Frederico foi pendurado pelos testículos. Maria teve dois filhos levados por militares. Cícero presenciou a morte de Jaime Petit com seis tiros de fuzil. Ângelo viu o corpo de Osvaldão separado de sua cabeça. Estes foram alguns dos relatos colhidos pela Comissão de Anistia em audiência pública feita em São Domingos do Araguaia. Para eles, não há dúvida: os moradores da região foram perseguidos pela ditadura militar. E muitos foram barbaramente torturados.

Frederico foi pendurado pelos testículos. Maria teve dois filhos levados por militares. Cícero presenciou a morte de Jaime Petit com seis tiros de fuzil. Ângelo viu o corpo de Osvaldão separado de sua cabeça. Estes foram alguns dos relatos colhidos pela Comissão de Anistia em audiência pública feita em São Domingos do Araguaia. Para eles, não há dúvida: os moradores da região foram perseguidos pela ditadura militar. E muitos foram barbaramente torturados.

Por Priscila Lobregatte*

Eram 9 horas da manhã do sábado, dia 22 de setembro. Nas ruas de São Domingos do Araguaia, a 60 quilômetros de Marabá, a temperatura era de cerca de 35 graus, mas no auditório da Câmara Municipal, o calor parecia maior. Parados à porta, de chapéu e botina, os moradores olhavam desconfiados os forasteiros que chegavam no ônibus da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Pará. Era a primeira vez que a Comissão de Anistia, a convite da Sejudh, saía de Brasília para ouvir os camponeses do sul do estado, onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia.

No interior da casa legislativa, havia mais de 350 pessoas vindas de várias cidades da região, como São Geraldo, Marabá, Imperatriz, Santa Luzia e Palestina. E um cheiro acre, de suor e terra, subia espalhado pelos ventiladores que não davam conta de refrescar tanta gente. A maioria dos que aguardavam o início do encontro, um povo simples e pobre, era formada de idosos que viveram em sua juventude um dos mais destacados episódios da resistência armada à ditadura militar. E que mais de 30 anos depois da Guerrilha do Araguaia, em meio à coletividade, pareciam mais à vontade para falar dos acontecimentos que marcaram a região no começo da década de 70 e que até hoje ecoam na vida de cada uma das famílias que de alguma forma sofreram pelas mãos hostis dos militares brasileiros. Estima-se que cerca de 300 pessoas foram presas e torturadas na região a partir do recrudescimento das ações dos militares, com a Operação Marajoara, ocorrida em outubro de 1973.

A audiência, que ouviu 141 pessoas em dois dias, não foi uma sessão ordinária, burocraticamente cumprida. Trata-se de um passo fundamental para se elucidar as atrocidades praticadas pelas Forças Armadas contra o povo da região. Além disso, é o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de que houve perseguição e tortura aos camponeses e que cada um deles têm o direito de recorrer à Justiça para ganharem a anistia política e obterem reparação econômica pelos danos sofridos.

Para Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, órgão ligado ao Ministério da Justiça, a audiência tem duas dimensões relevantes. “A primeira é que a Comissão de Anistia foi até a comunidade. A prática democrática do Estado brasileiro é de que os tribunais julguem seus processos dentro de quatro paredes, fechados em palácios, dentro de seus prédios suntuosos. E fazem pouca investigação junto à população, que é a interessada efetivamente. Levamos a Comissão até o interior do Pará para que os próprios conselheiros, que vão julgar esses casos, pudessem ouvir a história de cada um deles”. Conforme disse Abrão, “isso é um exemplo de democratização do acesso à Justiça no Brasil”.

O segundo ponto ressaltado pelo jurista é que, no caso da Guerrilha do Araguaia, “a oitiva tem um grau de credibilidade, muito maior do que a mera declaração individual enviada pelo Correio até Brasília. Afinal, não sabemos em que condições esse tipo de declaração é colhido”.

