A necessidade e o acaso são mãe e pai da História. Todavia, na estória da Crise até os garis de Wall Street sabiam que Marx tinha razão sobre as engrenagens invisíveis da especulação e roubo da mais valia do trabalho: a bolha capitalista iria estourar, mais uma vez, e os pagadores do desemprego seriam sempre os trabalhadores. Porém, que dizer destas regiões da periferia da Periferia, tais quais o “índio sutil” Dalcídio Jurandir escreveu, longamente, no ciclo do Extremo Norte (Chove nos campos de Cachoeira, Marajó, Três casas e um rio, Belém do Grão Pará, Passagem dos Inocentes, Primeira Manhã, Ponte do Galo, Chão dos Lobos, os Habitantes e Ribanceira)? A “criaturada grande de Dalcídio” (populações tradicionais da Amazônia) pagou o pato da invenção da Amazônia e ficou a ver navios de todos os planos de desenvolvimento, tanto faz a canoa bater no pau como na pedra.

      Para assumir o dificílimo papel de porta-voz da criaturada grande e dizer onde o sapato aperta ninguém melhor do que Alfredo, alter ego do escritor marajoara; Dalcídio Jurandir, que se vivo fosse estaria com 100 anos de idade. E, na verdade, hoje ele faz 30 anos de morto e enterrado no cemitério carioca de São João Batista. Como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, em Canções de Alinhavo, “Chove nos campos de Cachoeira / e Dalcídio Jurandir já morreu. / Chove sobre a campa de Dalcídio Jurandir/ e sobre qualquer outra campa, indiferentemente”. Filho de branco e de preta nascido numa barraca de palha e chão batido no Campinho, suburbiozinho da ilhada vila de Ponta de Pedras, em 10 de janeiro de 1909. Criado e crescido entre chuvas e quebrantos, rezadeiras e devotos de santo; cercado de fazendas e espantos. Com seus vaqueiros e pescadores aluados na modesta vila da Cachoeira do rio Arari, ilha do Marajó; falecido na cidade maravilhosa de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 16 de junho de 1979. Diante de total descrença da gente marajoara sobre tal notícia, numa ilha onde ninguém morre de morte natural, paresque: apenas passa desta para melhor…

      Todo personagem de romance, como é de esperar, confere eternidade ao seu autor enquanto dura a produção e consumo da estória. Portanto, que o Alfredo fale à imaginação dos leitores a respeito de tudo aquilo que Dalcídio diria à “criaturada grande”, caso ele fosse vivo no trigésimo aniversário de sua própria morte e 70 anos de “Marajó”, sem qualquer concurso mediúnico patrocinado pelo batuque literário do babalorixá Bruno de Menezes. Trint'anos sem mestre Dal e setentinha do primeiro romance sociológico brasileiro, retrato falado da criaturada grande no chão dalcidiano, na justa apreciação de Vicente Salles. Este um, por acaso, derradeiro ictiófago da Academia do Peixe Frito, da fase pioneira de manducação física e espiritual do peixe nosso de cada dia, com açaí e a utilíssima farinha d'água ou farinha de tapioca para os metidos a besta.

      Sim, mestre Vicente é o último moicano da velha guarda. Porque a provecta Academia do Peixe Frito foi revitalizada ultimamente, também ela, por necessidade e acaso. Antes eram Vândalos do Apocalípse e depois Grupo do Peixe Frito, com o compositor e encadernador de livros velhos e consertados Tó Teixeira, o poeta da negritude amazônica Bruno de Menezes, Dalcídio, Jacques Flores, Rodrigues Pinajé e outros que a memória não me ajuda a lembrar neste exato momento. Ela foi restaurada pela Comissão do Centenário do autor de Chove nos campos de Cachoeira. Agora pede passagem e tombamento oficial no patrimônio imaterial do Ver O Peso junto a São Benedito da Praia. Hoje os antigos e renascidos Vândalos do Apocalípse são vândalos do fim da História e iconoclastas da Crise financeira mundial.

      De fato, para cabocos – por definição, gente “saída do mato” – toda crise do imperialismo é oportunidade para inventar coisa melhor. Eis que era isto, exatamente, que o pessoal esperava: Índio não quer apito, a senzala desertou a casa-grande e a Academia do Peixe Frito não se limita mais à seresta e à religiosa sesta. Agora a gente quer reserva da biosfera para distinta proteção da criaturada grande de Dalcídio e um super aquarium amazonicum a compensar os estragos feitos aos “negros da terra”, condenados outrora nos Pesqueiros Reais e lugares de moqueio do peixe, feito moeda corrente do sustento geral da colônia Grão Pará.

