Vamos partir de uma afirmação que já conta com um vasto consenso. Estamos mergulhados numa crise sistêmica do capitalismo, a mais grave que houve até hoje. O seu epicentro está localizado no coração dos Estados Unidos e se espraia, em ondas sucessivas, por todo o planeta, porém golpeia com particular intensidade seus aliados mais potentes, o Japão e a União Europeia da zona do euro.

Ou seja, a trilateral – substancialmente o diretório que rege a política imperialista, mesmo com suas inerentes e constantes contradições internas. Como é lógico, as análises divergem sobre as causas que a geraram e as trilhas que devem ser seguidas para a sua superação. Tentando seguir parâmetros marxistas, podemos dizer que a razão primeira da crise está na queda da taxa média de lucros dos capitalistas. Pode parecer uma afirmação aberrante diante da imensa concentração de riquezas nas mãos de poucos. Mas é bom ver as tendências estruturais. Os grandes grupos empresariais competem entre si, e introduzem sempre novas tecnologias. A produtividade aumenta, porém diminui o número de trabalhadores necessários para a produção e uma menor quantidade de pessoas tem possibilidade de comprar.

Existe, então, uma corrida para rebaixar os preços para se poder concorrer num espaço populacional onde o poder de valor de compra é crescentemente baixo.

Se a taxa de lucro é decrescente, e esta tendência acontece desde a década de 1970, o capitalista busca aumentá-la, rebaixando os salários e tentando desmontar o “Estado social” onde ele existe. O que acaba por deprimir ainda mais o mercado. Uma das saídas encontradas pelo capitalismo hegemônico foi deslocar suas principais empresas para as zonas do mundo onde a mão-de-obra poderia ter um custo inferior. O foco maior de atração foi a Ásia. Mas, se estendeu também para América Latina e África. Processo que se repetiria no Leste europeu, depois da queda do socialismo.

Uma outra saída para buscar lucros foi a “financeirização” ilimitada da economia. Neste terreno o capitalismo enlouqueceu. O termo parece muito pouco científico, mas vamos recordar mais uma vez Marx quando, no Quartely Reviewer, comentando um artigo de T. J. Dunning, escrevia:
“O capital detesta a falta de lucro, ou um lucro muito limitado, tanto quanto a natureza tem horror ao vácuo. Se o lucro for conveniente, o capital se torna corajoso; com 10% assegurados, vai a qualquer lugar; com 20% se acalora; com 50% torna-se temerário; com o 100%, esmaga sob os seus pés todas as leis humanas; com 300% não há crime que não ouse cometer, mesmo riscando o patíbulo”.

O que dizer então quando no jogo das pirâmides, dos derivados, das bolhas imobiliárias, o lucro superava amplamente 1.000%?

Quando todo arcabouço começou a vacilar – e estamos apenas no início – os centros do capitalismo caíram em desespero. Talvez o caso mais típico seja do Reino Unido, berço do capitalismo industrial, que transformou quase todas as suas riquezas em ativos na famosa City de Londres. Onde encontra-se com suas finanças envenenadas com títulos podres, sua moeda a libra esterlina em queda livre, um mercado interno se restringindo e praticamente sem nada para exportar, pois seu sistema industrial foi desmontado. Trágico final do ideário lançado por Antony Blair, primeiro-ministro britânico, quando desestruturou o Labour Party e propôs a chamada “terceira via”, com o apoio entusiasmado do primeiro-ministro Massimo D’Alema, da Itália, e o presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso. Tudo com a benção do presidente Bill Clinton.

Os EUA vivem o mesmo drama do Reino Unido, sistema financeiro corroído, dívidas astronômicas, indústrias desmanteladas, desemprego, infra-estruturas envelhecidas, com desvantagem na concorrência tecnológica em áreas importantes e fraturas na coesão social. Porém, indiscutivelmente, há pontos de força.

Grande espaço geográfico, população de 300 milhões de pessoas, imponente força militar, com centenas de bases militares espalhadas em mais de 90 países, o dólar ainda se mantém como moeda central e uma capacidade notável de criar consenso, através do controle de meios de comunicação que influem no planeta. Por exemplo, Hollywood, “soaps” nas televisões, distribuição musical, controle de editoras, internet etc. Sem contar com uma vasta gama de servos habituados a ser “influenciados” pelo imperialismo dos EUA.

A União Europeia é um espaço de mercado comum, com uma parte dos países com a mesma moeda, mas que encontra dificuldades em se transformar numa verdadeira “união”. Não consegue estruturar uma política exterior comum, o mesmo vale para o setor da defesa e nem mesmo aprovar um documento que possa ser um tipo de Constituição. Os principais Estados que a compõem viveram de renda na guerra fria; apoio econômico e militar ilimitado da parte dos EUA, principalmente através da OTAN. Países ex-colonizadores dominavam parte do mercado e das matérias-primas de suas ex-colônias. Mas tudo muda. Os EUA não possuem mais recursos para as necessidades, tanto no plano econômico como no militar. As ex-colônias são sempre mais emancipadas, algumas se transformam em potências locais. Na África negra os capitais europeus são escorraçados pela presença marcante da República Popular da China.

