A superação das dificuldades que se in¬terpõem entre as cidades e seus ha¬bitantes conta com o mais expressivo arcabouço legal do planeta – à disposição do nosso povo – , estruturado numa longa trajetória permeada de contradições, desde a Lei de Terra, de 1850, que surge como a primeira legislação a institucionalizar o poder básico do Estado sobre a terra, ao Estatuto da Cidade e ao reconhecimento do direito à moradia no limiar do século XX, com o Capítulo de Política Urbana na Constituição de 1988

O conhecimento das cidades brasileiras pressu¬põe uma percepção da nossa formação econômica e social que atribui substância às nossas propostas voltadas para a oportunidade vigorosa do desenvol¬vimento.

No período em que o Brasil ainda é ocupado uni¬camente pelos povos indígenas ao País de hoje, in¬tensamente urbanizado, as relações com a terra e as relações sociais envolvem fases distintas. O enten¬dimento desse período e das condições que impul¬sionam a luta por cidades mais justas e humanas, em pleno desenvolvimento, é relevante para a efeti¬va afirmação da finalidade social da terra no espaço urbano.

Desde a adoção do regime de sesmarias, a dispu¬ta pela sua apropriação é acentuada, sobretudo, pelo viés do seu uso produtivo. Na atualidade e no espa¬ço urbano, sua valorização especulativa enfrenta o contraponto ao pressuposto de que a moradia é um direito historicamente conquistado, com seu lugar na vigorosa dinâmica das nossas cidades.

A Lei de Terra de 1850 é emblemática quanto à ocupação territorial no Brasil. Nela, a terra perde o significado de privilégio e ganha a condição de mer¬cadoria típica do capitalismo, capaz de gerar lucros e de influir na formação urbana. Entretanto, esta Lei permaneceu internamente como um acerto entre as forças políticas que sustentavam o Império, reafir¬mando e estimulando a tradição latifundiária bra¬sileira.

A estruturação do espaço urbano no Brasil foi fortemente influenciada pelas contradições oriundas desse confronto entre o interesse privado e o coletivo em torno da questão da terra – que fundamenta o moderno paradoxo entre a cidade “legal” e a cidade “ilegal”. Apesar da permanente exigência da serven¬tia produtiva, muitas lutas foram e serão necessárias até a prática e definitiva afirmação da sua finalidade social.

A explosão urbana

A urbanização brasileira, constituída pelo traba¬lho livre, se deu no século XX, mas sua moderniza¬ção carrega todo o peso da formação histórica desde a ocupação, vinculada à hegemonia da economia agroexportadora e à concentração da propriedade territorial, recriando o atraso colonial sob novas formas.

Surgiu daí um fabuloso cenário de produção de riquezas e de consumo, fermentado na reunião de milhões de brasileiros em verdadeiros complexos de alvenaria, concreto e asfalto, destacado pelos mais extraordinários pensadores estratégicos do Brasil do século XX, entre os quais o economista Celso Furta¬do, o sociólogo Florestan Fernandes, Caio Prado e os geógrafos Milton Santos e Aziz Ab’Saber.

O Brasil sai do século XIX com aproximadamen¬te 10% da população nas cidades (Santos, M. 1993). Apresentava cidades de porte significativo desde o período colonial. Mas, somente na virada do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a urba¬nização avança – influenciada pela emergência do trabalhador livre, pela Proclamação da República e por uma indústria ainda incipiente, articulada à cafeicultura e às necessidades básicas do mercado interno –, intensificando-se na segunda metade do século XX.

Em 1940 a população urbana representava ape¬nas 26,3% do total. Em 2000, salta para 81,2%. Esse crescimento apresenta uma fantástica dimensão em números absolutos: em 1940 a população que residia nas cidades se estimava em 18,8 milhões de habi¬tantes; em 2000, saltou para aproximadamente 138 milhões.

