entregues cerca de 250 milhões de litros.

É verdade que a produção de algumas usinas está abaixo do previsto, ou ainda não começou, e que outras estão com suas entregas atrasadas. Há também distribuidoras que não têm se preparado efetivamente para a entrega do B2. Não são problemas que ameaçam o Programa Nacional de Biodiesel. Órgãos do governo acompanham essas questões e trabalham para que o programa dê certo. A ANP planeja realizar novos leilões de biodiesel e convoca os distribuidores cadastrados a um entendimento sobre a questão. A Agência tem procurado mecanismos cada vez mais eficientes para controlar e fiscalizar a qualidade do biodiesel produzido no país para evitar que combustível fora da especificação chegue ao mercado, prejudicando os consumidores.

A Agência também tem mantido contato permanente com os produtores de biodiesel para saber como anda a produção e os problemas que, eventualmente, têm retardado o cumprimento do cronograma de entrega do biodiesel estabelecido nos cinco leilões já realizados pela Agência. Por enquanto, ainda não há sinais de que a meta dos 840 milhões de litros de biodiesel/ano não venha a ser cumprida.

Dentre as críticas mais insistentes feitas ao programa do biodiesel e ao programa do álcool está a do desmatamento que adviria dos dois projetos. No Brasil e no exterior para muitos plantar mamona, pinhão manso e cana-de-açúcar para produzir energia, será em prejuízo da floresta amazônica, de áreas destinadas ao cultivo de gêneros alimentícios e de outras áreas preservadas do país.

O número não é novo, mas é sempre bom repetir que o Brasil dispõe de aproximadamente 100 milhões de hectares de terras, que podem ser usados para o cultivo de cana sem que seja necessário o uso da nossa grande floresta. Esses milhões de hectares resultam de áreas desmatadas para servirem de pasto e que agora estão ociosas ou produzindo muito pouco. Tem sido grande o esforço do governo brasileiro para deixar claro que não vai provocar redução na produção de alimentos, para levar avante seu programa de biocombustíveis. Isto tem sido feito pelo próprio presidente Lula em suas viagens internacionais ou pelos estados brasileiros.

Tudo isto nos dá base para uma tranqüilidade frente a essas questões, mas não significa que o governo não ache necessário estabelecer correta política de zoneamento, o que já está sendo feito através do Ministério da Agricultura. O objetivo é mostrar a brasileiros e estrangeiros que não há e nem haverá desmatamento na Amazônia por causa da cana-de-açúcar, nem sacrifício de áreas de cultivo de gêneros alimentícios.

Embora seja verdade que parte das críticas origina-se de gente realmente interessada e preocupada com a preservação das florestas, não há como não atribuir uma outra parte a pessoas, entidades e ou países interessados no fracasso do biodiesel e do etanol brasileiro. Não há nenhuma novidade nisso.

A descoberta e o desenvolvimento de novas fontes de energia se tornaram objetivos estratégicos para todos, no mundo. Recentemente, a Rússia colocou suas bandeiras no Ártico, região com enorme potencial para gás e petróleo, e vários países em desenvolvimento tentam atrair investimentos para a o setor de exploração e produção de petróleo e gás natural. Nos países desenvolvidos, bilhões de dólares têm sido investidos no estudo de novas fontes de energia. Na Europa é grande a preocupação em relação a uma futura dependência em biocombustíveis. O Brasil tem enfrentado pressões enormes para se contentar em se tornar apenas exportador de matéria-prima, papel esse que o país não pretende desempenhar.

Parte difícil do programa de biodiesel está nas negociações com os países desenvolvidos. É preciso evitar que eles coloquem barreiras ao nosso biodiesel impondo especificações muito complicadas, que impeçam o nosso produto de ser vendido nesses mercados.

Segundo levantamento da Agência Internacional de Energia, a matéria-prima e a tecnologia disponíveis hoje no mundo garantem que cerca de 20% do combustível usado em transporte poderão ser substituídos por biocombustíveis até 2030. É um mercado estimado em bilhões de dólares por ano.