Como se não bastasse tudo isso, o fortalecimento da perspectiva euro-asiática – a renascida potência da República Russa e suas relações com a China – apavora e, ao mesmo tempo, atrai setores de classe dominante na Europa.

Além da crise econômica, o renascer de nacionalismos, localismos, xenofobismo, a União Europeia vivera uma forte tensão geopolítica, pois os EUA lutarão para manter a hegemonia na OTAN, encontrando a contraposição crescente da Rússia.

Uma das consequências imediatas da crise será o aumento do protecionismo do seu mercado. Isto é normal já que a troca de produtos se realiza a 85% dentro de suas próprias fronteiras. Não adianta se lamentar, o que devemos fazer é criar o nosso mercado interno sul-americano e tratar a União Europeia como parceira de igual para igual.

O terceiro membro do diretório imperialista, e segundo PIB do mundo, o Japão, encontra-se já há anos com dificuldades em fazer funcionar o seu particular tipo de capitalismo que, no passado, represeu momento mais difícil depois da Segunda Guerra Mundial. Assiste a um crescimento de outros países asiáticos que lhe limitam a expansão, e sobretudo dos “primos” chineses. Pouco espaço de manobra resta.

Se o quadro delineado sumariamente é verdadeiro o imperialismo encontra-se debilitado seriamente. Debilitado, mas não morto, e está pronto para contra-atacar em diversas frentes. Faz parte da sua própria natureza, não poderá fazer diversamente.

A vitória do presidente Barak Obama, apesar de representar um avanço que devemos valorizar, não poderá modificar a essência da política imperialista. Para que isto acontecesse seria indispensável uma transformação profunda na correlação de forças entre as classes no interior dos Estados Unidos.

De um conceito importante o novo grupo dirigente tem consciência: não é plausível poder governar o planeta de forma unipolar. Deverá buscar um multilateralismo que convenha a seus interesses, tentando recriar alianças e isolar os que considera inimigos. Dialogar mais com setores moderados dos palestinos e controlar a sanha dos governos israelenses; tentar dividir os governos progressistas e revolucionários da América Latina; atiçar os nacionalismos e divisões europeias; manter os governantes corruptos de vários Estados árabes; debelar as imundas leis extraordinárias criadas pela administração W. Bush durante a chamada guerra contra o terrorismo; e por aí vai.

Um foco sensível nesta estratégia é representado pelo Afeganistão. São vários os fatores que apontam para isso. Não por nada o presidente Obama colocou que se impõe aumentar o mais rapidamente possível os contingentes militares que ali já se encontram. A resistência com que se defrontam no Iraque abateu o moral e estraçalhou o prestígio dos invasores, daí o objetivo de conseguir uma vitória clara e compartilhada. Existe a ilusão de que isso seja possível naquele pobre país que é o Afeganistão. Conta já com tropas da OTAN, e uma retirada daquele campo seria praticamente mortal para a existência deste organismo atravessado de contradições. Existem interesses fortes em tentar controlar o acesso aos canais de transporte de energia. Manter o Paquistão sob controle férreo, pois este país está ameaçado de desagregar-se. Dominar um espaço importante para poder pressionar a Índia e construir o cerco à China.

Aqui entramos no terreno mais complexo, a China. Não pode haver dúvida de que para o imperialismo este país representa o maior adversário. O crescimento de sua economia, tecnologia, poder militar, influência mundial reduz, objetivamente, o terreno onde o imperialismo pode atuar. Claro, pode-se argumentar que a República Popular da China tem problemas. E tem mesmo. Mas tudo indica que conta com possibilidades de superá-los. A redução do mercado global pode ser muito bem compensa da por um enorme mercado interno, além disso ela possui reservas que chegam a 2 trilhões de dólares. O Estado controla o sistema bancário e os setores estratégicos. Uma sólida aplicação de capitais – co mo já foi decidido – para reforçar a agricultura familiar, combater a grave degradação ambiental e encontrar novas fontes energéticas são fatores que manterão o consenso. Provavelmente, os líderes chineses preferem concentrar seus esforços no plano interno e manter uma política pacífica e de intercâmbio com os EUA. Dificilmente, porém, estes poderão suportar o agigantar-se chinês sem tentar bloqueá-lo. A batalha para conquistar uma sociedade socialista, sempre passou também pela luta anti-imperialista. Está aí o exemplo de Cuba. Que devemos fazer no atual quadro que se nos apresenta? Se são válidas as premissas deste artigo – de que a crise é sistêmica do capitalismo e não existe saída tipo Keynesiana –, podemos prever que nos próximos meses e anos ha verá um acirramento das lutas de classes. E devemos estar, os comunistas e anticapitalistas em geral, prontos a uma participação ativa e hegemônica. Mais do que nunca é fundamental manter o governo federal em mãos progressistas. Não se trata apenas de mais uma importante, mas normal, eleição. Muito se jogará na América Latina e mesmo no planeta, de como o Brasil conseguirá superar esta crise.