Entrevistado pelo Vermelho após o fim da audiência, Abrão contou a impressão que teve dos depoimentos ouvidos pela Comissão. “São relatos de profunda dor, marcas que ainda estão presentes em cada um daqueles cidadãos. O tempo passa, alguns atores não estão mais vivos, mas a memória do sofrimento, das auguras, das dores e dos arbítrios que aquele pessoal sofreu está na mente de quem ainda está vivo”.

Cicatrizes da ditadura

Seu Frederico Lopes aparenta ter 80 anos. Sentou na primeira fila, diante dos conselheiros da Comissão de Anistia e das autoridades que formavam a mesa do encontro. Mas os olhos dele pareciam absortos, perdidos em algum momento do seu passado. Quem fala por ele é a esposa, Dona Adalgisa Moraes da Silva, de 76 anos. “Os militares chegaram na minha casa perguntando pelo meu marido. Eu disse que ele estava na casa da minha cunhada, mas eles achavam que estava se escondendo”, recorda Dona Adalgisa.

Ela lembra que prenderam o marido na fazenda Fortaleza, onde viviam, e o levaram para a Bacaba, local próximo a São Domingos, às margens da Transamazônica, onde os presos ficavam concentrados. Lá era feita uma espécie de triagem e se separava quem permaneceria ali e quem seria levado para outras bases do Exército, em Marabá, Xambioá e Araguaína. “Judiaram muito. Colocaram ele em cima das latinhas e derrubavam, chutaram e ainda penduraram pelo saco”, conta a esposa.

As latinhas, que armazenavam a comida consumida pelos militares, eram usadas como forma de tortura. Os prisioneiros eram obrigados a subir nelas descalços. Em geral, os militares chutavam as latas para que os prisioneiros caíssem no chão. Com um método nada lógico de raciocínio, diziam que quem pulasse, mostrando mais esperteza, era mesmo guerrilheiro.

Mas não parou por aí o sofrimento de Seu Frederico. “Deram choque na cabeça do meu pai e por isso ele enlouqueceu. Chegou a me perseguir achando que eu era o marido da minha mãe”, disse José Moraes da Silva, conhecido como Zé da Onça, que hoje preside a Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, fundada em 2005.

Depois de passar 60 dias preso, sofrendo tortura pelo simples fato de conhecer guerrilheiros, Frederico foi levado para Belém, para receber tratamento psicológico. “Os torturados nunca mais recuperaram o que perderam”, lamenta Zé da Onça. Na época em que o pai foi preso, ele tinha 14 anos e se viu obrigado a parar os estudos e trabalhar numa serraria o dia todo para sustentar a mãe e os irmãos menores. Ele lembra com carinho do “povo da mata”, ou “paulistas”, como os camponeses costumavam chamar os guerrilheiros. “Convivia com o pessoal. Eles ajudavam muito a gente. Tinha a Sônia, a Rosinha, a Fátima, morta no primeiro combate lá no São José”, disse, ao recordar de Lucia Maria de Souza, Maria Célia Correia e Helenira Rezende.

“Todos os camponeses da região da guerrilha, naquela época, perderam os seus bens e não tinham como sustentar seus filhos. Hoje, com a nossa associação, não vamos parar mais. Vamos lutar por nossos direitos. Porque se não tivesse tido aquele tanto de Exército aqui, hoje os camponeses poderiam ser os fazendeiros da região”, salientou Zé da Onça.

Dois filhos de Maria

Dona Maria Bezerra de Oliveira ainda chora quando lembra do período militar. Cearense de Matriz, foi para a região em 1950, e morava em Santa Cruz. Criava sozinha os seis filhos, colhendo arroz, feijão e coco de babaçu. Aos 78 anos, Dona Maria conta que os militares levaram dois de seus filhos, Juracy e Miracy. “Tinha um filho de 8 anos (Juracy) que foi iludido por um militar e que me largou por ele. Chorei quinze dias e fiquei da finura do meu dedo mindinho. Depois eles voltaram, mas o menino não queria saber de mim, nem queria tomar a benção. Aí, ele perguntou se eu dava o menino porque se eu desse, ele levava. Eu disse ‘tenente, dar eu não dou porque meus filhos não são cachorros, mas se você resolve levar ele, eu não tenho o que fazer’. E ele levou”.