Recentemente, a União Européia anunciou que pretende substituir 10% do combustível utilizado em transporte por biocombustível até 2020. A China quer substituir 15%. Nos Estados Unidos, o presidente Bush anunciou que serão produzidos 35 bilhões de galões de biocombustível até 2012. Os números acima foram citados no editorial publicado pelo New York Times, em 19 de setembro.

No mesmo texto, o jornal questiona a tarifa de US$ 0,54 sobre cada galão de etanol importado do Brasil e o subsídio, considerado generoso pelo jornal, de US$ 0,51 por galão, dado aos produtores de álcool nos Estados Unidos, que é feito à base de milho.

No Brasil, a mistura de 2% de biodiesel no diesel significará a economia anual de US$ 160 milhões por ano. Quando a mistura chegar a 5%, em 2013, o total subirá para US$ 360 milhões por ano. Isso sem falar na redução de emissões dos gases do efeito estufa, pois o biocombustível tem a vantagem do ciclo de carbono fechado. Sua utilização não aumentará a poluição, ao contrário do que acontece com os combustíveis fósseis.

O Brasil é sério candidato a protagonista na produção e exportação desses biocombustíveis. É um dos poucos países do mundo que reúne boas condições para se tornar um grande produtor e exportador de biodiesel: terra, sol, tecnologia, mão-de-obra. Talvez por isso esteja sendo tão marcado pelos países desenvolvidos – as duras negociações com os Estados Unidos sobre o etanol e com a Europa sobre biodiesel e etanol, demonstram isso – e por alguns países, grandes produtores de combustíveis fósseis, que se sentem ameaçados pela crescente participação dos biocombustíveis na matriz energética mundial.

Recentemente, Thomas Friedman, colunista do New York Times, especialista em Oriente Médio, esteve no Brasil para estudar os nossos biocombustíveis. Voltou impressionado, dizendo que o Brasil tem condições de se tornar uma Arábia Saudita verde nas próximas décadas. É um exagero, pois nossas exportações de álcool não chegarão aos cerca de US$ 150 bilhões arrecadados pela Arábia Saudita por ano com a exportação de petróleo. Mas o espaço para crescer existe e a comparação é boa.

Em 2006, a produção de álcool combustível chegou a 17 bilhões de litros. Atualmente existem cerca de 350 unidades produtoras espalhadas pelo país e outras 80 em construção, que significarão mais 150 milhões de toneladas/ano nos próximos cinco anos. Há 30 anos, em 1977, a mistura do álcool na gasolina era de 4,5%, hoje chega a 25%, sem trazer maiores problemas para os motores dos veículos. Hoje, os carros flex já são mais de 1,7 milhões. Se o ritmo de crescimento for mantido, a frota flex deverá ultrapassar o número de veículos a gasolina em 2013.

Os investimentos na área energética crescem. O BNDES avalia ou financia 62 projetos da indústria sucro-alcooleira, com investimentos previstos de R$ 12 bilhões. Em biodiesel, os investimentos somam cerca de R$ 700 milhões em 11 projetos.

As exportações de álcool passaram de US$ 35 milhões, em 1998, para US$ 767 milhões em 2005, e até julho deste ano acumulavam US$ 500 milhões. Os Estados Unidos respondem por mais de 30% do total, a despeito da tarifa que impõem ao nosso produto e ao subsídio que dão para o deles.
A inserção dos biocombustíveis na matriz energética brasileira não pode mais ser tratada como projeto de um governo. Governos duram quatro ou oito anos, o sucesso dos programas de biodiesel e do álcool não será medido num prazo tão curto.

Os programas brasileiros do álcool e do biodiesel são expressões brasileiras das mudanças na matriz energética buscadas em todos os lugares do mundo. Estão ainda em curso, e a mais nascente é a do biodiesel. Particularmente esse programa tem problemas, riscos e desafios. Teve erros, sem dúvida. Mas está indo bem e descortina um horizonte de grandes oportunidades e realizações para o Brasil. Neste momento, o melhor a fazer é trabalhar para que tudo dê certo e o Brasil possa colher os frutos desses dois programas nos próximos anos.

Haroldo Lima é o Diretor Geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)

EDIÇÃO 92, OUT/NOV, 2007, PÁGINAS 90, 91, 92, 93