A agenda bioética do século 21 ampliou de modo significativo sua lista de temas. Com a recente Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, aprovada por unanimidade pelos 191 países participantes da 33ª Seção da Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris em outubro de 2005, além das questões biomédicas e biotecnológicas já presentes em seus estudos, a Bioética passou a incorporar também os temas sanitários, sociais e ambientais.

O objeto central desta série de artigos, a pesquisa clínica, mudou de uma atividade amadora no século 18 e universitária no século 19 para uma atividade industrial no século 20 (1). A aceleração do processo de globalização dos mercados nos últimos tempos internacionalizou a pesquisa clínica e influenciou tanto suas formas de financiamentos como o desenvolvimento de suas práticas de pesquisa (2).

Sem condições de determinar suas prioridades de pesquisa e fazer in-versões substanciais em pesquisa no campo da saúde, os países periféricos se convertem, muitas vezes, em reféns das inversões estrangeiras. É comum a realização de pesquisas nesses países conduzidas somente pela lógica do mercado, com vistas ao desenvolvimento de medicações que ofereçam uma vantagem competitiva em relação a outro medicamento já existente e comprovadamente eficiente. Não é de se estranhar, portanto, que nos anos mais recentes comecem a aparecer nas revistas científicas especializadas em ética e bioética expressões como “colonialismo bioético” (3) e “imperialismo moral” (4,5), algumas favoráveis e outras contrárias a essa situação. A pesar de manifestações críticas contra esses tipos de pesquisa clínica, existe todo um esforço de muitos estudiosos instalados em países desenvolvidos, inclusice bioeticistas, em justificar tais situações (6,7,8).

A globalização da economia mundial, ao contrário de diminuir a distância entre ricos e pobres do planeta, embruteceu ainda mais as contradições, acentuando os problemas já existentes. Nos países pobres e em vias de desenvolvimento (periféricos), a maioria da população segue lutando para obter condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Enquanto isso, a partir do conceito de ética aplicada proposto e implementado nos países ricos (centrais), é crescente o processo de despolitização dos conflitos morais, por mais graves eles sejam. Nas últimas décadas do século 20 – e determinadas correntes teóricas da bioética contribuiram para isso – a ética passou a ser utilizada em muitas instâncias como uma ferramenta horizontal e “asséptica”, a serviço de leituras e interpretações neutras de conflitos coletivos registrados em populações marginadas e socialmente excluídas do processo de desenvolvimento societário.

A partir da análise da expressão “Imperialismo moral”, o objetivo desta série de artigos é estabelecer uma relação crítica dessa expressão com ensaios clínicos multicêntricos com cooperação estrangeira desenvolvidos em muitos países periféricos do Hemisfério Sul do mundo nos últimos anos.

É o que buscaremos aprofundar nos próximos artigos.

Referências:

1. Ravetz, J. Scientific Knowledgement and its Social Problems. Oxford University Press, Oxford. 1971.

2. Garrafa, V & Lorenzo, C. Ética e Investigación Clínica en los Países en Desarrollo – aspectos conceptuales, técnicos y sociales. I Curso a Distancia de Ética en la Investigación. Módulo IV, Red Latino-Americana y del Caribe de Bioética de UNESCO – REDBIOÉTICA, Córdoba/Argentina, 2006.

3. Chadwick, R & Schücklenk, U. Bioethical colonialism? Bioethics 2004, 18 (5):iii-iv.

4. Benatar, SR. Imperialism, research ethics and global health. J Med Ethics 1998; 24:221-222.

5. Dawson, A & Garrard, E. In defence of moral imperialism: four equal and universal prima facie principles. J Med Ethics 2006; 32:200-204.

6. Varmus, H & Satcher, D. Ethical complexities of conducting research in developing countries. New England Journal of Medicine 1997; 337: 1000-1005.

7. Resnik, DB. (1998) The ethics of HIV research in developing nations. Bioethics 1998; 12: 286-306.

8. Capron, A. Power and injustice in research involving human subjects. Sixth World Congress of Bioethics – Annals. Brasília, 2002, p. 83.

Esta série de artigos tem origem em conferência apresentada na mesa redonda “Libertad y responsabilidad en la investigación”, ocorrida no V Congresso Mundial de Bioética promovido pela Sociedad Internacional de Bioética (SIBI) na cidade de Gijón, Espanha, em maio 2007. O texto apresentado na conferência, publicado aqui em várias partes, saiu também em Cadernos de Saúde Pública, 2008. Volume 24 (10): 2219-2226.