Um tempo depois, eles insistiram para que ela desse o mais novo, Miracy. “Disse que dava o menino para ele por causa da minha situação, porque não tenho quem me ajude”, contou, chorando. “Não gosto nem de lembrar o que passei naquele tempo. Meus filhos sendo carregados por eles. Você não imagina a humilhação que eu sofri. Eu não tinha como criar meus filhos. Eu era o homem e mulher da casa”.

Conforme relato de Dona Maria à Comissão de Anistia, o tenente, que levou o filho maior chama-se Antonio de Azevedo Costa. O sargento, que ficou com o filho caçula, chama-se João Lima Filho.

Aos 15 anos, Juracy, que fora viver com os pais do tenente, resolveu sair de casa. Perambulou um tempo pela capital cearense e depois, decidiu ir para Xambioá em busca da mãe. “Ouvi dizer que ele podia estar lá e fui atrás. Lembrava que ele tinha um sinal roxo no peito. Quando o encontrei, pedi para ele arregaçar a camisa e vi o sinal”. Hoje, ele vive com a mãe, mas do filho menor, Dona Maria não tem notícias. “Eles diziam que iam trazer o menino de tempos em tempos para eu ver e até hoje nada”.

Apesar da mágoa que tem dos militares, Dona Maria tocou a vida. Hoje, voltou a estudar. Está fazendo a 6ª série. “Fui muito humilhada, passei fome. Eles não deixavam a gente ir pro mato pegar comida. Não tem humilhação pior do que ter fome, saber que tem o que comer e não poder pegar porque não tem permissão”.

Os mateiros

Entre os camponeses ouvidos pela Comissão, há também os mateiros, homens que conheciam bem a região e que eram usados pelos militares para chegar até o esconderijo dos guerrilheiros. Um deles foi Cícero Pereira Gomes, uma peça importante nas investigações da Comissão. Ele contou que em 16 de setembro de 1973, aos 39 anos, foi levado à mata. Com sua ajuda, foi pego o guerrilheiro Chicão, ou Adriano Fonseca. “Não adiantava pegar vivo porque eles matavam. E atiraram no Chicão”, disse. Seu Cícero conta ainda ter presenciado a prisão de Jaime, Peri, Fogoio, Raul, Luiz Carlos, Daniel, Áurea, Lia, Tuca, Rosa e Valquiria. Ele contou que presenciou a morte de Jaime Petit com seis tiros de fuzil e que em seguida seu corpo fora decapitado.

Sobre Mariadina, Cícero recorda de tê-la visto com os braços machucados depois de ter se soltado queimando as cordas que a amarravam. Após a fuga, “botaram os cachorros atrás dela”, lembra. Segundo ele, Dina teria sido morta em junho de 1974. O depoimento de Seu Cícero confirma que os guerrilheiros, mesmo presos e sem condições de reagir, foram executados friamente, prática que é uma afronta à Convenção de Genebra.

Alguns mateiros que ajudavam o Exército ganhavam terras legalizadas pelo Incra. Muitas vinham pela mão de Sebastião Rodrigues de Moura, o sinistro coronel Curió, um dos algozes dos guerrilheiros. “Ele deu terra para quem não merecia”, reclamou Cícero, que disse não ter recebido a recompensa. Ele relatou ainda que até 1988 os militares o visitavam.