Em 60 anos, portanto, os assentamentos urba¬nos se agigantaram. Apenas na última década do século XX, as cidades brasileiras aumentaram em 22.718.968 pessoas – mais da metade da população do Canadá ou um terço da população da França.

Tão grandioso movimento de construção urbana passa a requerer um imenso arsenal de equipamen¬tos coletivos de consumo ao assentamento residen¬cial, voltados para a satisfação de suas necessidades de trabalho (abastecimento, transporte, saúde, ener¬gia, água etc.), exigindo uma monumental ação do Estado.

Estado e concentração

Em alguns momentos do seu processo de urba¬nização, o Brasil urbano experimentou picos de in¬vestimento que influíram no desenho do seu atual perfil, balizados pelas mudanças econômicas funda¬mentais.

As reformas urbanas ocorridas em diversas cida¬des brasileiras entre o final do século XIX e início do século XX lançaram as bases de um urbanismo mo¬derno que inaugura padrões de periferia. Um merca¬do imobiliário de corte capitalista – e suas obras de saneamento e embelezamento – reservou à popula¬ção excluída os morros e franjas, notadamente nas capitais. Entre as cidades que, nesse período, adotaram este perfil, estão Manaus, Curitiba, Recife, São Paulo e, em especial, o Rio de Janeiro.

Um outro aspecto, antagônico à construção de cidades mais justas, contribuiu para acirrar essa se¬gregação: a elevada concentração da renda, que se somou à concentração fundiária.
O Brasil apresentou um crescimento econômico acelerado de 1940 a 1980 (média de 7% ao ano), um dos maiores do mundo no período, mas aprofundou a desigualdade e a exclusão social no declínio das dé¬cadas de 1980 e 1990, quando acontece uma queda substancial do crescimento (média de 1,3% ao ano nos anos 80 e 2,1% ao ano entre 1990 e 1998), com sérias repercussões na estrutura urbana, tornando ainda mais segregado o espaço urbano no País.

Nesse espaço contraditório, as possibilidades abertas pela conurbação brasileira se expõem em 1964, na vigência do regime militar, a partir da cria¬ção do Banco Nacional da Habitação (BNH) – inte¬grado ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH) –, com a adoção de uma política que pretende alterar o padrão de produção das cidades.

O volume de recursos para o mercado habitacional muda o perfil das grandes cidades, com a verticalização visível nos edifícios comerciais e de apartamentos. Em obediência ao perfil histórico da concentração, o financiamento imobiliário tangen¬ciou a democratização do acesso à terra e a função social da propriedade, com absoluta prioridade às classes médias e altas.

As políticas habitacionais da ditadura, pela via dos conjuntos habitacionais populares, não trataram de enfrentar a questão fundiária urbana, a instabi¬lidade e os limites do poder aquisitivo das classes e camadas populares diante das prestações da “casa própria” (Antero, 1984; Silva, 1998).

Os governos municipais e estaduais igualmente promoveram os vazios urbanos valorizados pelos in¬vestimentos públicos, ignorando as áreas periféricas no planejamento e aumen¬tando a favelização. Este fe¬nômeno alcança posterior¬mente as bacias fluviais das regiões metropolitanas, pro¬duzindo e recriando “áreas de risco”.

Enquanto o crescimen¬to econômico se manteve, o modelo contribuiu para in¬crementar uma nova classe média urbana, mas o regi¬me militar, além de excluir enormes contingentes do acesso a direitos sociais e civis básicos e do acesso à moradia e à cidade, acentuou a distância entre a maioria excluída e o mercado imobiliário legal.

Espaço urbano e luta de classes

Nesse curso, cresceu a concentração da renda e da riqueza. A recessão posterior às décadas de 1980 e 1990, quando as taxas de crescimento demográfico superaram as taxas do crescimento do PIB, acarre¬tou forte impacto social e ambiental, ampliando a desigualdade na construção urbana.
Nessas décadas “perdidas”, a concentração da pobreza foi essencialmente urbana. Pela primeira vez em sua história, o Brasil produziu outra forma de concentração, derivada da “mãe” das concentrações – a fundiária: a das multidões nas regiões de morros, alagados, várzeas e planícies fluviais, numa bizar¬ra “socialização” da pobreza. Desponta a “tragédia urbana brasileira” do febril noticiário cotidiano: en¬chentes, desmoronamentos, degradação ambiental, congestionamento habitacional, reincidência de epi¬demias, violência etc.

