Saramago, tomando a liberdade da criatividade que as palavras nos permitem, escreveu essa belíssima obra de ficção, contudo, parece ser possível darmos contornos de “realidade”, dependendo do ponto de vista do leitor. Em contrapartida, lembremo-nos de que para falar sobre a vida de Jesus, ou do personagem Jesus, perante uma cultura onde o cristianismo enquanto instituição se cristalizou há milênios, como bem sabemos, só é legitimada enquanto discurso reservado aos sacerdotes, em outras palavras, não se fala de Jesus Cristo enquanto “palavra da verdade” senão pela caduquice dos catedráticos da religião.

No meio religioso, vários tomaram a obra de Saramago sob a cegueira da fé, da ordem da Verdade e do sagrado, pariram uma interpretação mutilada e disforme, ou melhor, em forma com a moral cristã. É nesse sentido que parece ser o mais adequado compreendermos como foi a reação do público quando foi lançada a obra. Merece ainda ser tomado de nota, que a reação das massas não merece muito da nossa atenção senão a desconfiança.

Saramago apresenta-nos um Jesus humano como todos os outros, tão humano que nos admiração. Jesus é um homem que em sua época se destoa dos demais pela sua inteligência de questionar, ir além, seja de Deus ou do homem; a própria Maria, mãe de Jesus, não escapa da argúcia do filho, de tal modo que, devido aos conflitos entre eles, Jesus resolve partir sozinho em busca de suas respostas existenciais.

Eis que Deus aparece ao homem Jesus e lhe diz que é seu pai, eis então um Jesus mais repleto de questionamentos: que queres tu de mim? por que tem que ser assim? se tens tanto poder assim, por que queres tanto mal? – Não se surpreenda o leitor se perceber um Deus lacônico, um pai pouco interessado no filho.

Esse é só um ponto de partida de uma obra que tem a capacidade de nos fazer sentir dentro de todo o cenário cultural e social que envolvia a vida de Jesus Cristo, bem como suas dificuldades, seus anseios e suas dores. A riqueza dos detalhes com que Saramago consegue “mostrar” os cenários, os comportamentos, os personagens e toda atmosfera da época, pode fazer o leitor sentir os pregos rasgando as mãos e os calcanhares durante as crucificações. Ou o que sentirá os leitores, nos momentos iniciais da obra, quando Saramago narra os sacrifícios de bois, cordeiros e bezerros no Templo, local de oferenda de sangue ao Deus beberrão? Tanta crueza que Jesus se nega a fazer o que todos faziam.

Para além da ordem sagrada, cega em suas próprias verdades, Saramago nos mostra uma ficção, porém, muito além da ficção bíblica. Em “O evangelho segundo Jesus Cristo”, o homem Jesus Cristo é um personagem comum, por isso sentimo-nos que ali ele é “real”, em suas aventuras e dores pelo mundo de Jerusalém afora, trabalhará para o Diabo, desafiará Deus, tentará convencer a mãe de que aquilo que todos seguem não significa o derradeiro caminho, e o que diremos, dele Jesus, que conhecerá os prazeres da vida com a prostituta Magdala.

Por não ser real, a obra de Saramago torna mais real que a nefasta Bíblia. Abaixo, alguns trechos do livro, mantidos ao estilo de Saramago, deliciem-se:

Jesus durante uma discussão com a mãe que lhe pede para abandonar os pensamentos maus:

“(…) Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é a ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo (…)”

O momento onde Deus, o Diabo e Jesus travam debates, em uma barca perdida, em meio a um nevoeiro de 40 dias é um dos mais belos do livro. Jesus, neste momento, faz uma série de questionamentos a Deus que até então só o tinha avisado que seu nome seria exaltado na Terra a partir da morte de Jesus. O Diabo também participa, pois sabe que o projeto divino é projeto de ambos (Deus e Diabo):

“(…) . Disse Jesus, Estou à espera, De quê, perguntou Deus, como se estivesse distraído, De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros, Insistes em querer sabê-lo, insisto, Pois bem, edificar-se-á a assembleia de que te falei, mas os caboucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas, Finalmente, estás a ser claro e directo, continua, Para começar por quem tu conheces e amas, o pescador Simão, a quem chamarás Pedro, será, como tu, crucificado, mas de cabeça para baixo, crucificado também há-de ser André, numa cruz em forma de X, ao filho de Zebedeu, aquele que se chama Tiago, degolá-lo-ão, E João, e Maria de Magdala, Esses morrerão de sua natural morte, quando se lhes acabarem os dias naturais, mas outros amigos virás a ter, discípulos e apóstolos como os outros, que não escaparão aos suplícios, é o caso de um Filipe, amarrado à cruz e apedrejado até se lhe acabar a vida, um Bartolomeu, que será esfolado vivo, um Tomé, que matarão à lançada, um Mateus, que não me lembro agora de como morrerá, um outro Simão, serrado ao meio, um Judas, a golpes de maça, outro Tiago, lapidado, um Matias, degolado com acha-de-armas, e também Judas de Iscariote, mas desse virás tu a saber melhor do que eu, salvo a morte, por suas próprias mãos enforcado numa figueira, Todos eles vão ter de morrer por causa de ti, perguntou Jesus, Se pões a questão nesses termos, sim, todos morrerão por minha causa, E depois, Depois, meu filho, já to disse, será uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas (…)”

(…) A Inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas falado antes, Esses foram lançados à fogueira por crerem em ti, os outros sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. (…)”

Jesus, em longa viagem que fazia, feriu-se o pé, na qual parou para pedir ajuda em uma cidadezinha. Conhece então Maria de Magdala, prostituta que cura Jesus, e este “cura” a Magdala, e ambos passarão a caminhar juntos. Porém, Magdala não oferece apenas seus dotes de hospitalidade:

(…) Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo. (…) Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou -ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele (…) Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito. (…)

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Fonte: site Eterno Retorno