Seu Vanu, ou Manoel Leal de Lima, trabalhava na fazenda Fortaleza e era vizinho dos guerrilheiros. Conta que foi preso em 8 de outubro de 1973 porque ajudava os guerrilheiros doando farinha. Passou 11 meses na Bacaba. “Bateram muito em mim e só não me judiaram mais porque queriam que eu ajudasse”, disse. Depois de preso, passou a ser levado para a mata, ajudar na busca pelos paulistas. “E não tinha jeito de enganar porque se não, eles me matavam”. Em 1975, quando os guerrilheiros já haviam sido exterminados, Vanu foi levado para Belém, “para procurar quem ainda pudesse estar por lá”.

Hoje, Seu Vanu diz ter raiva dos militares. “Não gosto deles porque me enganavam e porque eu podia estar bem de vida hoje, mas perdi meus animais e depois que fui preso, eles tacaram fogo em minha casa e os madeireiros tomaram conta da terra”.

Decapitação

O livro Direito à memória e à verdade, recentemente lançado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, trata de uma prática cruel, porém comum entre os militares durante ações no Araguaia: a decapitação. O livro cita, por exemplo, os casos de Arivaldo Valadão, o Ari, e de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão.

Num dos trechos, o livro conta: “Segundo depoimentos de moradores da região, [Osvaldão] foi morto em abril de 1974, próximo à semana Santa, perto de São Domingos. Seu corpo foi dependurado por cordas em um helicóptero que o levou de Saranzal, local onde foi morto, até o acampamento militar de Bacaba e de lá para Xambioá. Na primeira vez em que o cadáver foi içado pelo helicóptero, caiu e fraturou ossos da perna. Posteriormente, sua cabeça foi decepada e exposta em público. Na base militar de Xambioá, seu cadáver foi violado por chutes, pedradas e pauladas dadas pelos militares, sendo finalmente queimado e jogado no buraco conhecido como ‘Vietnã’ (vala situada ao final da pista de pouso da Base Militar de Xambioá), onde eram lançados os mortos e moribundos. Com o término das operações militares, foi feita uma grande terraplanagem para descaracterizar o local”

Ângelo Lopes de Sousa, 74 anos, viu o corpo de Osvaldão separado de sua cabeça. Veio do Maranhão para São Domingos em 1964. Tinha um pedaço de terra no lugar conhecido como Metade, onde vivia com a família. “Trabalhei com o Exército entre 1973 e 1974. Fui umas oito vezes com eles pro mato”, contou. Ele recorda que teve um tiroteio em Chega com Jeito entre soldados e guerrilheiros. “Aí, vi o Osvaldão morto, na Grota da Onça. Eu tava de guia nesse dia e vi a cabeça dele separada do seu corpo”.

Quando acabou a guerrilha, Seu Ângelo disse que participou de reunião com militares e guias com a presença do Curió. “Ele dizia que tinha que pegar esse povo, os guerrilheiros, e que ele tinha vencido a guerra e que ia dar um lote de terra para cada um”. Ângelo diz que não quis porque já tinha sua roça.

“Os guerrilheiros eram um povo bom. A gente não tinha hospital aqui e quando tinha malária eles davam o remédio certo. Faziam mutirão e ajudavam na roça”, lembra Raimundo Nonato dos Santos, 70 anos, na época conhecido como Peixinho, vizinho dos guerrilheiros. Seu Raimundo disse que conheceu Nelito, Zé Carlos, Nunes, Zé Bom, Piauí, Edinho, Duda, Maria. “Vi o Nunes e o Zé Carlos quando eram enterrados ainda com a cabeça de fora. É difícil de achar porque aquela área agora ta toda debaixo de pasto. Fica em Caçador, na cabeceira da fazenda Fortaleza”.

Ele contou que os militares “colocavam os guias de isca na frente”; em seguida, vinham os soldados. O grupo de Peixinho, conforme relatou, guiava o Capitão Salsa. “Ele não usava farda, mas roupa normal, de camponês”. “Fui porque era obrigado. Mas nunca derrubei sangue de ninguém”, ressaltou.