      Embora descrentes duvidem dos poderes miraculosos do acaso e achem que a necessidade nada pode; eu por mim acredito que para o tal acaso se manifestar carece apenas uma pitada de precisão… É o que acontece por tempero da brincadeira que se chama Academia do Peixe Frito. Onde Dalcídio Jurandir, minto; Alfredo, atravessa a feira do Ver O Peso para pegar canoa e ir pescar no Marajó e depois voltar e vender o peixe de tantas notícias em Icoaraci… Se esta audácia fosse premeditada, iriam logo dizer que foi má fé dos iconoclastas da Crise. Na verdade, na safra deste ano de 2009, o acaso abusou das coincidências e dona necessidade não se fez de rogada a agradecer em nome da criaturada: candidatura marajoara à reserva da biosfera; 70 anos do romance Marajó; centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir e 30 da sua morte; 350 anos da carta de Camutá [Cametá], As Esperanças de Portugal, do Padre Antônio Vieira; e da pax dos Nheengaíbas…

      Há uma dívida histórica da invenção da Amazônia a ser paga à criaturada. Pois é certo que o piloto de Colombo, Vicente Yañez Pinzón, chegando ao cabo Santo Agostinho, em janeiro de 1500, achou o Ceará e depois de alguns dias aportou à ilha Marinatambalo [Marajó], na foz de um grande rio ao qual ele chamou de Santa María de la Mar Dulce [rio Amazonas]. Onde assistiu o fenômeno da Pororoca, encontro retumbante das águas do rio e do mar, durante reponta da maré de enchente no tempo da lua. Pensando o navegador, erradamente, que a tal ilha e a imensa boca do “mar doce” estavam na parte que, de acordo com o tratado de Tordesilhas, pertencia a Portugal, quando na verdade deveria caber a Espanha desde o cabo Maguari (Soure) para dentro; o piloto espanhol prosseguiu na derrota para o norte [Cabo Norte, Amapá]. Não sem antes assaltar e pilhar uma aldeia capturando dali 36 índios como escravos, no lugar que aparece nos primeiros mapas da Amazônia brasileira como “punta de los esclauos” [provalvemente, aldeia dos Aruãs, depois vila de Chaves] e uma mucura com filhotes (cf. “O Novo Éden”, de Nelson Papavero et al., Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2002, 2ª ed.).

      Curiosamente, em 1939, há 70 anos exatos, Dalcídio Jurandir depois de sofrer prisão em Belém pelo “crime” político de ser militante comunista; foi para Salvaterra como inspetor de Educação e Ensino Público e lá reescreveu o  Chove nos campos de Cachoeira e escreveu seu segundo romance, dando-lhe  o sugestivo título de Marinatambalo, publicado depois como Marajó (cf. revista Asas da Palavra – v.3, nº 4, Belém: Unama, 1996): indireta referência à tragédia brasileira do trabalho escravo, começada em Marajó com a viagem de Pinzón, em 1500.

      Morte e ressurreição de dom Sebastião no país das amazonas – Amazônia portuguesa, segunda metade do século XVII, entrou em cena o célebre jesuíta Antônio Vieira, padre, diplomata, sermonista e missionário dentre outras qualidades mais. Depois de apogeu fulgurante como conselheiro do rei, a inveja e interesses contrariados dos muitos inimigos que ele fez na corte tramaram-lhe a queda. Certas negociações secretas com o rabino português da comunidade de Amsterdã (Holanda), Menasseh Ben Israel, para repatriamento de capitais judeus a Portugal e revogação do édito de expulsão dos seguidores de Moisés levaram Vieira à desgraça. Sobretudo a questão do “papel forte”, no qual o padre avaliando mal a resistência dos pernambucanos à ocupação holandesa; propôs ao rei trocar o reconhecimento da independência de Portugal pela entrega de Pernambuco a Holanda.

      Dizem certos historiadores que, para se recompôr com a Companhia de Jesus que o ameaçou de expulsão devido à aventura nos salões europeus; ressentido com a corte de Lisboa e disposto a recuperar a confiança de dom João IV; Vieira engajou-se como missionário no Maranhão e Grão Pará, entre  1652 e 1661. A missão de Vieira junto aos índios fez dele o insuperável “payaçu”, padre grande. Precursor dos direitos humanos, com destaque especial na pacificação do Marajó, celebrada no “rio dos Mapuaises” [Mapuá, Breves], entre 22 e 27 de agosto de 1659. A controvérsia acaba pela certeza geográfica da fundação das aldeias Aricará (Melgaço) e Aracaru (Portel), povoadas com os famigerados “nheengaíbas” (marajoaras), no mesmo ano, há alguns meses apenas considerados bestas feras votadas ao extermínio e cativeiro. A certeza do sucesso do payaçu com a lei de abolição dos cativeiros dos índios (1655) e as pazes do Marajó (1659), foi atestada pela desesperada violência dos colonos do Pará ao expulsar os padres, em 1661, para desembaraçadamente escravizar os índios. A segunda expulsão viria a bordo do conflito com o Diretório de Pombal (cem anos depois das pazes de Mapuá!).