Decisivo é aprofundar, de forma generosa e fraternal, as relações com os países latino-americanos. Não porque somos bons, mas porque somos revolucionários. Ser capaz de superar as distâncias e os la cres que a história nos legou. Construir uma defesa e uma moeda comum. Um amplo mercado de novo tipo, voltado para a segurança alimentar, solidário, ambientalmente supor -tavel, ampliando o consumo para os setores mais carentes. Avançar na construção de uma democracia participativa que envolva as populações nas discussões de seus problemas. Recuperar ao público, os bens comuns, como água, energia, terra, minerais, que a privatização levou nestas décadas. Um esforço altíssimo para avançar numa boa educação de massas e alcançar altas metas no domínio da tecnologia dos mais diversos campos. Hoje a América do Sul conta com 450 milhões de habitantes e toda a América Latina com 650 milhões, a maioria jovem, com um denso crescimento demográfico. Isto representa cerca de 10% da população mundial. O que é um elemento de valor no contexto mundial.

Evidentemente nem todos os governos latino-americanos são progressistas, mas devemos reforçar a tendência de integração, pois isso isolará os mais retrógrados. Os neocolonizados de sempre, de cada país, usarão todos os instrumentos para evitar que esta integração avance e se aliarão – e não será a primeira vez – com os inimigos exógenos. O Brasil tem a missão de continuar a construção deste ser magmático que é o BRIC (Brasil, Rússia, Índia, Chi na). O avanço dos acordos entre estes países poderá criar uma nova arquitetura para um governo mundial mais equilibrado, com uma reforma dos organismos internacionais a começar da ONU, passando pelas entidades financeiras como Banco Mundial, FMI etc. Além de servir de circulação de novas tecnologias espaciais, comunicação, biomédicas, para serem coloca das a serviço da humanidade. Devemos olhar com carinho para os países da África Negra. Afinal, o Brasil é o segundo país do mundo com a maior quantidade de negros.

Seu trabalho, sua cultura, seu sacrifício, suas lutas são um pilar desta nação. Simplesmente o Brasil, com o que tem de bom, não existiria sem eles. Se um dos motivos da força imperial é a moeda dólar aceita em quase todo o mundo – e bem de refúio de muitos países a começar da China e do Brasil – devemos lutar por uma torção nesta moldura. Vamos acelerar a construção da moeda comum entre países sul-americanos; realizar intercâmbios inter nacionais numa mescla de moedas diversificadas; não comprar os bônus do tesouro da FED. Em pouco tempo se esvaziariam os fundos anuais de quase 650 bilhões de dólares com os quais os Estados Unidos mantêm sua desproporcionada força militar.

Desencadear uma campanha internacional para a expulsão das bases militares estadunidenses das dezenas de países que os suportam. São perigosas, servem para agressões aos povos, criam subalternidade, e custam caro. Sem tais bases não seria possível pressionar e golpear os povos que lutam por independência. A peleja cultural tem um papel-chave em todo este quadro. Impõe-se quebrar o cerco da cultura (ou incultura) imperialista. Valorizar e divulgar ao máximo nossa música, dança, pintura, escultura, cinema, teatro, literatura, artesanato, cozinha, costumes. Destacar as lutas populares e os heróis reais da nossa história. Abrirmos a mente para as tantas culturas que existem no planeta e não consumirmos tudo o que vem do mundo anglo-saxão co mo se fosse o oráculo, a que nós pobres aborígines nos curvamos abobalhados. O sofrimento dos emigrados, da população mais carente, dos trabalhadores em geral, aumentará nos países centrais do capitalismo. Irá jorrar novos conflitos sociais, ásperos e difíceis. A solidariedade de todos, para com estes lutadores, é indispensável.

Aumentar os contatos, discussões, colaborar no que é possível com o movimento social dos Estados Unidos. Ele existe, mas é débil pela sua fragmentação. A crise ajudará a união, e o perigo de repressão violenta é real. São uma riqueza preciosa e também construtores do mundo de amanhã. A saída para a crise não será indo lor e a possibilidade da volta de regimes fascistas – mesmo que se chamem com outros nomes – não pode ser descartada e nos obriga a estar alertas. As forças anti-imperialistas de todas as partes devem perder um certo complexo e superar a confusão difusa. Muitos erros foram come tidos no século passado e amargamos derrotas pesa das no plano internacional. Ainda carregamos o fim do sistema socialista europeu nas nossas vidas. Porém o capitalismo não é a solução, mas a destruição do planeta. Devemos estar totalmente convencidos, e proclamar de cabeça erguida, espírito límpido, de que nós almejamos e combatemos pelo socialismo, que é o futuro indispensável. Não é uma posição mística, ou sectária, mas de construção política, organizativa e social se quisermos um dia chegar a um mundo não polar, não mais governado por impérios.

José Luiz Del Roio é jornalista. Foi senador (2006- 2008) na Itália.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62