Peixinho falou também sobre Pedro Carretel, camponês que se incorporou às Forças Guerrilheiras do Araguaia (Forga). “Foi pego vivo. Encheram ele de chumbo, mas ele não morreu. Levaram ele pra Bacaba. Carretel disse ‘no dia em que eu sair daqui, vocês não vão escapar de mim’. Só por dizer isso, os soldados mataram ele. Gostava muito dele, moço. Não queria ver morrer”.

Um dos mistérios que rondam a Guerrilha do Araguaia é o paradeiro das ossadas. Muitos corpos foram retirados de seus locais, em outros, o solo foi modificado. De acordo com Diva Santana, conselheira da Comissão de Mortos e Desaparecidos, membro do grupo Tortura Nunca Mais na Bahia e irmã da guerrilheira desaparecida Dinaelza Santana Coqueiro, a Mariadina, , “os depoimentos que ouvi ali não ajudam muito. Contudo, aquelas pessoas que falaram para a Comissão sabem muita coisa, mas não têm garantia, nem segurança para falar”.

Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia, acredita que o conjunto de declarações dadas pelos moradores da região poderá ajudar na busca pelas ossadas. “Vamos procurar todas as provas documentais disponíveis e cruzar com esse material”.

Perseguição sistemática

De acordo com um dos conselheiros da Comissão de Anistia, Egmar José de Oliveira, “a audiência em São Domingos não deixou dúvidas de que houve perseguição sistemática dos militares aos moradores da região, o que nos dá elementos suficientes para anistiar os perseguidos. O segundo passo é verificar as formas de reparação financeira”. Segundo a lei 10.559, a Lei da Anistia, a indenização pode ser paga em prestação única ou mensal. No caso dos camponeses, que em sua maioria não possuía vínculo empregatício, as indenizações deverão ser aplicadas em uma única parcela, no valor máximo de R$ 100 mil reais.

Com base nos relatos colhidos e nos documentos que a Comissão vem juntando ao longo dos últimos anos, os conselheiros irão verificar a veracidade dos depoimentos. Um dos pontos que serão investigados são as premiações, em forma de lote de terra, que os militares davam a alguns mateiros como pagamento pelos serviços prestados. “Já solicitamos ao Incra um levantamento das posses da região para sabermos quem ganhou terra dos militares”, explicou Oliveira.

Ainda hoje, os camponeses temem falar sobre a guerrilha. Zezinho do Araguaia, que participou do combate no sul do Pará, diz que o Exército tem seus informantes na região. “Havia na sessão um agente do 28º Batalhão de Marabá, que usava um telefone celular para filmar”, disse.

Apesar da resistência que ainda existe por parte do poder militar para que não se investigue o caso mais a fundo, Zezinho está confiante no trabalho da Comissão. “Foi o maior avanço que pude ver na nossa democracia. Para mim, foi o grande encontro do século 21 no Brasil, um encontro de heróis. De um lado, aqueles que lutaram contra um governo tirano. Do outro, aqueles jovens da Anistia, que ousaram sair do ministério e ir ao encontro dos camponeses”.

Reconhecimento do Estado

A iniciativa de promover o encontro dos torturados do Araguaia partiu do governo do Pará e da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do estado, que convidou a Comissão de Anistia para ouvir os depoentes. “Essa audiência é histórica e da mais alta importância porque se trata de o Estado brasileiro reconhecer suas responsabilidades e as violências cometidas, entre elas a tortura de presos indefesos sob a guarda do Estado”, disse Socorro Gomes, secretária de Justiça e Direitos Humanos do Pará.

Socorro avalia que esse é um passo também no sentido de se resgatar a honra daquelas pessoas. “Muitos sentem vergonha e medo de falar. Há muitas mulheres que foram violentadas e que ficam constrangidas em contar o que passaram”.

No Pará, estado visto como terra de pistolagem, Socorro diz que a sessão é uma forma de se construir uma política de direitos humanos. “O povo paraense sempre lutou muito. Ou seja, se por um lado há ainda aquele estigma de que o estado é terra de ninguém, por outro há uma enorme robustez de nosso povo nas lutas populares”.