O crescimento urbano é, desse modo, produzi¬do ininterruptamente pela exclusão social desde a emergência do trabalhador livre, quando as cidades se agigantam e se deflagra em maior escala o proble¬ma da habitação. Mediado pela apropriação privada da cidade, este crescimento não contou com uma expansão industrial capaz de absorver a população imigrante, confinada ao mercado informal e às mo¬radias subnormais. Somando-se a estes, o operariado do setor industrial foi submetido a uma remunera¬ção indiferente às suas necessidades de reprodução, reforçando a ”cidade ilegal”.

Dos quase 170 milhões de habitantes brasileiros em 2000, cerca de 30% moravam em nove metró¬poles, das quais duas se projetam entre as maiores cidades do mundo: Rio de Janeiro (então com 10,5 milhões de habitantes) e São Paulo (com 16,7 mi¬lhões). Do total, 13 cidades reuniam mais de um milhão de habitantes. As periferias cresceram mais do que os núcleos centrais, expandin¬do as regiões pobres.

Segundo o IPEA (1999), o crescimento médio dos municípios periféricos (14,7%) nas regiões metro¬politanas superou a expan¬são dos municípios centrais (3,1%), entre 1991 e 1996. Entre as periferias que mais cresceram nesse período estão as de Belém (157,9%), Curitiba (28,2%), Belo Horizonte (20,9%), Salvador (18,1%) e São Paulo (16,3%).

Essa construção aleatória ocasionou, portanto, o crescimento da população favelada, posicionando algumas metrópoles brasileiras com um acentuado perfil de exclusão social: Rio de Janeiro, 20%; São Paulo, 22%; Belo Horizonte, 20%; Goiânia 13,3%; Salvador, 30%; Recife, 46%; Fortaleza, 31%. Uma comparação entre os censos de 1980 e 1991 exibe um crescimento superior a 7% ao ano. A essa “ile¬galidade” na ocupação do solo somam-se os lotea¬mentos irregulares, que representam a maior parte da população dos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro.

As ocupações correspondem, assim, ao processo de produção urbana dos deserdados em contraponto à concentração da terra e em defesa da democratiza¬ção fundiária urbana.
Chegamos, nesse ponto, à contradição funda¬mental na produção das cidades, opondo privatiza¬ção e socialização do espaço urbano, concentração fundiária “legal” e ocupação “ilegal” do solo, esta criminalizada como “invasão” predatória ao meio ambiente, aquela reverenciada como legítima e or¬deira. Uma, o espaço da minoria; a outra, a cidade marginal, espaço da maioria.

Nessa contradição, o “direito” à invasão é com¬pulsório e não prevê o direito à cidade; a natureza do mercado imobiliário privado segrega mais da meta¬de das populações urbanas.

Na prática institucional, esse direito foi submeti¬do a uma equivalência entre financiamento e imóvel legal, que excluiu grande parte da população do aces¬so a empréstimos destinados à aquisição ou constru¬ção de moradia. Nas restrições ao financiamento de imóveis populares no País, prevaleceu a ilegalidade generalizada dos imóveis, que não atendiam às exi¬gências da burocracia bancária.

A “cidade legal” concentrou, então, a maior parte dos investimentos públicos, excetuando-se apenas a esfera da relação clientelista, atuante nos moldes da moeda de troca tradicional coroada pela cesta básica e outros instrumentos de subordinação política das massas populares nos processos eleitorais.