      Do Diretório dos Índios (1757) ao Plano Marajó (2007) – Lá se foram 250 anos desde a formação de vilas e lugares saídos de aldeias de catequese até o planejamento territorial participativo contemporâneo da região marajoara. Mas, quem prestaria atenção ao lento movimento de transformação do espaçotempo numa província insular de terras-baixas como esta? 
 
      A adesão de Muaná à Independência do Brasil, de 28 de Maio de 1823, não se conta nas escolas para não desmentir os nobres representantes do povo que idolatram a patuscada de 15 de agosto, conforme versão oficial. Os descendentes cabocos (caa boc, “tirados do mato”) do Marajó (“homem malvado”, que com setas de talo de patauá envenadas e zarabatana de paxiúba impediu o “bom selvagem” tupinambá de invadir as ilhas) imitaram seus avós e viraram guerrilheiros “cabanos” (nome impróprio dos “malvados”, como o historiador Domingos Antônio Raiol chamou aos insurgentes paraenses). De modo que, duas vezes, na historiografia colonial e neocolonial; os lesados ficaram tachados de “malvados”: uma vez, pelo inimigo hereditário, o “bom selvagem” tupinambá; e outra vez pelos bons colonizadores.
 
      Ainda uma vez mais, os marajoaras tiveram que esperar a primeira manhã da volta da democracia representativa desde a Primeira Noite do Mundo que jazia oculta dentro de um caroço de tucumã no fundo do rio. Com a redemocratização do Brasil em 1988, o constituinte paraense de 1989 atirou no que viu e acertou no que ele não via:

      Para barrar infeliz idéia de construção de um presídio federal de segurança máxima na longínqua e perdida ilha do Marajó, saia a toques de caixa uma incerta área de proteção ambiental. Vide § 2º, VI, art. 13, da Constituição do Estado do Pará: “O arquipélago do Marajó é considerado área de proteção ambiental do Pará, devendo o Estado levar em consideração a vocação econômica da região, ao tomar decisões com vistas ao seu desenvolvimento e melhoria das condições de vida da gente marajoara.”

      Haverá futuro para a criaturada de Dalcídio? – Sabemos quanta ruína e destruição de  civilizaçóes e nações cujos sobreviventes se debatem em pobreza e degração, sempre com a tarefa ingrata de produzir matéria-prima e fornecer mão-de-obra barata. As conseqüências chegam além do suportável. Assim mesmo, as populações tradicionais poderiam orientar sociedades industriais a compreender melhor o fenômeno da emergência social. Como é o caso da Convenção Universal da Diversidade Cultural e da declaração da ONU sobre os direitos humanos dos povos indígenas, que não podem ficar à margem das convenções sobre a Biodiveridade, o Desenvolvimento e Meio Ambiente.
 
      Estima-se que até 2030 haverá algo como 350 milhões de pessoas em todo o mundo, que reivindicam uma etnia ou cultura de povo autóctone, falando mais de cinco mil línguas diferentes e representanto outro tanto de diversas culturas. Sua situação é extremamente precária diante da pressão pela extração de minérios, petróleo, madeira, produção agropecuária. Estes flagelados da História, entretanto, resistiram e podem ainda vir a escrever com as respectivas sociedades nacionais uma nova página da história.
 
      Transformados em curiosidade exótica em exposições, museus e estudos etnológicos são sempre como seres de uma espécie votada à extinção, como animais e plantas que precisam ser protegidas da sanha do homem moderno. Entretanto, o mundo aprenderá com esses “primitivos” a sobreviver melhor em suas cidades insustentáveis. O Manifesto Comunista, revivido pelo proletariado triunfante sobre a exploração do homem pelo homem, deve ecoar ainda não como nostalgia do “eterno retono”, mas o futuro da Utopia. A Amazônia Sustentável há que amazonizar o Brasil, para o País do Futuro transformar o mundo numa boa casa para todos…

      Há 40 anos, antropólogos temiam que os povos tradicionais não passariam do século 20. Apesar de tudo, eles sobrevivem, crescem e aparecem. Velhas gerações transmitem conhecimentos às novas, muito provavelmente países como o Brasil poderão ser privilegiados por suas populações tradicionais. Assim falou Alfredo, alter ego do romancista da Amazônia, na Academia do Peixe Frio. Houve palmas e gritos de apoiado! Para constar, eu, escrivão da frota de igarités do Pesqueiro Real (Reserva Extrativista Marinha de Soure), lavrei a ata da sessão.