“Foi um fato positivo em todo esse processo de busca da verdade que vem acontecendo ao longo desses anos após a ditadura militar e vem a fortalecer a luta dos familiares e da sociedade comprometida com esse processo”, salientou Diva. “Diferencio essa audiência das outras porque se trata de uma população que foi completamente abandonada. Toda vez que vou à região, me emociono porque a gente se depara com um país de duas faces”.

Outra vitória importante ressaltada por Diva é a tentativa do Pará de implementar, no âmbito estadual, lei que prevê a reparação a torturados e perseguidos, a exemplo do que já acontece em estados como Paraná, o primeiro a ter esse tipo de legislação, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco. “É imprescindível para o estado do Pará uma lei como essa, pois além da reparação financeira, reafirma o projeto democrático local”.

Política de terra arrasada

Perseguida durante os anos de chumbo, Maria do Socorro Moraes foi para a clandestinidade e passou a se chamar Josideméia, depois Joana e por último, Maria José. Hoje, adotou o Jô, presente nos três nomes.

Deputada federal pelo PCdoB de Minas Gerais, Jô Moraes, também participou da sessão como representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Essa audiência marca um momento em que o Estado brasileiro se dirige ao cenário dos acontecimentos, demonstrando a sua responsabilidade e a necessidade de que a sociedade realize reparos não apenas aos indivíduos isoladamente, mas à comunidade que foi atingida como um todo, numa política de terra arrasada”, declarou ao Vermelho.

Segundo Jô Moraes, o que mais chamou atenção nos depoimentos a que teve acesso foi a constatação de que houve uma ação terrorista generalizada por parte dos militares contra a população local. “Foram dezenas e dezenas de camponeses presos e obrigados a prestar serviços aos militares. Fiquei muito assustada com o clima de perseguição indiscriminada, o nível de aprisionamento daqueles camponeses e o uso deles como agentes involuntários do rastreamento dos guerrilheiros na mata”.

Como dirigente comunista, Jô disse ficar satisfeita em ver a continuidade das ações do partido na região, com a organização do PCdoB em São Domingos e São Geraldo, por exemplo. “É muito bom ver que naquelas comunidades, onde os camponeses encontram enormes dificuldades, o partido é atuante e vem lutando pela melhoria da vida de quem vive na região. Também fico orgulhosa por ver que aquelas pessoas estavam ali ajudando a resgatar a história de companheiros perseguidos”.

Já Criméia Alice Schmidt de Almeida, que fez parte da guerrilha em 1972, acha que mais do que a reparação financeira, deve-se valorizar a reparação moral dos perseguidos. “Na verdade, o que aconteceu na região do Araguaia foi crime de lesa humanidade, comparável ao que fizeram os nazistas, porque atingiu toda a população local com resultados que ainda hoje podem ser percebidos”.

Luz à verdade

Quando a primeira etapa da audiência acabou, já era uma hora da manhã de domingo, dia 23. A equipe, cansada e faminta, seguiu para o hotel, em Marabá. No ônibus, todos comentavam o que ouviram. Era a excitação de um grupo de jovens advogados sedento por descobrir ao menos uma parte de uma das mais enigmáticas passagens de nossa história recente. Cortando o campo no meio da madrugada, a sensação de que naqueles mesmos lugares por onde agora passavam, há 33 anos, militantes e camponeses lutaram até o fim e morreram pelo sonho de um país livre, justo e soberano.

O Brasil, com um governo democrático à frente, busca agora reconstituir essa passagem e trazer à luz a verdade histórica. Como é dito na apresentação do livro Direito à memória e à verdade, não se “vira a página” desse período trágico da história com “falsos esquecimentos”, mas sim “com a elucidação de tudo que se passou”.

*Enviada a São Domingos de Araguaia

Fonte: Portal Vermelho