Entretanto, são numerosas as lutas vitoriosas de conquista da terra urbana nesse confronto histórico, entre as quais citamos as experiências dos bairros do Pirambu e do Lagamar em Fortaleza. Tais conquistas demonstram que o povo em movimento é capaz de transformar a “cidade ilegal” em cidade real e que o caminho para a afirmação do direito à cidade passa pela enérgica ação das forças sociais.

Um golpe na urbanização patrimonial

Entre os aspectos que realçam o alcance público da reforma urbana se destaca o saneamento ambien¬tal, incorporado hoje pelo governo federal como po¬lítica pública prioritária, contrariando a orientação neoliberal dos anos 1990. O recuo nos investimentos travou a universalização do serviço, inclusive quan¬to à destinação do esgotamento sanitário. Em 1998, 55% dos domicílios no País não tinham acesso à água potável; no espaço urbano, 48,9% dos domicílios não contavam com rede de esgotos.

No processo de urbanização brasileiro, o Estado, que somente beneficiava as áreas de interesse para o mercado imobiliário, passa a valorizar a cidade construída pelos excluídos do mercado residencial privado.

Segundo o governo da gestão neoliberal, “apenas 24% do esgoto sanitário produzido pelos domicílios atendidos pelas 27 grandes companhias estadu¬ais prestadoras de serviço de saneamento recebem tratamento”. Assim, a destinação dos efluentes, na forma de águas servidas ou esgoto, e de parte sig¬nificativa do lixo sólido, foi arremetida à destruição ambiental das redes hídricas, dos mananciais, das praias, dos mangues e de outras áreas sem interesse para o mercado imobiliário.

Exemplarmente, o Plano de Saneamento Am¬biental da Região Metropolitana de Fortaleza (PSARMF), voltado para a drenagem das suas ba¬cias fluviais mediante a construção de barragens, a realização de dragagens, urbanização das margens dos rios com vias paralelas e o reassentamento das milhares de famílias residentes nas “áreas de risco” em novos conjuntos habitacionais, conta hoje com investimentos federais da ordem de R$ 400 milhões, num empreendimento que envolve União, estado e municípios.

Reforma urbana em ação

A notável dimensão da dinâmica de urbaniza¬ção processada durante o século XX surge, portan¬to, como uma formidável construção de cidades, carente de legislação adequada, planejamento público e de recursos técnicos e financeiros signi¬ficativos. Nesse elevado grau de conurbação, um projeto de reforma urbana articulado a um novo projeto nacional de desenvolvimento se realiza em dois aspectos principais:

(1) uma avançada legislação, socialmente cons¬truída e mundialmente respeitada, que torna resol¬vido o problema legal; e

(2) um quadro político favorável à expansão dos investimentos, mediante o fortalecimento do Minis¬tério das Cidades (MC), dotado de recursos que su¬peram os R$ 100 bilhões.

Avanços sociais e arcabouço legislativo

Está hoje em vigor um arcabouço legislativo que inclui, entre outros dispositivos, a lei federal do Es¬tatuto da Cidade (EC) – que faculta, aos gestores pú¬blicos, amplos instrumentos para o reordenamento das cidades, desde a implementação de seus planos diretores.

Este arcabouço prevê, entre outros dispositivos, a tributação do IPTU de modo progressivo no tempo; a lei de regularização fundiária, que contribui para a gradual consonância entre “cidade ilegal” e seus ha¬bitantes reais; as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); pelo Fundo de Habitação de Interesse Social (FHIS); e inúmeros outros instrumentos – conquis¬tas do nosso povo em sua luta histórica pela Reforma Urbana.

Em 1979, ainda em plena ditadura, o Congresso Nacional aprovou a lei 6766, que determinou dire¬trizes para o parcelamento do solo e criminalizou o “promotor de loteamentos ilegais”. Em 1983, o então governo militar enviou ao Congresso Nacio¬nal o Projeto de lei do Desenvolvimento Urbano (PL 775/83). Daí até a aprovação do EC, muitas lutas aconteceram.

A maior conquista social das lutas nos anos 1980, foi a inserção dos artigos 182 e 183 na Constituição Federal (CF) de 1988 – o capítulo da Política Urbana. Alguns instrumentos (ou mesmo conceitos) previs¬tos na Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana (subscrita por mais de 130.000 eleitores) lograram reconhecimento na CF.

Destaca-se, por sua sintonia com o direito à cida¬de, o direito à moradia como efetivo preceito cons¬titucional, posto mediante emenda de iniciativa do senador Mauro Miranda aprovada sem objeções.

Após a promulgação da CF de 88, o senador Pompeu de Souza se voltou para a regulamentação dos artigos 182 e 183, com o PL 5.788/90 – de lenta tramitação. Apesar do espetacular crescimento dos problemas urbanos, mais de uma década de lutas transcorreu até que, na presidência da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) produ¬zimos o substitutivo que assegurou a aprovação do Estatuto da Cidade.

Outra relevante vitória consistiu na aprovação do IPTU progressivo e o reforço da natureza social da propriedade, dispondo que o solo urbano não-edificado, subutilizado ou não utilizado, incluído no Plano Diretor, poderá, de acordo com a lei mu¬nicipal específica, obrigar-se compulsoriamente ao parcelamento, edificação ou utilização. De outro modo, o imóvel estará sujeito ao IPTU progressivo e, suces¬sivamente, esgotados esses instrumentos, submetido à desapropriação com títulos da dívida pública. O EC fixa prazos e forma de aplicação de cada um dos instrumen¬tos. A alíquota (máximo de 15%) poderá ser majorada (até duas vezes o valor do ano precedente) durante cinco anos.

Outro vitorioso dispositivo para a gestão demo¬crática é o das ZEIS, que incrementa a função social da propriedade sem uma necessária subordinação à aprovação de um Plano Diretor, agilizando ações governamentais e legislativas. O zoneamento pode, com tributação reduzida, contribuir para reorientar o desenvolvimento urbano e para a adoção de auda¬ciosos planos de instalação de áreas de vocação eco¬nômica; expandir o mercado habitacional e baratear o custo da moradia; definir áreas de usos mistos ou de moradias de diferentes faixas de rendas; ou, ain¬da, para determinar a finalidade do uso da terra em áreas especificas.

Investindo na mobilização

Esse arcabouço contribui, nas circunstâncias de um governo central democrático e popular, para via¬bilizar um projeto voltado para a edificação de uma nova cidade, ainda nos limites do capitalismo exis¬tente no País. Assim, além das prerrogativas legais, um inédito incremento de investimentos favorece a formulação em novo patamar da reforma urbana – de interesse das organizações protagonistas de nu¬merosas lutas e vitórias nas últimas décadas, mas também de todos que opõem socialismo à barbárie.

Uma orientação central unitária bem sucedida para estados e municípios é secundada por van¬tajosas fontes de financiamento (FGTS, poupança etc.) – de retorno assegurado na dinamização da economia; pela exigência de novos equipamentos e tecnologias; pela geração de emprego e renda; pelo inevitável desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção; pelo movimento atribuído à energia social estrangulada na gestão neoliberal.

Hoje, ao inverter a equação, buscamos converter os imensos problemas urbanos criados em soluções neles próprios contidas, na expectativa de uma nova ordem estratégica.

O enfrentamento das dificuldades libera formi¬dáveis possibilidades ve¬rificadas, por exemplo, no aproveitamento dos resí¬duos sólidos enquanto re¬ciclagem de materiais ou modos de aproveitamento energético; na edificação de equipamentos coletivos de consumo em torno da mo¬radia (praças, calçamentos, pavimentação, abasteci¬mento d’água, esgotos, redes elétricas e de telefonia etc.); ou na expansão da mobilidade urbana, com a reestruturação das vias, abertura de novas linhas de transporte de massas (metrôs, ônibus, veículos ligei¬ros sobre rodas etc.) em alternativa à confusão e pa¬ralisia do problemático caos urbano.

Nesse fértil ambiente, é impossível ignorar a ex¬posição dos efeitos no campo do esporte, da arte e da cultura, celeiros de artistas e esportistas de to¬das as modalidades, ou na revalorização de cursos e profissões obscurecidas pela redução ou ausência de mercado.

Apesar de simbolizar algo como um adereço diante de tão rico espectro que acende o mercado interno, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) representa mais que uma relevante mudança na agenda econômica, antes dogmaticamente focada no controle da inflação e do déficit fiscal, mediante o aumento dos investimentos públicos em infra-estru¬tura, geração de empregos e melhoria da qualidade de vida da população.

Nessa “correção de rota” do modelo vigente des¬de o Plano Real, em 1994, o governo Lula, eleito em 2002 e confirmado em 2006, percebe gradualmente, entre outros aspectos da política macroeconômica, a importância da redução das taxas de juros enquanto vetor favorável a um novo ciclo de crescimento eco¬nômico para o País, além de medidas complementa¬res, como a desoneração da cadeia produtiva voltada para a construção civil. Com o PAC, o governo federal propõe investimentos a um patamar de R$ 503,9 bilhões nos próximos quatro anos, numa projeção que inclui recursos da iniciativa privada. Os investimentos, aliados às medidas fiscais de longo prazo, buscam um crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em torno de 4,5% em 2007 e 5% a partir de 2008. Tais medidas têm impacto sobre as cidades e sobre a política de desenvolvimento urbano e, em linhas gerais, seu exame é positivo:

Estão previstos 106,3 bilhões em investimentos para a Habitação e R$ 40 bilhões em Saneamento até 2010, contabilizando recursos geridos pela União, investimentos do setor privado e contrapartidas de estados, municípios e mutuários. O PAC estabelece a aplicação de R$ 3,1 bilhões nos metrôs de Belo Horizonte, Fortaleza, Recife e Salvador.

Nos investimentos para habitação, houve um aumento real dos recursos do OGU, atingindo os R$ 2,6 bilhões por ano, totalizando 10,1 bilhões em quatro anos. Ressalte-se que esse volume previsto, mesmo significativo, ainda não atende em sua totalidade as famílias de baixa renda (até três salários mínimos), onde se concentram 83% do déficit habitacional, requerendo-se a ampliação dos subsídios numa faixa em que, apesar do baixo poder aquisitivo, é essencial no impulso da economia.
Os investimentos em saneamento ambiental representam avanço quanto à retomada dos investimentos iniciada em 2003, melhorando a sustentabilidade das ações.

FSM, FNRU e o direito à cidade

O documento produzido a partir do Fórum Social Mundial Policêntrico de 2006 aponta um complexo panorama a ser revertido no planeta, onde “metade da população vive nas cidades”. Segundo as previsões, em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 65%, num ambiente em que as cidades são, potencialmente, territórios com grande riqueza e diversidade econômica, ambiental, política e cultural.

No sentido oposto a essa riqueza, os modelos de desenvolvimento na maioria dos países – ainda sob a hegemonia do padrão neoliberal do mundo unipolar – levam ao empobrecimento e a níveis de concentração de renda e poder que geram miséria e exclusão, deteriorando o meio ambiente, acelerando processos migratórios e de urbanização sem planejamento, segregação social e espacial e à privatização dos bens comuns e do espaço público.

Tal contexto favorece o surgimento de lutas urbanas, exigindo que as organizações articuladas desde o
Fórum Social Mundial de 2001 compartilhem o desafio de construir “um modelo sustentável de sociedade e de vida urbana fundamentado nos princípios da solidariedade, liberdade, igualdade, dignidade e justiça social, no respeito às diferenças culturais urbanas e ao equilíbrio entre o urbano e o rural”.

Desde então, pugnam nas lutas sociais por cidades mais justas, democráticas, humanas e sustentáveis, construindo uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade a ser assumida pela sociedade civil, pelos governos locais e nacionais, pelos parlamentares e organismos internacionais.

Desafios na perspectiva do FNRU

Nas lutas populares, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) se destacou pelo empenho na aprovação do EC e do Fundo Nacional de Moradia Popular. O FNRU entende que os investimentos do PAC devem ocorrer para o conjunto das políticas setoriais articuladas, buscando a universalização das obras e serviços. Enumera, entre outros, os seguintes desafios:

Criação de instâncias participativas e deliberativas de gestão democrática nos conselhos das cidades, com efetiva participação popular em todos os níveis federativos;democratização da estrutura fundiária, efetivando a função social da propriedade urbana, priorizando o combate à segregação e à estrutura patrimonialista do mercado imobiliário;implementação imediata do EC, com a efetivação dos Planos Diretores recém-revistos e/ou elaborados, criando condições institucionais em todos os níveis federativos e de governo;efetivação integrada da política urbana nas RMs, priorizando as famílias de baixa renda nas suas periferias;ampliação dos recursos do OGU à habitação de interesse social e sua alocação no FNHIS; eativação de uma política habitacional de apoio às experiências autogestionárias dos movimentos sociais na produção da moradia de interesse social.

Enfim, o FNRU prevê os desafios da construção de uma nova agenda e de uma nova política de desenvolvimento urbano subordinada ao fortalecimento do Conselho Nacional das Cidades e à participação efetiva da sociedade. Conclui que somente o envolvimento de toda a sociedade garantirá o Direito à Cidade para o conjunto dos cidadãos. A meta é ampliar em 7,3 milhões os domicílios com rede de tratamento de esgoto; em sete milhões as ligações de abastecimento de água; e em 8,9 milhões as residências com coleta e destinação adequada do lixo. Além disso, o PAC prevê prioridade às ações de saneamento integra¬do em favelas e palafitas, ações que devem ser arti¬culadas aos programas de habitação popular.

Na esfera dos Transpor¬tes e Mobilidade, o PAC centra seus investimentos nos metrôs, com recursos previstos de R$ 3,1 bilhões até 2010, dos quais R$ 721 milhões para 2007, con¬cluindo-se os metrôs de Belo Horizonte, Fortaleza, Recife e Salvador, visando à melhoria do sistema de transporte público e à am¬pliação em 609 milhões da quantidade de passagei¬ros/ano atendidos. Os investimentos estão concen¬trados no Nordeste (exceção para o metrô de Belo Horizonte) e áreas metropolitanas. Essas metas devem estar articuladas às intervenções no campo da habitação popular e do saneamento ambiental.As intervenções urbanas do PAC indicam que o MC terá um papel fundamental na gestão das ações previstas. O êxito dessas ações, portanto, requer a valorização da sua capacidade de articular o con¬junto das intervenções setoriais quanto à política de desenvolvimento urbano; ao envolvimento da sociedade na gestão do PAC via Conselho das Cida¬des e de outros conselhos nacionais.

À margem da “gastança” veiculada pela opo¬sição conservadora, há, enfim, muito a fazer nas cidades brasileiras, desde as Metrópoles até os menores municípios – no futuro, pólos de de¬senvolvimento – nesta so¬cialização de investimen¬tos outrora privatizados, mediante uma intensa mobilização de todas as entidades e organizações estruturadas no País, dire¬tamente envolvidas ou não com o processo de reforma urbana, além, claro, da in¬telectualidade preocupada com os rumos do Brasil.
As extraordinárias reali¬zações resgatam lembranças das cidades latino-america¬nas (Incas, Maias ou Azte¬cas) que pereceram diante da força militar obscuran¬tista colonial, em perdas irreparáveis de avançados pólos civilizatórios e do progresso social. No êxito da reforma urbana brasileira, reside a homenagem à cidade dos homens e mulheres que lutaram e lu¬tam por um belo futuro para a América e para o nosso País.,

Inácio Arruda é senador da República, ex-presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados, autor do substitutivo ao Estatuto da Cidade.

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EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79